Aborto: criminalização gera mais de 2 mil processos em oito anos
Para especialistas, estigma e insegurança jurídica dificultam acesso ao procedimento mesmo em casos em que o aborto é legal
Rafael Ciscati
8 min
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Entre 2014 e 2021, pelo menos 2533 processos criminais envolvendo casos de aborto ingressaram na justiça brasileira em primeira instância. A informação foi obtida por Brasil de Direitos por meio do Justiça em Números, base de dados mantida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e alimentada por tribunais de todo o país. Os processos tratam de casos em que o aborto foi provocado pela pessoa gestante ou por terceiros, mas com anuência dela. Considerado crime no Brasil, o aborto é legal somente em três situações: desde 1940, o código penal brasileiro admite que o procedimento seja realizado em caso de gravidez decorrente de estupro, ou naquelas ocasiões em que ela ameaça a vida da gestante. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a legalidade deveria ser aplicada também para os casos de gestação de feto anencéfalo, com má formação cerebral. Nas demais hipóteses, a prática pode ser punida com até 3 anos de reclusão.
Nessa sequência de anos, 2017 desponta como aquele em que mais processos criminais por aborto ingressaram na justiça: 598. Cada processo pode envolver mais de uma pessoa. O CNJ explica que o número real pode ser ainda maior. A conta compreende somente aqueles casos classificados como “aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento” . Como o órgão depende de informações enviadas pelos tribunais, há processos que não foram devidamente classificados e que, por isso, não entram nesse levantamento.
A base do CNJ não permite consultar o desfecho de cada caso — não se sabe se as mulheres implicadas nos processos criminais foram ou não condenadas. Mas a mera possibilidade de punição cria temores que, segundo especialistas, funcionam como um obstáculo: eles impedem a pessoa gestante de procurar os serviços de interrupção legal da gravidez ainda que ela tenha esse direito assegurado em lei. “Estamos no grupo de 20% das nações com legislação mais restritiva em relação ao aborto em todo o mundo”, afirma o médico Cristião Rosas. Membro da Rede Médica pelo Direito de Decidir, Rosas fez parte da equipe do primeiro serviço de interrupção legal da gravidez criado no Brasil em 1989. “Hoje, a mulher que precisa interromper a gravidez tem medo de ir ao médico e ser desacreditada. Tem medo de ir para a delegacia, de ser humilhada”.
Os limites impostos ao aborto legal voltaram à discussão em junho, quando o ministério da Saúde publicou um cartilha direcionada a profissionais de saúde com orientações sobre casos de abortamento. No material, a pasta afirma, incorretamente, que não existe aborto legal no Brasil: “O que existe é o aborto com excludente de ilicitude”, diz o documento. A cartilha também sugere que todos os procedimentos realizados no país devem ser investigados, de modo a estabelecer se devem ou não ser punidos.
A publicação foi imediatamente criticada por especialistas em saúde pública e organizações de defesa dos direitos das mulheres. Em uma nota de repúdio conjunta, a Rede Médica pelo Direitos de Decidir e a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras avaliaram que o documento do governo “traz graves violações de direitos humanos e de conceitos básicos da Medicina”. Na nota, as organizações defendem que o aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública, não como questão criminal. E ressaltam que o termo “aborto legal” é utilizado em documentos técnicos desde a década de 1960.
Insegurança jurídica
Entre especialistas, existe o temor de que o posicionamento do ministério crie um quadro de insegurança jurídica que acabe por dificultar, ainda mais, o acesso de mulheres e meninas ao aborto. “Embora não possua caráter normativo, na prática, [o documento] pode limitar ou obstar o acesso a cuidados de saúde de mulheres e meninas em decorrência de sua imprecisão técnica e inconsistência científica, gerando em milhares de meninas, mulheres e profissionais de saúde, medo, coerção e uma sensação de insegurança jurídica” afirmou a defensora pública Nádila Coelho Monte na última terça-feira (28), durante audiência pública que discutiu o texto. “Se a redação atual for mantida, cotidianamente, vamos testemunhas meninas de 11 anos sem acesso à saúde, como testemunhamos nas últimas semanas no Brasil”.
A defensora fazia referência à menina de Santa Catarina que teve seu direito ao aborto negado pela juíza Joana Ribeiro Zimmer. Inicialmente, a criança fora atendida pela equipe do hospital universitário Polydoro Ernani, que decidiu não realizar o procedimento alegando que a gravidez já estava em estágio avançado. Essa é uma das orientações que também constam no manual do ministério da Saúde, segundo o qual o aborto só pode ser realizado até a 22ª semana de gestação. A informação contraria o que diz a lei brasileira, que não estabelece uma idade gestacional limite para a interrupção da gravidez.
Cristião Rosas conta que esse é um quadro já em vigor: “Existe uma ambiência de insegurança jurídica”, afirma ele. Embora a lei seja clara em definir em quais ocasiões o aborto pode ser praticado legalmente, há casos em que gestores de saúde impõe obstáculos à realização do procedimento — como a definição de uma idade gestacional limite que não consta na legislação. “Criam-se embaraços. Nem todos conhecem a lei e, nesse desconhecimento, acaba valendo a palavra de quem tem mais poder”. Na avaliação dele, há pessoas que tentam “impor suas crenças à revelia da legislação”, o que prejudica — ou mesmo impede — o trabalho das equipes médicas.
As dificuldades de acesso e o temor de criminalização expõem mulheres a riscos. Entre 2008 e 2015, o Sistema Única de Saúde (SUS) realizou, em média, 200 mil internações por ano relacionadas a complicações decorrentes de aborto. Segundo a Rede Médica pelo Direito de Decidir, de 2006 a 2015, 770 mulheres morreram vítimas de complicações relacionadas ao procedimento. Nesse conjunto, há aquelas que recorreram ao aborto em condições clandestinas e inseguras. Seu perfil é conhecido: a maioria das vítimas era de “pretas, indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sem companheiro”, informa a organização.
Esse perfil se repete também entre as mulheres que são processadas por abortar. Um levantamento realizado em 2018 pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo analisou casos de 30 mulheres que respondiam a processos criminais por aborto. A maioria tinha renda mensal de entre R$600 e R$900 e respondia pelo sustento da família. “O perfil dessas mulheres é, assim, bastante claro: são jovens em idade reprodutiva, já são mães e as principais responsáveis pelo sustento da casa, são pouco educadas e pobres. São primárias. Não são criminosas”, afirmava o trabalho.
Em 17 dos 30 casos analisados, as mulheres foram denunciadas pelos profissionais de saúde que as atenderam. A prisão foi feita no próprio hospital, com escolta policial e com algumas das mulheres algemadas ao leito. Nos casos estudados pela equipe da defensoria, despontam dois em que as mulheres foram denunciadas apesar de o aborto ter sido realizado dentro da lei. As duas, dizem os pesquisadores, tinham sido vítimas de estupro. Porém, “sem essa informação nos autos, as mulheres foram acusadas da prática do crime”, informa o levantamento.
Para Rosas, as restrições impostas ao aborto ameaçam tornar o Brasil uma exceção na própria América Latina, cujos países vem adotando legislações progressistas nesse campo. Seria uma inversão de rumos para um país que já ocupou lugar de pioneirismo nessa discussão: em 1989, o Brasil foi o segundo país do continente a criar um serviço de interrupção legal da gravidez, dirigido por Rosas no hospital do Jabaquara, zona sul da cidade de São Paulo. Aos poucos, o número de serviços se expandiu, embora tenha se mantido inferior ao necessário. Desde então, o cenário mudou. “Passamos de um quadro de apoio aos serviços de aborto legal para um quadro de ativismo anti-direitos liderado pelo governo”, diz ele. “É preciso que o país lembre que aborto é uma questão de acesso à saúde e de justiça social”.
Foto de topo: mulheres protestam em Brasília pela descriminalização do aborto em 2018 (Mídia Ninja)
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