Como o contrabando de madeira mata indígenas no Maranhão
No começo do mês, Paulo Guajajara foi morto em emboscada. No estado, municípios surgiram em torno da atividade madeireira
Rafael Ciscati
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Por Rafael Ciscati
Considerado um crime difícil de combater, o comércio ilegal de madeira está no cerne dos conflitos que se arrastam há mais de quatro décadas em territórios indígenas no Maranhão. Na madrugada do dia 1º, a Terra Indígena Arariboia, próxima do município de Bom Jesus das Selvas, foi palco de mais um desses confrontos quando o líder indígena Paulo Paulino Guajajara, conhecido como “Lobo Mau”, foi morto por madeireiros. Paulino fazia parte do grupo Guardiões da Floresta, criado em 2011 para monitorar e denunciar a presença desses criminosos. Na ocasião, ele era acompanhado por Laércio Guajajara, outro membro do Guardiões, que conseguiu escapar com vida. Um madeireiro morreu.
Desde setembro, o grupo de Paulino relatava sofrer ameaças constantes, e pedira auxílio ao Programa Estadual de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. De acordo com Graziela Nunes, coordenadora do programa e membro da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), um encontro com o grupo tinha sido planejado para novembro: “Até ali, eles nos relataram uma série de ameaças difusas. Nossa intenção era, nessa oficina, fazer um diagnóstico detalhado da situação e pensar estratégias de proteção”, conta ela. Não houve tempo.
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A notícia da morte de Paulino chegou a SMDH na madrugada do dia 1º. Na mesma noite, a organização deslocou um grupo para as cidades próximas da Terra Indígena Arariboia, e se encarregou de resgatar as lideranças sob ameaça. Mais de uma semana depois do assassinato, as tribos da região temem retaliações: “A única maneira de conter a escalada dessa violência é desbaratando as quadrilhas de exploração de madeira que atuam na área”, afirma o advogado Luis Pedrosa, da SMDH.
Segundo ele, o assassinato de Paulino é parte de uma história antiga, e que se mistura ao processo de formação dos municípios do interior do Maranhão: “O comércio ilegal de madeira fez parte do desenvolvimento econômico das cidades no entorno das terras indígenas”, conta.
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A Terra Indígena Arariboia faz parte de um quadrilátero conhecido como mosaico Gurupi — um conjunto de áreas protegidas e territórios indígenas que se estende, de maneira não contínua, do leste do Pará ao oeste do Maranhão. Trata-se de uma área de ocupação antiga, e uma das mais ameaçadas da Amazônia brasileira. Ali, o processo de desmatamento em larga escala remonta à década de 1960, quando o governo militar estimulou a migração de agricultores do sul e sudeste para a região, então considerada um vazio demográfico.
De acordo com um trabalho publicado em 2018, conduzido por pesquisadores do Instituto Chico Mendes e do museu Emílio Goeldi, foi em torno da atividade madeireira que surgiram cidades importantes no interior do mosaico, como Açailândia e Imperatriz. Esse processo de desenvolvimento ajudou a definir o destino das áreas protegidas: até 2016, segundo a mesma pesquisa, 17,2% da cobertura vegetal das áreas de conservação e dos território indígenas da região já havia desaparecido.
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Desde 2016, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ao menos 13 indígenas foram mortos no Maranhão. A maioria dos casos, conta a SMDH, envolveu disputas com madeireiros. A operação criminosa inclui pequenas serrarias, instaladas nas bordas dos territórios indígenas e áreas de conservação. Parte da madeira tem por destino as lojas de móveis do próprio estado. Outra é escoada para o Pará de onde, especula-se, é exportada. As atividades empregam a população pobre das cidades do entorno: “E estão associadas à pistolagem”, diz Pedrosa, da SMDH. Comumente, as ações da polícia resultam na prisão de pequenos madeireiros, sem comprometer a existência das quadrilhas.
Por anos, a incursão de madeireiros nos territórios indígenas foi tolerada por algumas lideranças tradicionais. Na ausência do poder público, eles prestavam serviços essenciais às comunidades indígenas — como o transporte de água e a abertura de estradas para a circulação de pessoas. Os Guardiões da Floresta, criados em 2011, surgiram para fazer frente a inabilidade do governo Federal, a quem compete a segurança dos territórios indígenas, em coibir essa atividade. Há, de acordo com a SMDH, cerca de 9 grupos de Guardiões atuantes na Arariboia, um território de cerca de 413 mil hectares. São guerreiros jovens, das etnia Guajajara e Ka’apor, que se dividem em aldeias matrizes, somando 120 homens aproximadamente. Além de resguardar as próprias terras, os guardiões se encarregam da proteção dos Awá Guajá, índios isolados que vivem no mesmo território: “Mas essa atuação os expõem a grandes riscos”, diz Pedrosa. “Logo que passam a fazer parte dos Guardiões, esses guerreiros jovens são identificados pelos madeireiros, e são ameaçados”.
A atuação dos Guardiões ainda dificulta sua circulação pelas cidades próximas, onde buscam serviços públicos que não estão disponíveis nas aldeias. Como parte população desses municípios está envolvida na exploração da madeira, as cidades são polos de constante tensão.
A luta dos Guardiões para proteger seu território e garantir a sobrevivência dos Awa Guajá é contada no documentário Ka’a zar ukyze wà — Os donos da floresta em perigo, dos cineastas indígenas Flay Guajajra, Edivan dos Santos Guajajara e Erisvan Bone Guajajara. Lançado em julho desse ano, o filme mostra o cenário de devastação deixado pela extração de madeira em vastas áreas do Maranhão.
Desde a morte de Paulino, o governo do estado anunciou a criação de uma força tarefa destinada a reforçar a segurança das comunidades indígenas. Segundo Graziela Nunes, o funcionamento dessa operação ainda não foi detalhado: “Mas a ideia é criar um esforço de colaboração com os órgãos que têm atuação direta nos territórios”, diz.
Na avaliação de Pedrosa, é preciso fortalecer os grupos de Guardiões, e fomentar a criação de redes de comunicação, de modo que as comunidades locais os ajudem no patrulhamento da região. É preciso também punir os membros da quadrilha que organizou o ataque a Paulino: “Eles atuam em Bom Jesus das Selvas, e são conhecidos pela violência. Já atacaram veículos do Ibama no passado” diz ele. Mais importante que isso, ele ressalta, é reforçar a atuação dos órgãos públicos responsáveis pela segurança das terras indígenas, uma atividade que os Guardiões assumiram por omissão do poder público: “O que preocupa, no atual cenário, é o desinteresse do governo federal por essas ações”.
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