Qual a diferença de “usuário” e “traficante”?
Segundo a lei de drogas brasileira, quem porta substância para consumo individual não pode ser preso. Na prática, não há critérios claros para distinguir as duas condutas
ITTC
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por Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
Qualquer conduta relacionada às drogas consideradas ilícitas ainda é crime no Brasil. A atual Lei de Drogas (11.343/2006) mantém a proibição dessas substâncias e, no seu artigo 28, somente despenaliza a conduta relacionada ao uso. Isso quer dizer que a pessoa usuária não pode ser presa por portar drogas para consumo pessoal, mas ainda pode sofrer sanções administrativas, educativas ou penais que não restrinjam sua liberdade.
A lei de drogas foi alterada em maio desse ano. O novo texto endurece as políticas antidrogas e estabelece penas mais longas para o crime de tráfico (a pena mínima passou de 5 para 8 anos de reclusão).
Mesmo com as mudanças, o texto ainda distingue duas figuras: a pessoa usuária e a traficante.
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A usuária é aquela que tem droga para consumo pessoal. A traficante é a que tem intuito de lucro, que age com intenção comercial. Frequentemente, as duas situações são parecidas e não é possível saber exatamente qual a destinação da droga: se consumo ou comércio. Neste caso, a dúvida deveria ser resolvida em favor da pessoa acusada. A presunção de uso deveria ser a regra. Ou seja — na dúvida, a justiça deveria decidir que a pessoa que porta droga é usuária, não traficante.
Na prática, o que acontece é que a pessoa flagrada com drogas geralmente é presumida traficante e só será considerada usuária se conseguir provar o contrário.
Como apontou Cristiano Maronna, em entrevista ao Estadão, “o maior problema da lei é o fato de que a pessoa flagrada com droga passa a ter o ônus de provar que não é traficante. O que contraria a regra constitucional que diz que as pessoas devem ser presumidas inocentes e que quem tem o ônus de provar a acusação é o Ministério Público. No caso da Lei de Drogas acontece uma inversão do ônus da prova que viola a Constituição.”
Na pesquisa que deu origem ao infográfico Política de Drogas e Encarceramento, notou-se que em vários países que flexibilizaram a política de drogas, foi endurecido o tratamento para o tráfico.
>>A prisão não serve para nada, a não ser para moer gente
O mesmo aconteceu no Brasil: com a Lei de Drogas, as penas para tráfico aumentaram e, nos últimos anos, a população prisional do país cresceu muito, especialmente no caso das mulheres. O encarceramento feminino cresceu 503% entre os anos 2000 e 2014, sendo que cerca de 58% das mulheres estão presas por tráfico de drogas, segundo o Infopen Mulheres.
É possível criar critérios para distinguir traficante de usuário?
Alguns países adotam critérios objetivos que ajudam na classificação de condutas individuais. No caso de pessoas presas por delitos relacionados a drogas, os critérios objetivos servem para diferenciar condutas que recebem penalidades distintas. Por exemplo, os critérios podem separar pessoas “usuárias problemáticas” de “usuárias recreativas”, “usuárias” de “traficantes”, “pequenas traficantes” de “grandes traficantes”, “pequenas produtoras” de “grandes produtoras” e assim por diante.
Os critérios podem ser baseados na quantidade da droga, na sua pureza, no tipo (“hard” ou “soft”), no valor da droga que a pessoa carrega, ou até mesmo em uma combinação desses fatores. A definição desses critérios é feita por lei ou por jurisprudência. Na prática, a aplicação deles é feita pela polícia, pelo sistema Judiciário, por especialistas em áreas como a Saúde ou por meio de uma decisão incumbida a profissionais específicos.
O Brasil não possui critérios objetivos que façam qualquer distinção de condutas. Se, inicialmente, a proposta de estabelecer critérios objetivos na lei de drogas brasileira surgiu como uma tentativa de proteger pessoas usuárias de receberem penas mais altas e destinadas a pessoas traficantes, ao longo dos quase 20 anos de atuação do ITTC é possível observar que a criação e aplicação desses parâmetros pode acabar resultando em uma maior marginalização e estigmatização das pessoas que não estão dentro dos padrões estabelecidos.
O que o ITTC percebe em sua atuação é que ao judiciário não costuma interessar a conduta, e sim o perfil da pessoa que é encontrada com drogas. As pessoas em situação de vulnerabilidade social são as mais afetadas pela criminalização presente na política de drogas atual. Para o ITTC, é preciso que a política de drogas saia da esfera penal para que não seja perpetuada a seletividade do sistema.
Esse texto foi adaptado a partir de outros dois:
ITTC EXPLICA: USAR DROGAS AINDA É CRIME NO BRASIL?
ITTC EXPLICA: COMO FUNCIONAM OS CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA DISTINGUIR PESSOA USUÁRIA DE TRAFICANTE DE DROGAS?
FOTO: Mídia Ninja
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