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STF e STJ concedem prisão domiciliar a “mãe idealizada”, diz pesquisa

Processos em tribunais superiores excluem informações como raça, escolaridade e renda. Segundo pesquisadoras, "abstração" contribui para que a mulher tenha direitos reconhecidos

ITTC

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Desde 2016, quando foi promulgado o Marco Legal da Primeira Infância, mulheres gestantes ou mães de crianças com até 12 anos podem ter a prisão provisória convertida em prisão domiciliar. A medida tem por objetivo proteger as crianças, preservando seu vínculo com a mãe e permitindo que tenham acesso aos cuidados maternos. Uma pesquisa conduzida pelo Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) constatou que, se a lei é raramente aplicada nos tribunais de primeira instância (como descrito nesse artigo), ela costuma ser respeitada nas cortes superiores.  Nelas, os magistrados não têm contato com as mulheres cujos casos analisam: ali, afirmam as pesquisadoras, suas histórias se resumem a uma espécie de “mãe idealizada”.

>>ITTC Explica: o que é o Marco Legal da Primeira Infância

A conclusão faz parte da terceira etapa da pesquisa MaternidadeSemPrisão: Diagnóstico da Aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento feminino.  Os resultados da pesquisa são esmiuçados ainda em outros dois artigos, ambos já disponíveis na Brasil de Direitos. O primeiro, avalia o papel da justiça criminal para a proteção da infância; no segundo, as autoras examinam como o Marco Legal da Primeira Infância é aplicado às mulheres presas no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha.

>>O papel da justiça criminal na proteção à infância

Nessa terceira etapa da pesquisa, o trabalho consistiu na coleta de 200 decisões de Tribunais Superiores, relativas a mulheres que recorreram ao STF e ao STJ para pleitear o direito à prisão domiciliar. Foram selecionados julgamentos ocorridos entre 09/08/2016 – dia seguinte à promulgação da Lei nº 13.257 de 8 de março de 2016 (Marco Legal da Primeira Infância) – e 30/06/2018, data de início desta etapa da pesquisa. Todas as 200 mulheres eram potenciais beneficiárias do Marco Legal. No gráfico abaixo é possível observar os fundamentos utilizados pela defesa para realizar os pedidos.

Os casos em que a mulher alegou ser imprescindível aos cuidados de outros é referente a contextos de cuidado com pais, neto(a)s, sobrinho(a) e pessoas doentes.
Dentre os 200 casos, 116 tiveram como desfecho a concessão da substituição da prisão preventiva pela domiciliar, o que corresponde a 58% das decisões. Outras 73 mulheres tiveram o pedido negado. Assim, a taxa de concessões de prisão domiciliar nos Tribunais Superiores é de 61,4% e a de negativas é de 38,6%.

Assim, a pesquisa verificou que as chances de que uma potencial beneficiária dos dispositivos desencarceradores do Marco Legal da Primeira Infância obtenha êxito em seu pedido nos Tribunais Superiores é muito maior do que na audiência de custódia e no curso do processo de conhecimento.

Contudo, pelas características dessa etapa processual, e do tipo de recurso (predominantemente habeas corpus), os acórdãos dos Tribunais Superiores quase não trazem informações específicas sobre as mulheres, como raça/cor, renda, escolaridade, etc. As informações trazidas à decisão dizem respeito apenas aos critérios objetivos da lei, ou seja, apenas às informações sobre a existência das condições previstas no Marco Legal. Portanto, podemos dizer que nessas instâncias, o perfil socioeconômico e étnico-racial da mulher não aparece. A mulher torna-se mais “abstrata” e “despida” de uma série de especificidades que as marcam.

Nesse sentido, quanto mais são afastadas as características concretas da mulher, mais ela tem chances de ter seu direito reconhecido. Na audiência de custódia e no curso do processo nas instâncias inferiores, magistrados e magistradas ficam, em algum momento, cara a cara com as mulheres, ou acessam informações sobre elas no momento da produção de provas. Nos Tribunais Superiores, por outro lado, as mulheres se aproximam da abstração que marca os textos legais e passam, então, a ser reconhecidas enquanto mães (dentro de um ideal abstrato) cujos direitos devem ser protegidos.

Além disso, também verificamos que nas instâncias superiores, onde há maior chances de concessão da prisão domiciliar, 26% das mulheres foram assistidas pela Defensoria Pública de seus respectivos Estados, enquanto 74% das mulheres possuíam advogado ou advogada constituído. Logo, diferentemente do observado durante as etapas anteriores, a maioria das mulheres que alcança os Tribunais Superiores teve condições financeiras ou realizou um esforço financeiro para contratar advogado ou advogada que realizasse sua defesa. Infere-se, portanto que, embora nos Tribunais Superiores haja mais chances de se obter a prisão domiciliar, eles são menos acessíveis.

Interessante notar também que os dados levantados em relação aos crimes supostamente cometidos pelas mulheres que alcançam os Tribunais Superiores corroboram na compreensão de que a maioria das mulheres está respondendo a processos criminais por conta de crimes relacionados ao comércio de drogas. Dentro da nossa amostra, mais da metade estava sendo acusada de crimes relacionados ao tráfico de drogas (65,5% estão presas por tráfico de drogas e 21,5% por associação ao tráfico).

Ao mesmo tempo, há uma quantidade menor de mulheres sendo processadas por crimes patrimoniais. Por exemplo, somente um caso de furto simples. Todavia, apenas nas instâncias superiores pudemos identificar mulheres que eram advogadas, funcionárias públicas, figuras políticas ou casadas com representantes políticos, e estavam sendo processadas por crimes de colarinho branco. Esse perfil de mulheres não foi encontrado nas audiências de custódia ou entre as mulheres presas no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha.

Ademais, a maioria dos processos (52% deles) analisados nessa etapa originam-se em São Paulo, mostrando uma profunda diferença regional no acesso à justiça.

Argumentos utilizados nas decisões dos Tribunais Superiores

Passando aos argumentos mobilizados pelos Desembargadores e Desembargadoras para negar o direito à prisão domiciliar, verificamos que houve uma mudança no padrão das fundamentações antes e depois do habeas corpus coletivo nº 143.641 do STF sobre o tema.

A concessão do habeas corpus coletivo foi uma vitória importante, mas acabou sendo uma decisão mais restritiva que a lei. A medida criou previsões para casos em que a prisão domiciliar poderia não ser concedida: crimes cometidos com violência ou grave ameaça, crimes contra descendentes e “situações excepcionalíssimas”.

Observamos que, após essa data, alguns argumentos deixaram de aparecer na fundamentação das decisões dos Tribunais Superiores, por haver expressa determinação da decisão do Min. Lewandowski nesse sentido. Por exemplo, o argumento de “ausência de provas da maternidade” passou de 16 para 2 incidências, tendo em vista que o Ministro deixou claro que deve ser levada em consideração a palavra da mãe. Já o argumento “presume-se que os filhos ou filhas podem ficar sob os cuidados de outros familiares” passou de 16 para 4 incidências, já que a decisão reforça a imprescindibilidade dos cuidados da mãe.

Crime cometido com violência ou grave ameaça
Verificamos que antes da decisão do habeas corpus coletivo, apenas 1 caso de negativa da prisão domiciliar havia se fundamentado no fato do crime ter sido cometido com violência ou grave ameaça. Após essa data, esse número sobe para 12 casos, mostrando que a inserção dessas exceções para a concessão da prisão domiciliar ampliou as possibilidades de negativa, anteriormente não previstas no Marco Legal da Primeira Infância. Do total de vezes que este argumento foi mobilizado, 6 vezes correspondem ao STF, sendo 1 antes de fevereiro de 2018 e 5 após e essa data, e 7 vezes ao STJ, sendo todas elas após a decisão. Ao analisarmos os 12 casos, verificamos que 6 deles tratavam-se de homicídios (um deles supostamente cometido contra vítima que ocupa posição equivalente a descendente, sua enteada), 1 caso de extorsão mediante sequestro, 3 casos de roubo (um deles com corrupção de menores), 1 caso de tráfico com associação para o tráfico (crime cujo cometimento não envolve violência ou grave ameaça) e 1 caso de estupro de vulnerável..

O argumento “gravidade do crime” (em sua maioria casos de crimes relacionados ao comércio de drogas) passou de 11 para 3 incidências após a decisão do habeas corpus coletivo, sugerindo que este tipo de argumentação apenas foi deslocado para “crime cometido com violência ou grave ameaça”.

O tráfico de drogas e a associação para o tráfico não são crimes cometidos com violência ou grave ameaça, contudo, essa exceção prevista pelo STF e incorporada pela Lei nº 13.769/2018 tem sido aplicada inapropriadamente para casos de crimes relacionados à lei de drogas, que não poderiam assim ser caracterizados.

Crime contra descendentes
Nas análises das audiências de custódia e dos processos de instrução não verificamos nenhum caso de incidência de negativas de prisão domiciliar motivadas pelo argumento de o crime ter sido cometido contra os descendentes da mulher. Apenas na terceira amostra da pesquisa, composta por decisões dos Tribunais Superiores, esse argumento foi utilizado 2 vezes pelo STJ e somente após a decisão do habeas corpus coletivo nº 143.641.

Sendo assim, constatamos que ambas as hipóteses objetivas expressamente determinadas como exceções à regra de aplicação da prisão domiciliar pela decisão de habeas corpus do STF — crime cometido com violência ou grave ameaça; ou crime praticado contra os descendentes — tiveram uma baixíssima incidência nos casos analisados, diferentemente da “situação excepcionalíssima” trazida pela mesma decisão, notadamente carregada de arbitrariedades subjetivas em sua caracterização, como será exposto a seguir.

Situações excepcionalíssimas
Ao tratarmos dos casos em que foram mobilizadas supostas “situações excepcionalíssimas”, adentramos uma seara de profundas discricionariedades, que se dá também pela própria natureza deste critério, que não teve seus parâmetros claramente fixados na decisão do Ministro Lewandowski. Contudo, em função da excessiva arbitrariedade com que vinha sendo usado este argumento, posteriormente, em outubro de 2018, o Ministro proferiu nova decisão pontuando ocorrências que não poderiam ser configuradas como “situações excepcionalíssimas”, esclarecendo que a presença de antecedentes criminais, apreensão de drogas ao adentrar unidade prisional, passagem pela Fundação Casa, ausência de comprovação de emprego ou de residência, entre outros casos, não configuraram esses casos excepcionais.

Neste terceiro banco de dados, referente às decisões dos Tribunais Superiores, verificamos a incidência de tal excepcionalidade em 7 decisões. Note-se que antes da decisão do habeas corpus coletivo, não houve nenhum caso em que os Ministros e as Ministras negaram a prisão domiciliar por se tratar de uma “situação excepcionalíssima”. Contudo, após a inclusão dessa hipótese de exceção à aplicação da prisão domiciliar trazida pelo habeas corpus coletivo, essa fundamentação apareceu 2 vezes para o STF e 5 para o STJ.

Ao justificar porque cada caso configura situação excepcionalíssima, verificamos tratarem-se de argumentos discricionários, sem amparo legal e mal fundamentados, como o exemplo a seguir:. “(…) ao cometer o delito de tráfico com adolescente demonstrou insensibilidade e descaso com os seus filhos” (STF). É evidente que essa circunstância não é mensurável (ao menos não na seara criminal) e não pode servir como critério de endurecimento da punição, pois não há base que sustente uma afirmação que supõe uma “insensibilidade e descaso”.

Em outros casos, novamente salta aos olhos o fato da prática de tráfico de drogas ser impeditiva da aplicação da prisão domiciliar, uma vez que não há amparo legal ou jurisprudencial para tal limitação, independente de qual seja a posição ou papel que ela exerça dentro da atividade ou de onde foram encontradas as substâncias entorpecentes.

O critério das “situações excepcionalíssimas” é utilizado de forma subjetiva, variando a depender da valoração particular de cada magistrado/a e, na maioria dos casos, sua utilização está atrelada a uma repreensão exacerbada dos crimes relacionados ao tráfico de drogas. Ao conjugar-se com o fato de ter sido supostamente cometido por uma mãe, o tráfico e a maternidade constituem um imbricamento que reforça o encarceramento das mulheres, baseando-se em uma moralização da punição.

O que pudemos observar é que a perspectiva acima descrita permaneceu nas decisões mesmo após a decisão do habeas corpus coletivo. O que ocorreu é que os argumentos que deixaram de ser utilizados foram apenas adaptados às novas exceções trazidas pelo STF.

Considerações finais

Esta trilogia de artigos buscou expor como para a mulher que comete um crime a pena é reforçada: por infringir a lei penal, por “desobedecer” às normas de conduta social do que se concebe como ser “mãe”, e, ainda, por ser penalizada com a inobservância de suas necessidades e o agravamento de suas fragilidades econômico-sociais com a consumação de sua prisão.

A maternidade das mulheres negras, pobres, jovens, selecionadas pelo sistema de justiça criminal, é deslegitimada, menos valorada, e, portanto, menos protegida. Esse julgamento moral recorrentemente se sobrepõe às determinações legais do Marco Legal da Primeira Infância, cuja razão de ser é a própria proteção da relação de maternidade da mulher em conflito com a lei.

Assim, defendemos a aplicação do Marco Legal para todas as mulheres nas condições previstas pela lei, e em qualquer forma prisão (e não apenas para presas preventivas), na medida em que o bem que se procura preservar (o exercício da maternidade e a proteção integral da infância) não deixam de existir na prisão definitiva ou no caso das adolescentes em medidas socioeducativas.

Contudo, importante dizer também que, ao diagnosticar a aplicação do Marco Legal, foi possível compreender que a prisão domiciliar, apesar de garantir a proteção a direitos da mãe e da criança e adolescente fora dos estabelecimentos penais, continua sendo uma prisão que implica diversos limites para o próprio exercício desses direitos.

Como os critérios para seu cumprimento são estabelecidos a cargo do magistrado ou magistrada, restam muitas dúvidas ou limitações. Por exemplo, a mulher deverá permanecer 24 horas dentro de sua residência? Ela poderá sair para levar filhos e filhas à escola? Ela poderá trabalhar para sustentar sua prole? Se ela adoecer, não havendo atendimento do SUS na residência, ela poderá sair sem correr o risco de ser presa? Ela precisa de autorização judicial para fazer compras no mercado para manter a casa?

Assim, essas questões precisam ser enfrentadas sob risco de que não seja possível desempenhar as atividades necessárias justamente ao exercício da maternidade e aos cuidados com os dependentes. Nesse sentido, reiteramos que a liberdade deve ser a regra, mas que, em sendo aplicada a prisão domiciliar, seus critérios devem ser flexíveis e adequados à realidade da mulher, sob risco de mantê-la no ciclo de vulnerabilidades sociais em que está inserida, por sua condição de classe, raça/cor e gênero  – e mais ainda quando presentes outras especificidades como nacionalidade, deficiência, sexualidade não cis-heteronormativa, etc..

Texto originalmente publicado em: “Como os tribunais superiores têm interpretado e aplicado a prisão domiciliar para mães e gestantes”

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São Paulo - SP

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