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Depois de relatar tortura em penitenciária, servidores dizem sofrer intimidações

Funcionários de presídio em Sinop dizem que relatório com seus nomes e fotos circula em grupos de policiais penais. Casos de tortura foram denunciados por Pastoral Carcerária

Rafael Ciscati

10 min

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Um grupo de servidores da penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, em Sinop, no Mato Grosso, conta sofrer tentativas de intimidação desde que depoimentos seus, relatando casos de tortura supostamente praticados por policiais penais, se tornaram públicos. Os problemas teriam começado em maio do ano passado, depois que um relatório contendo depoimentos de servidores técnicos e de detentos da unidade passou a circular em grupos de whatsapp de policiais. O documento continha os resultados de uma inspeção surpresa conduzida pela Corregedoria do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT) em dezembro de 2020, e feita a partir de uma denúncia da Pastoral Carcerária à Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso. O documento continha, também, fotos e os nomes completos dos depoentes. 

Deflagrada para apurar denúncias de tortura, a operação do TJ-MT culminou na transferência de 12 policiais penais para outras unidades prisionais, na abertura de um processo administrativo na Secretaria de Segurança Pública do Estado e em um processo criminal. Em maio do ano passado, o relatório teria chegado a grupos de whatsapp — dando início, segundo os servidores da unidade prisional, a uma sequência de ameaças veladas. Num dos lances mais recentes, um dos policiais transferidos de Sinop divulgou um vídeo nas redes sociais, em que manifesta indignação e responsabiliza uma das servidoras ouvidas pelo TJ pela sua transferência.  Os funcionários argumentam que a decisão de transferir os policiais foi tomada antes de os depoimentos serem colhidos. 

Em um ofício enviado à justiça de Mato Grosso no final de fevereiro, o grupo de servidores — que reúne perto de 10 membros do corpo técnico da penitenciária — disse conviver há mais de um ano com um clima “hostil, coibidor e intimidante”. Eles continuam a trabalhar, diariamente, na penitenciária. “Estamos com medo”, afirma um dos funcionários, que pediu para permanecer anônimo. “Alguns têm problemas para dormir e já procuraram ajuda psiquiátrica”. O grupo cobra que sejam tomadas providências para garantir sua proteção. 

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso disse não ter sido informada sobre as ameaças feitas aos servidores. “Não chegou nenhum relato de ameaças sofridas pelos envolvidos no caso  e sim um pedido de providências contra um Policial Penal por ter divulgado um vídeo na internet se dizendo injustiçado pois não teria agredido ninguém”, disse o órgão por email. 

Sobre a divulgação do relatório, afirmou que “o documento não era sigiloso e que os réus tiveram acesso a ele”. Em abril de 2021, no entanto, a Pastoral Carcerária pediu à Justiça que o relatório fosse posto em sigilo. O pedido foi atendido pelo desembargador José Zuquim Nogueira, corregedor-geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT) .

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT) informou que os policiais implicados na apuração tiveram acesso ao material, de modo a se defender. “Importante ressaltar que os próprios acusados também  tiveram acesso às informações relativas ao caso, conforme previsto na legislação, em consagração aos princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, visto que eles estavam respondendo a procedimentos administrativos que poderiam resultar em perda do cargo. A legislação garante ao acusado ter acesso ao teor das denúncias”, informou o tribunal, por email, à Brasil de Direitos. 

Os servidores que prestaram depoimento, e que se dizem ameaçados, questionam por que suas identidades não foram preservadas.  A Brasil de Direitos teve acesso a prints do material que circulou em grupos de whatsapp. Os textos informavam nome completo e traziam as fotos dos depoentes. 

A denúncia de que a penitenciária Osvaldo Florentino era palco de torturas foi feita pela Pastoral Carcerária, uma organização do terceiro setor que trabalha em defesa dos direitos humanos no sistema prisional, à Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso no final de 2020. No dia 14 de dezembro daquele ano, uma comitiva formada por juízes e defensores públicos, liderada pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do Tribunal de Justiça do Mato Grosso fez uma visita surpresa à unidade. 

De acordo com os servidores, o grupo chegou à penitenciária por volta das 8h da manhã. “Logo que entrou na carceragem, o juiz pegou o chefe da disciplina todo suado e vermelho. Ele acabara de entrar numa cela e bater, com o cassetete, numa cela inteira”, conta uma funcionária. Mais de 70 presos, escolhidos por amostragem, foram ouvidos. Chamados a falar, pelo menos 14 funcionários do corpo técnico prestaram depoimento. Eles contam que, na ocasião, expressaram o temor de sofrer represálias. “Eu perguntei se os depoimentos seriam anônimos. O juiz me disse que não, mas que o conteúdo do relatório seria protegido”, afirma uma das pessoas ouvidas durante a apuração. Num dos depoimentos que constam no relatório da inspeção, uma das pessoas ouvidas chega a dizer que tem receio em falar, e que já fora aconselhada a “não mexer com os agentes”. 

O relatório do TJ-MT ficaria pronto em fevereiro do ano seguinte. Segundo informações divulgadas pela imprensa na época, a inspeção constatou que havia prática sistemática de tortura na penitenciária. Os relatos informam que os agentes penitenciários puniam os detentos usando uma técnica chamada “chantilly”, que consistia em aplicar spray de pimenta diretamente nos olhos da pessoa presa. Haveria, ainda de acordo com o relatório, uso indiscriminado de armamento não letal. 

Em abril daquele ano, o desembargador José Zuquim Nogueira, corregedor-geral da Justiça, atendeu a um pedido da Pastoral Carcerária Nacional e determinou que os autos tramitassem em sigilo,  “para preservar a segurança e integridade física dos envolvidos no relatório”. 

Em maior, de acordo com os servidores, o material passou a circular em grupos de whatsapp. Os policiais implicados nos relatos tinham sido transferidos da unidade. Mas tinham restado outros incomodados com a condução do processo. “Alguns agentes imprimiram o relatório. E ficavam lendo, em voz alta, pelos corredores da penitenciária” conta um funcionário. “Eles jogaram a culpa, a responsabilidade pelo que aconteceu, em cima de nós”. 

Uma servidora conta ter recebido ameaças. “Disseram que, se algum policial chegar a ser exonerado, eles nos matam”, afirmou. Assustada, a pessoa conta que pretende mudar de profissão, e deixar de trabalhar no sistema prisional. “Há um ano eu não durmo direito. Não tomo remédios para dormir por medo de alguém entrar em casa para me matar e eu não escutar”. 

O caso voltou à tona com a divulgação de um vídeo em que um dos policiais penais se queixa do ocorrido — e cita, nominalmente, uma das funcionárias ouvidas pelo judiciário. Os funcionários da penitenciária acham que os policiais temem o avanço do processo administrativo em curso na Secretaria de Segurança Pública — e tenham decidido retomar a pauta para se defender. Os servidores têm receio de ser chamados a prestar um segundo depoimento. “Alguns já disseram que, se isso acontecer, vão negar tudo o que falaram em 2020”. Questionada sobre o avanço do processo administrativo, a Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso não respondeu. 

Especialistas escutados pela Brasil de Direitos explicam que, embora casos como esse — que envolve a divulgação de um relatório — não sejam comuns, eles denotam um problema sério: “Infelizmente, os órgãos do sistema de justiça criminal não tratam denúncias de tortura como algo grave, que exige apuração imediata e a proteção de vítimas e testemunhas”, diz Lucas Gonçalves, advogado da Pastoral Carcerária Nacional — a entidade que denunciou os casos de tortura em 2020. “Há casos em que os órgãos responsáveis fazem apurações mais sigilosas, preservando as identidades dos envolvidos. Mas isso é raro”. 

Assessor de Advocacy do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Bruno Renato Teixeira explica que, para preservar o corpo técnico, era possível colher depoimentos anônimos. Essa medida evitaria a exposição dos depoentes mesmo em caso de divulgação do relatório. Por anos, Teixeira atuou como perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura — um dos pincipais órgãos anti-tortura do país. Criado em 2007, o Mecanismo faz inspeções a unidades prisionais, locais de acolhimento de crianças e idosos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas.

Teixeira conta que o trabalho é orientado por protocolos internacionais elaborados pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura das Nações Unidas. “A orientação é sempre de preservar ao máximo, e garantir o anonimato das pessoas que prestam esses depoimentos”, afirma. Segundo ele, na apuração de suspeitas de tortura, os depoimentos de testemunhas devem ser encarados como somente um dos elementos necessários para provar que as violações ocorreram. Além dos relatos, é preciso recolher outras evidências, como exames de corpo de delito, por exemplo. Ou boletins médicos que indiquem que os apenados não são tratados como deveriam. “É necessária uma série de informações. O depoimento, por si só, não é determinante”. 

A apuração conduzida pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), diz ele, poderia seguir esses mesmos protocolos.

Os GFM foram criados pela resolução  nº 214 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2015. Hoje, há grupos nos tribunais de justiça de todo o país. Seu  objetivo é acompanhar prisões provisórias e as condições de vida nos presídios. São coordenados por um desembargador e compostos por funcionários dos tribunais. Pessoas familiarizadas com esse trabalho, consultadas pela Brasil de Direitos, atestam que o número de denúncias de tortura nas penitenciárias de Mato Grosso caiu desde que o GMF começou a atuar — uma possível prova da efetividade desse trabalho. “A atuação dos GMF é louvável. Mas, de maneira geral, falta treinamento e formação continuada para esses servidores”, diz Teixeira, do IBCCRIM. “Há casos de sobrecarga: além de atuar no GMF, esses servidores realizam outras atividades dentro do TJ”.

Ele e Lucas Gonçalves, da Pastoral Carcerária, ainda acrescentam que os policiais penais que foram transferidos têm direito à ampla defesa — mas que isso não exime o poder público de tomar providências para proteger os servidores que prestaram depoimento. “Transmitir o conteúdo do relatório para os acusados faz parte do direito de defesa. Mas o Tribunal de Justiça ignora que, quando estamos trabalhando com questões de violência de Estado, é imprescindível que testemunhas e vítimas tenham sua identidade preservada”, afirma Gonçalves. Segundo Teixeira, nomes dos depoentes poderiam ter sido tarjeados, para evitar sua identificação. “O relatório, por conter informações relacionadas aos agentes e servidores, como nome e função, deveria ser tratado com reserva e restrição de acesso” afirma. “Uma vez instaurado o inquérito, e sendo os servidores convocados formalmente para depor, deveria ser decretado o sigilo”.

Hoje, os servidores ameaçados cobram medidas de proteção. “Às vezes, me pergunto se eu fiz certo ao falar”, conta um deles. “Porque, desde então, vivo com medo”. 

Foto de topo: a penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira (Divulgação: Secretaria de Segurança Pública do Estado do Mato Grosso)

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