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Ibama e a sentença de morte do Médio Xingu

Decisão do Ibama permitiu à usina de Belo Monte reduzir em 90% a vazão da Volta Grande do Xingu, trecho de 130km de rio. Medida afeta pescadores e pode levar espécies à extinção

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por Verena Glass – No ano de 2020, o Médio Xingu sofreu uma das piores secas da sua história. Aliado a um aumento exponencial das queimadas, do desmatamento e dos conflitos fundiários, o fenômeno comprovou a previsão de dezenas de cientistas e do povo beiradeiro de que a demanda de água e a própria existência da usina de Belo Monte se configuraram como maior vetor de degradação socioambiental da região, cujas proporções chegaram a um limite a partir do qual o Médio Xingu vai sofrer danos irreparáveis.

No final de 2019, teve início uma disputa acirrada entre a Norte Energia e autoridades ambientais pelo destino da água que verte pela Volta Grande do Xingu, trecho de cerca de 130 km que teve seu fluxo normal desviado para alimentar as turbinas de Belo Monte. A empresa tentou forçar a implementação de um hidrograma (o chamado hidrograma de consenso) que, de acordo com pesquisadores, técnicos do Ibama, o Ministério Público Federal e principalmente a população beiradeira, impossibilita a sobrevivência e a reprodução da vida de animais, plantas e pessoas no chamado Trecho de Vazão Reduzida do Xingu. No primeiro quadrimestre do ano – época do inverno amazônida, quando as chuvas alimentam o rio e seus afluentes de forma a permitir a piracema e a reprodução de demais espécies aquáticas –, por exemplo, a Norte Energia propõe que, da vazão normal para o período, apenas cerca de um décimo deve ser liberada para a Volta Grande.

Em 2020, a tragédia que a adoção deste hidrograma significa para o Xingu foi temporariamente impedida por um decreto do Ibama, que determinou uma vazão maior e rechaçou categoricamente todos as manobras da Norte Energia, simplesmente porque a suposta viabilidade ecológica do manejo da água proposto pela empresa não tem nenhum fundamento técnico, segundo o órgão.

Esta posição foi mantida pelo Ibama até o início deste ano, quando novamente estudos sobre a viabilidade do “hidrograma de consenso” foram rejeitados. “As condições de degradação ambiental podem piorar”, concluiu um parecer do órgão no final de janeiro. No dia 1º de fevereiro, o Ibama definiu que, pelo menos até metade do mês, a empresa teria que liberar 10.900 m³ por segundo na Volta Grande, enquanto a proposta da Norte Energia era uma vazão de apenas 1.600 m³ por segundo. Uma decisão definitiva viria na semana seguinte.

Nesses primeiros dias de fevereiro, o Xingu e seu povo suspiraram aliviados. Parecia que os estudos científicos, as ações judiciais do MPF e a grande mobilização dos Núcleos Guardiões, dos pescadores, ribeirinhos, agricultores e indígenas, que trancou a Transamazônica em novembro passado exigindo água para a piracema de 2021, tinham prevalecido.

Visualize: para além da falta de peixes (os beiradeiros e indígenas denunciam que a piracema não tem ocorrido na Volta Grande desde 2016), da impossibilidade de navegar o rio seco, da perda das roças pela estiagem e da paralisia e da fome imposta pelo Coronavirus, que atinge a região de forma violenta, o povo do Xingu foi vitimado por outras tragédias, como a volta da malária (Altamira foi um dos poucos municípios do Pará que teve aumento de casos – 40% – segundo a SESPA, com 884 notificações em 2020) e da violência no campo, com invasões de lotes, ameaças de morte, e grandes máquinas do garimpo ilegal triturando a mata. Não é de se estranhar, portanto, que a perspectiva de que haveria água no Xingu fosse de alguma forma reconfortante para o seu povo.

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Naquela mesma semana, porém, bem longe das barrancas do Xingu, nos gabinetes do governo federal, do Ministério das Minas e Energia e da Eletrobras, nos escritórios do setor energético e nas redações de grande parte da imprensa corporativa, o bom senso do Ibama causou tempestade e fúria. Declarações e manchetes sobre supostas perdas econômica de Belo Monte e seus acionistas, e um consequente aumento da conta de luz para o povo brasileiro – que teria que arcar com estes prejuízos – se atropelavam naqueles dias. Transbordavam despeito e ganância, e obviamente não se leu ou ouviu uma única palavra de empatia com o sofrimento das vítimas de Belo Monte.

No dia 8 de fevereiro, veio então uma notícia que deixou completamente atônito quem conhece a região: o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, contrariando os pareceres de seus próprios técnicos, cedeu à Norte Energia, rescindiu seus despachos anteriores e aceitou o hidrograma da empresa. A Volta Grande do Xingu passa a receber, a partir do dia 8 de fevereiro, apenas um décimo da água que lhe é de direito de acordo com seu ciclo natural.

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Mitigar o imitigável
No dia da divulgação desta decisão, perguntamos, incrédulos, a uma bióloga, especialista na Volta Grande: “mas e a piracema???”. “Já era!”, veio a confirmação de que havia sido decretada oficialmente a extinção da ictiofauna — o conjunto das espécies de peixes — na Volta Grande do Xingu.

Como parte de seu acordo, Ibama e Norte Energia firmaram um Termo de Compromisso Ambiental (TCA) no valor de 157.492 milhões de reais, a serem aplicados pela empresa em diversas medidas de “mitigação” para “famílias interessadas” (o documento não diz quem seriam, quantas seria, de quais comunidades seriam) durante os próximos três anos. Segundo o acordo, o TCA tem por objetivo “estabelecer que a UHE Belo Monte operará o denominado Hidrograma de Consenso, mediante a execução de medidas adicionais de mitigação e compensação dos impactos do empreendimento para o TVR [Trecho de Vazão Reduzida]”. Compensação dos (já previstos) impactos… como compensar a morte certa da Volta Grande?

O TCA explica: jogando comida pra peixe no rio (as frutas nativas que alimentam a ictiofauna estão caindo no seco; já há anos; e os peixes que sobreviveram até aqui estão só pele e osso); criar peixes em laboratório (através de um projeto experimental de biotecnologia); incentivar a “pesca sustentável” (?????); resgatar e salvar peixes presos em poças (formadas pelo desvio da água para as turbinas da usina); atendimento a doentes de malária (cuja expansão é potencializada pelo empoçamento causado pelo desvio da água para as turbinas da usina); gastar 18 milhões para pagar mil (1000) horas de voo de dois (2) aviões em três (3) anos para fiscalização ambiental do Sul e Sudeste do Pará; oficinas de criar galinha; oficinas de plantar roça e vender produtos; oficinas de colher açaí; oficina de bater açaí… O TCA também prevê a instalação de 78 antenas de internet (não diz onde) com alcance de 100 metros (???) e franquia de 100 GB (!!!). Acabando a franquia (o que pode acontecer em um dia), acaba a internet. “Ah, mas vai dar pra continuar usando zap”, consolam eles.

O que aconteceu depois daquele dia

Depois do anúncio do acordo que destinou a água da Volta Grande para Belo Monte, a conta de luz do povo brasileiro caiu? Claro que não. No dia seguinte, a ANEEL divulgou a previsão de que pode é aumentar 13% esse ano. Já a Eletrobrás (que detém 50% das ações de Belo Monte) comemorou o (incompreensível para nós) reconhecimento no The Sustainability Yearbook 2021, ranking global de sustentabilidade da agência de rating Standard&Poor’s. Suas ações tiveram uma alta de 0,47% no pregão da Bolsa de Valores…

Ainda no dia 9 de fevereiro, o Ministério Público Federal requisitou ao Ibama os dados técnicos que teriam embasado a mudança repentina de posição do órgão. Resumidamente, o MPF quis saber como e por que o Parecer Técnico que demonstra que “os dados presentes no processo de licenciamento [de Belo Monte] são insuficientes para garantir que não haverá piora drástica nas condições ambientais e de modo de vida na Volta Grande do Xingu no caso de sua implementação”, foi desconsiderado. E como o Ibama chegou à conclusão de que as medidas de mitigação acertadas com a Norte Energia impedem que a aplicação do hidrograma acordado resulte na “piora drástica nas condições ambientais e de modo de vida na Volta Grande do Xingu no caso de sua implementação”.

resposta do Ibama ao MPF é no mínimo desatinada. O documento afirma que “não houve uma mudança de posição do Instituto em relação ao posicionamento que vinha adotando desde o ano passado; o que houve foi o reconhecimento da empresa [Norte Energia] da necessidade de se ampliar as medidas de mitigação e compensação para o TVR [Trecho de Vazão Reduzida]”. Na verdade, prossegue o documento, o Termo não traz nada de novo, apenas amplia um pouco as compensações previstas na condicionante do Plano Básico Ambiental (PBA), o que comprovaria que o Ibama adota “cautela” em relação ao processo.

Enquanto isso no Xingu, espaçosa, impiedosa e implacável a morte acelerou o ritmo da ocupação dos territórios. No mesmo dia 11, seu Raimundo Viera das Chagas, ribeirinho, registrou seu avanço, nessa semana em que Ibama e Norte Energia a declararam regente sobre o Médio Xingu

Publicado originalmente no site do Movimento Xingu Vivo

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