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Resistência do judiciário dificulta punição a LGBTIfobia no Brasil

Na avaliação de entidades do movimento LGBTI+, é preciso mudar cultura jurídica

Rafael Ciscati

6 min

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Há um ano, em junho de 2019, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram que agressões de caráter LGBTIfóbico são crimes, equiparáveis ao crime de racismo. O entendimento do Supremo foi comemorado como uma vitória. Desde então, no entanto, a punição à LGBTifobia esbarrou numa série de fatores. Dentre eles, na resistência de membros do judiciária — de delegados de polícia à juizes — em reconhecer sua existência. A avaliação é de organizações LGBTI+ que acompanham a questão. Segundo esse grupos, é recorrente que o crime de LGBTIfobia seja registrado como agressão simples. Essa avaliação muda, por exemplo, os tipos de punição previstos para o criminoso. “O que a gente observa é que a nossa polícia é racista e LGBTifíobica”, afirma a advogada Manoela Alves, vice-presidente do Grupo LGBT Leões do Norte, de Pernambuco. “Não à toa, a criminalização não fez a LGBTifobia sumir”.

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Na última terça-feira (23), a plataforma Brasil de Direitos reuniu defensoras dos direitos humanos para discutir o saldo da decisão do STF. Além de Manoela, participaram do debate online a professa Mariah Rafaela Silva, colaboradora do Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de favelas; e a ativista Rafaelly Wiest, diretora de informação do Grupo Dignidade. A conversa foi mediada por Mônica Nóbrega, da Brasil de Direitos. Na avaliação das debatedoras, a decisão do STF teve um peso social importante, que precisa ser aprofundado por mudanças culturais. “Há uma série de leis, no Brasil, que não são cumpridas como deveriam”, lembrou Rafaelly. “A decisão do STF é um instrumento jurídico que nos protege, e queremos que seja aplicada”.

A criminalização da LGBTIfobia era um pleito antigo do movimento LGBTI+. A primeira grande campanha a tratar do tema surgiu em 1982, idealizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Na ocasião, o GGB organizou um abaixo-assinado reivindicando a medida, e cobrando que a homossexualidade deixasse de ser considerada uma doença. A campanha reuniu 16 mil apoiadores. “Um feito importante para a época, quando não havia internet”, conta o antropólogo Luiz Mott, fundador do GGB. A pressão pretendia estimular a criação de uma lei para tratar do assunto. “Embora mentalidades não se mudem por decreto, as leis ajudam as pessoas, pedagogicamente, a abandonar opiniões preconceituosas”.

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Ao longo dos anos, no entanto, a pauta avançou pouco no legislativo federal. “Ela sempre encontrou grande resistência da ‘bancada fundamentalista’”, diz Rafaelly Wiest, se referindo aos setores mais conservadores do parlamento, como a Bancada Evangélica. Em 2006, a deputada federal Iara Bernardi (PT-SP) apresentou o projeto de lei 122, que tratava da criminalização da homofobia. O texto teve tramitação lenta, e foi alvo de oposição ferrenha, liderada pelo deputado Marco Feliciano. “Com isso, a gente entendeu que não ia conseguir firmar maioria para votar o PL”, afirma Rafaelly.

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A recusa do parlamento em discutir a criminalização resultou em duas ações no Supremo Tribunal Federal. Ambas argumentavam que, ao não pautar a questão, o legislativo se omitia. Àquela altura, o movimento LGBTI+ acumulava vitórias na Corte. “Em 2011, o STF votou em favor do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, veio o direito à adoção. Em 2015, o direito a pessoas transo retificarem o prenome”, enumera Rafelly.

Quando a discussão da criminalização chegou ao STF, 39 países já dispunham de legislação para punir discursos de ódio contra pessoas LGBTI+. No dia 13 de junho de 2019*, 8 dos 11 ministros do STF votaram que, na ausência de uma lei específica, a LGBTIfobia fosse punida de acordo com a lei de Racismo (7716/85).

A decisão tornou a LGBTIfobia em crime inafiançável. “Com isso, houve uma mudança de paradigma jurídico”, afirma o advogado Marcel Jeronymo, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Crimes motivados por LGBTIfobia passaram a ser entendidos como crimes de ódio, puníveis com até 3 anos de reclusão.

Nos 12 meses desde a votação, a criminalização não bastou para diminuir o número de assassinatos de pessoas LGBTI+ no país. De acordo com levantamento do GGB, foram 329 crimes violentos contra essas populações no ano passado. O número é menor que o registrado em 2018 (420), mas superio à cifra de 2015. A decisão também não provocou mudança imediata nas práticas de juizes e delegados. “O grande obstaculo para fazer cumprir o entendimento do STF é a cultura jurídica. Ela é ainda entranhada de certa lgbtifobia. A interpretação  de um crime de ofensa à honra e à dignidade ainda está muito sujeita aos critérios   do aplicador da lei, seja ele um delegado, um promotor, um atendente na delegacia”, diz Marcel.  Na tentativa de mudar essa cultura jurídica, a ABGLT planeja uma campanha centrada em profissionais desse universo. Batizada de Cumpra-se, deve acontecer no segundo semestre deste ano.

Ainda que as estatísticas de violência não tenham melhorado, Rafaelly diz sentir uma mudança de atitude:”As pessoas, agora, sabem que existe um instrumento jurídico que as ampara. Elas se sentem mais capazes de responder a agressões”, afirma. Para Manoela Alves, do Leõs do Norte, a decisão do STF foi “uma aula de direito constitucional”. “A criminalização da LGBTIfobia foi um recado do judiciário, que reconheceu que a omissão do legislativo implica em mortes”, afirma.

Apesar de comemorada, a criminalização foi também uma decisão controvertida. Existe o temor de que ela se converta em mais uma medida encarceradora, justo em um país com a terceira maior população carcerária do mundo: são mais de 700 mil pessoas presas. “Essa política de encarceramento recai, sobretudo, sobre a população negra e periférica”, pondera Mariah Rafaela Silva, do Conexão G. Segundo ela, nessa discussão, é importante atentar para a maneira como as violências se acumulam e se encontram. “Segundo o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) de 2019, 82% das pessoas trans mortas no Brasil eram também negras. Isso significa que suas mortes também foram provocadas pelo racismo”, afirma.

Para ela, se o Brasil quiser avançar na construção de uma democracia justa, deve assumir o compromisso de combater a LGBTifobia e o racismo de maneiras efetivas.

CORREÇÃO: a votação no STF foi concluída no dia 13 de junho de 2019. Uma versão anterior desse texto informava o dia 8 de junho.

Foto de topo: Registro da V Caminhada pela Paz do Grande Bom Jardim, em Fortaleza (Lucianna Maria da Silveira Ferreira/Cedeca-Ceará)

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