Com quadrinhos e novela, ativistas informam sobre Covid-19
Iniciativas recorrem à ficção e ao humor para tornar mensagens acessíveis, e combater fake news
Rafael Ciscati
5 min
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Usando vestido florido e fita no cabelo, a arte-educadora Renata Fernandes olhou para a câmera com ar sério: “Eu estou indignada”, disse, numa voz meio embolada, quase gritando. “Porque, se vocês não estão sabendo, inventaram uma tal de Emenda Constitucional 95”. Naquele dia, Renata encarnava, diante da câmera, Dona Terezinha: uma líder comunitária aguerrida e um pouco debochada. A personagem faz parte da galeria de tipos da webnovela “Ta pegando Fogo”, uma história produzida direto para as redes sociais pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente — Ceará (Cedeca-CE) desde 2018. A pauta do dia era a emenda que congelou o orçamento federal nos patamares de 2016 — e a ameaça que a ausência de recursos representa para a saúde da populaça em meio à pandemia do novo coronavírus: “A gente tem é que acabar com esse teto de gastos, mulher. Investir em saúde”, continuou Terezinha, com a informalidade de uma amiga íntima.
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O vídeo é ligeiro. Terezinha dança um funk — cuja letra ressalta a importância do isolamento social para conter a propagação da Covid-19 — faz caras e bocas, chega a perder o equilíbrio e cair numa cena digna de meme. Renata, a atriz que lhe dá vida, se diverte: “A Terezinha é essa personagem acessível. É uma mulher inteligente: nada lhe escapa”, afirma. “É uma delícia, porque ela representa todas as mulheres da comunidade onde nasci, que fazem política sem ter consciência disso”. Em meio à pandemia do novo coronavírus, Terezinha virou, também, uma das estratégias adotadas pelo Cedeca para levar informação de qualidade à população.
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A questão ocupa organizações sociais e comunicadores populares do Brasil inteiro. Desde que o primeiro caso de Covid-19 foi diagnosticado no país, em fins de fevereiro, esses grupos buscam formas de estreitar o diálogo com a população, de modo a informar sobre estratégias de prevenção e ações de suporte social. Em alguns casos, o caminho encontrado foi recorrer à ficção. Era essa a estratégia do Cedeca já há dois anos. Originalmente, a Ta Pegando Fogo foi criada para discutir o acesso a direitos fundamentais. A novela seguia os passos da professora Carolina, uma mulher trans que dá aulas em uma escola na periferia de Fortaleza. “A gente avaliou que o debate sobre direitos humanos nem sempre é acessível. Não chega a algumas camadas da sociedade”, conta Renata. “A novela é protagonizada por trabalhadores, mães de família, jovens. Vimos na ficção uma forma de criar uma realidade paralela, que dialogasse com as realidades desses sujeitos”.
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A segunda temporada da novela já tinha ido ao ar quando o novo coronavírus chegou ao país. No novo contexto, Dona Terezinha voltou à ativa: “Ela era a personagem ideal, porque era firme e articulada. Foi escolhida para passar esse recado”, diz Renata.
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O esforço de comunicação tenta cumprir uma tarefa que, avaliam os ativistas, o poder público desempenha mal: a de produzir informação adequada às necessidades — e realidades — de diferentes públicos. “O governo tem uma dificuldade grande de falar com a periferia” avalia a jornalista Naiara Leite, do Instituto Odara, em Salvador. “Se não houver informação checada, verdadeira, essa lacuna acaba sendo ocupada pelas fake news, disseminadas pela internet”.
Já há cerca de 10 anos, o Odara desenvolve projetos de combate ao racismo e ao sexismo. Boa parte das atividades do instituto envolve mulheres da periferia de Salvador. São mulheres negras, que chefiam suas famílias. Muitas são trabalhadoras domésticas. “A gente precisava criar um material que dialogasse com as necessidades e a realidade delas”, diz Naiara.
A solução veio na forma de uma história em quadrinhos. Naiara e a colega Alane Reis são as responsáveis pelos dilemas vividos por Gal — uma mulher negra e jovem, empregada doméstica que vive na periferia de Salvador — e Linho, seu filho adolescente. Um menino esperto e questionador. A cada tirinha, a dupla se vê diante de uma dificuldade diferente, todas relacionadas à pandemia. Na primeira, Gal conta como a patroa não quer liberá-la do trabalho, apesar do risco de adoecer. A matéria-prima para os enredos são histórias reais: “ A própria Gal é baseada na história da mãe de uma das nossas companheiras de instituto, que se chama Gal também”, conta Naiara. “Ela é empregada doméstica, e passou pela mesma dificuldade na casa em que trabalha. Decidimos fazer uma homenagem a ela”. Os roteiros tratam, ainda, de problemas que se repetem pelas periferias brasileiras: o desamparo dos trabalhadores informais, o aumento da violência doméstica, e a disparada das operações policias em favelas e periferias durante a quarentena.
A iniciativa surgiu como um experimento para o Odara, que nunca trabalhara com esse tipo de linguagem. Os dois personagens agradaram ao público. “Como as histórias são contadas em quadrinho, elas são vistas como uma forma de lazer”, conta Naiara. “Há casos de mães que leem com os filhos”. Passada a quarentena, o instituto pretende seguir contando as histórias de Gal e Linho, mas em outro contexto: “Em breve, a dupla vai abordar o extermínio da juventude negra. Um tema urgente”, diz Naiara.
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