Na Bahia, jovens compõem rap para refletir sobre racismo
Projeto Parceiros de Escrita vai reunir letras em livro e CD. Atividades recorreram à musica para pensar sobre masculinidades negras
Rafael Ciscati
5 min
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Rodrigo do Nascimento circulava distraído pelos corredores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira (BA), quando deu de cara com um panfleto que atraiu sua atenção. Em letras garrafais sobre um fundo alaranjado, o cartaz convidava jovens homens negros a participar de uma “oficina de escrita de si”. Avisava, ainda, que o trabalho usaria como referência letras do rap nacional. A proposta interessou: desde a adolescência, Nascimento ensaia versos próprios. Nascido na cidade de Cruz das Almas, no interior do estado, cresceu em uma família pobre e com pouco acesso à educação formal. Começou a trabalhar aos 11 anos de idade, acumulou reprovações na escola e estava prestes a desanimar dos estudos quando, enfim, passou no vestibular para o curso de serviço social. Entre um dissabor e outro, as letras de rap o acompanharam: “Sou um pouco tímido, e não gosto de falar sobre a minha vida. O rap me permite passar minha mensagem com maior liberdade”, explica. De válvula de escape, o ritmo logo passou a ser parte fundamental da vida do jovem. Hoje, aos 26 anos, ele participa de um coletivo que apresenta composições próprias. Por causa da música, o convite feito pelo cartaz soou tentador. Nascimento decidiu participar.
Os encontros faziam parte do projeto Parceiros de Escrita, criado pelo coletivo Brincadeira de Negão. Ao longo de quatro oficinas, realizadas em 2019, o grupo abordou uma gama variada de asuntos: de discussões sobre racismo institucional ao trabalho de composição musical. Agora, as letras de rap escritas pelos participantes durante as atividades serão reunidas em um livro, já em processo de finalização. O grupo organiza, ainda, a gravação de um CD — o trabalho em estúdio começaria em março, mas foi interrompido pela pandemia do novo coronavírus. A ideia central é fazer da música um instrumento de reflexão crítica: “Historicamente, o rap e o hip hop trazem mensagens de crítica social. E são utilizados como instrumento pedagógico”, diz o sociólogo Gimerson Roque, coordenador do projeto. “O Parceiros de Escrita segue esse caminho”.
Criado em 2013, o Brincadeira de Negão nasceu como um grupo de pesquisa na UFRB. Com o tempo, seus participantes se interessaram por uma discussão então incipiente — a que tratava de masculinidades negras. O debate é amplo, e envolve reflexões sobre o lugar do homem negro na sociedade brasileira, e sobre como as muitas pressões sociais interferem na maneira como esses homens se relacionam com a sociedade e consigo mesmos. “A gente pensa nas masculinidade negras como um tema guarda-chuva. Entendendo que a identidade do homem negro é fruto da intersecção de gênero, raça e classe”, explica Roque.
O debate, conta Roque, ganhou relevo nos últimos quatro anos, conforme surgiram novos grupos interessados nessa discussão. O Parceiros da Escrita foi a primeira iniciativa do Brincadeira de Negão focada em levar o tópico para além dos muros da universidade. O trabalho foi apoiado pelo Fundo Brasil, por meio do edital Combatendo o Racismo a partir da Base, lançado pela Fundação em 2018.
Na esperança de atrair público diverso, as oficinas foram anunciadas em rádios comunitárias e divulgadas por uma caixa de som que circulou de moto por São Félix e Cachoeira: as duas cidades históricas do Recôncavo baiano que sediaram o projeto. Em ritmo de rap, o anúncio convidava os interessados a fazer música e escrever sobre a própria realidade. A escolha do ritmo soou natural aos organizadores do projeto. “O rap e o hip hop fazem parte do cotidiano dos jovens no recôncavo”, afirma Roque.
A música ajudou a atrair participantes. Mas, segundo Roque, o interesse despertado pelas oficinas decorre ainda de certo senso de urgência. Hoje, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, homens negros correspondem a 80% das vítimas fatais de intervenções policiais. De maneira geral, as chances de um homem negro ser assassinado equivalem a três vezes as chances de um homem branco morrer da mesma maneira. Aos indicadores de violência, unem-se outras pressões sociais, como a falta de emprego ou dificuldades de acesso à educação formal. O cenário nacional se repete nas cidades do recôncavo baiano. Em Cachoeira e São Félix, os relatos de violência policial se acumulam: “São comuns as histórias de jovens que foram mortos pela polícia. Ou que morrem numa suposta guerra de facções”, diz Roque.
A preocupação é refletida nas letras compostas pelos participantes do projeto. A matéria-prima para o trabalho foram as vivências compartilhadas durante as oficinas. “E foi muito curiosos perceber as semelhanças entre o que eles escreviam”, lembra Roque. Há passagens cândidas, sobre sonhos e relacionamento amorosos: “Lembre sempre/ não se esqueça / quem tem dor tem coração”, alerta uma das músicas. E há passagens em que desponta a crítica à atuação das polícias: “Os caras fardados na esquina/ Pensei não tem saída / Sair correndo a solução /Mas alguém grita: pega ladrão”, canta outra composição.
Mesmo quando falam de violência, no entanto, as letras parecem lançar um olhar positivo para a realidade, indicando que é possível superar adversidades. É essa, pelo menos, a mensagem que interssa ao rapper Rodrigo Nascimento. Através de suas letras,ele diz querer inspirar seus ouvintes : “Quero compartilhar experiências importantes, com as quais as pessoas se identifiquem”, conta. “Escrevo para ajudar outras pessoas”, afirma. Logo, emenda uma rima que resume suas intenções: “A dor e a revolta são todas minhas/ Por força de vontade superei/ Cheguei até a ponta do penhasco mas não me joguei/ Troquei desespero por autoestima, e essa guerra ganhei”.
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