A luta dos indígenas Guarani no Pico do Jaraguá
Há décadas, os Guarani do pico do Jaraguá, em São Paulo, lutam pela demarcação de seu território. Sofrem oposição do governo do estado de São Paulo e da especulação imobiliária
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“São Paulo é uma cidade indígena. Talvez a afirmação surpreenda, mas ela é corroborada por números: de acordo com dados de 2010 do IBGE, a capital paulista é a segunda cidade com maior população indígena do país. São homens e mulheres de diversas etnias, que vivem na metrópole como imigrantes, misturados à multidão; ou homens, mulheres e crianças que vivem nas aldeias do povo Guarani Mbya, localizadas nas regiões sul e noroeste da capital.
Aos pés do Pico do Jaraguá está localizada a menor terra indígena do Brasil. Ali, ao longo de míseros 1,7 hectare, vivem cerca de 800 pessoas da etnia Guarani Mbya. Nos últimos dias, as aldeias guarani do Pico do Jaraguá viraram notícia. No começo de fevereiro, um grupo de indígenas se reuniu numa manifestação fúnebre num terreno onde a construtora Tenda planeja erguer um condomínio de 11 torres*. Atados às arvores, os índios tentaram deter o desmatamento da área — segundo a Comissão Guarani Yvyrupa, 4 mil árvores foram cortadas pela empresa. Segundo as lideranças indígenas, a construtora descumpria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa norma obriga que as aldeias sejam consultados antes da execução de qualquer obra próxima de uma terra indígena. Ao deter o empreendimento, os Guarani buscavam conter a destruição de um território ocupado há séculos por seus ancestrais.
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Há mais de três décadas, os Guarani do pico do Jaraguá lutam, sem sucesso, para ver reconhecido seu direito sobre as terras no entorno de suas aldeias, para além do território hoje demarcado. Laudos etnográficos comprovam que sua presença na região é antiga, e remonta a períodos pré-coloniais. O pleito sofre com a oposição do governo do estado de São Paulo: parte do território reivindicado pelos Guarani compreende o que, hoje, é o parque estadual do Jaraguá. O estado afirma que a sobreposição da terra indígena (TI) à área do parque pode comprometer a preservação da unidade de conservação. Os indígenas afirmam o contrário: querem manter a floresta em pé.
A demarcação de um território indígena envolve uma série de etapas. Depois de demarcado, o território precisa ser homologado pela presidência da república. No caso dos Guarani do pico do Jaraguá, esse processo envolveu idas e vindas. Em 2016, o ministério da justiça demarcou mais de 500 hectares na região, mas a homologação não aconteceu. Dessa breve vitória, resta apenas uma placa na entrada da aldeia.
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Ampliar o território é importante para que os Guarani Mbya consigam manter seu modo de vida tradicional, hoje inviabilizado. Nos atuais 1,5 hectare demarcado, não há espaço para cultivos. Nem é possível — nas condições atuais —viver da pesca. Para boa parte daquela população, a venda do artesanato representa sua principal fonte de renda. Esse quadro geral torna precárias as condições de vida dos Guarani do Jaraguá. Não há saneamento básico, muitas casas se resumem a casebres de madeira e a mortalidade infantil é alta: a maior da cidade de São Paulo.
Comecei a frequentar as aldeias do Jaraguá em 2015. Sou professora, formada em história. Trabalho para ampliar a presença da história indígena no currículo escolar brasileiro. A presença desses conteúdos é obrigatória, e prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mesmo assim, os professores — do ensino básico ao universitário — ainda são pouco preparados para tratar desse tema em sala de aula.
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Comecei a frequentar as aldeias justamente para entender melhor o modo de vida dos Guarani. Na minha primeira visita, me surpreenderam muito as condições do lugar. Aos meus olhos, era difícil enxergar ali uma aldeia. As moradias eram precárias. Tive a impressão de que havia mais cachorros e gatos do que pessoas.
Apesar das muitas dificuldades, e do interminável imbróglio com o Estado brasileiro, os Guarani permanecem aguerridos. As crianças que nascem nas aldeias do Jaraguá passam ali suas vidas inteiras. Os jovens são incentivados a sair, para estudar. Alguns frequentam a universidade. Mas voltam, e permanecem firmes na luta para preservar as tradições de seus ancestrais.
Esse senso de unidade dos Guarani deriva, em grande medida, da educação que as crianças recebem. Há, na aldeia, duas escolas de ensino básico. No Centro de Estudos da Cultura Indígena (CECI) estudam as crianças até os 7 anos de idade. Ali, as atividades são ministradas em Guarani. É nessa língua que as crianças aprendem a decifrar o mundo. O direito de ensinar seus filhos em Guarani foi uma conquista importante. Há outras peculiaridades no projeto pedagógico da CECI: ali, as crianças aprendem a partir das experiências. Elas põem a mão na horta, fazem as coisas com as próprias mãos. Primeiro a prática, depois a teoria. Esse modo de pensar a educação é refletido na arquitetura do prédio: dois pavimentos, sem divisões de salas.
Isso faz uma diferença substancial. Graças a essa educação, as crianças se reconhecem indígenas, entendem e valorizam sua identidade como Guaranis. Essa Teko Porã — o bem viver — é um ensinamento Guarani muito importante. É a compreensão de que não se pode viver apartado na natureza. Uma filosofia que só pode ser compreendida desde pequeno.
É essa compreensão que falta ao governo. Ao temer que a demarcação das terras comprometa a proteção ambiental da região, o governo ignora a relação que os Guarani mantêm com a floresta. Eles são contundentes ao afirmar que querem ver seu direito reconhecido para poder, a partir disso, preservar a mata. Algo que já fazem, hoje, com projetos de preservação de nascentes. Seu modo tradicional de vida só é viável se a floresta for mantida de pé. Entre os indígenas, existe a suspeita de que parte da resistência em demarcar seu território é reflexo da pressão de grupos empresariais, que pretendem ocupar a região com empreendimentos imobiliários. A disputa atual com a construtora Tenda dá pistas da complexidade de questões envolvidas.
No último final de semana, a Comissão Guarani Yvypura convocou apoiadores pelas redes sociais. A intenção era reunir pessoas para reflorestar a área desmatada pela construtora — um dos poucos remanescentes de Mata Atlântica na cidade de São Paulo.”
Claudine Melo* é formada em História pela UESB, com pós graduação em Educaçao, Cultura e Relações Étnico-Raciais, pelo CELACC – ECA/USP. Fundadora e educadora da Consultoria Educacional EtnicoEduc – Educação para as relações étnico-raciais e membro do Núcleo Maximiliano Kolbe de Direitos Humanos.
*Uma versão anterior desse texto informava que a consturota Tenda planejava erguer um condimínio de luxo. A informação foi corrigida no dia 10/02
Foto de topo: Guaranis protestam na Avenida Paulista, em São Paulo, pela demarcação de suas terras no pico do Jaraguá em 2017 (Mídia Ninja)
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