Em Ventos do Delta, pescadores questionam impactos da energia eólica no Piauí
Documentário feito por associação de pescadores mostra descolamento entre promessa de desenvolvimento e o cotidiano das comunidades tradicionais
Rafael Ciscati
6 min
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Quando grandes torres para geração de energia eólica começaram a aparecer no litoral do Piauí, José Bureta lembra de ter levado um susto. Há gerações, a família de Bureta vive na comunidade de Pedra do Sal — uma vila de pescadores artesanais localizada no litoral da cidade de Parnaíba. A área é pipocada por dunas que inundam nos meses chuvosos, formando lagoas cheias de peixe. Além de pescar, Bureta e a família costumavam colher e vender as frutas que abundam na vegetação local: o caju, o murici, o jatobá, que a comunidade vendia na cidade próxima. Quando os aerogeradores chegaram, diz Bureta, as árvores foram para o chão. “Cortaram milhares de cajueiros”, lembra o pescador. “Proibiram a gente de entrar [nos terrenos] para pescar. Já não dá para coletar os frutos, não dá mais para pescar nas lagoas”.
Bureta e a comunidade de Pedra do Sal são vizinhos dos parques eólicos Delta 1 e Delta 2, da empresa Omega energia. São 62 torres com até 90 metros de altura que aproveitam a força dos ventos para gerar eletricidade. Inauguradas entre 2014 e 2016, as instalações respondem a uma necessidade real: a de diversificar a matriz energética brasileira, produzindo energia limpa. Quem vive na região, no entanto, diz não colher benefícios. Ao derrubar árvores e alterar a paisagem, os parques se chocaram contra os modos de vida de uma comunidade que, há mais de 200 anos, trata a terra como um bem comum. E que, hoje, diz não encontrar onde pastorear pequenos rebanhos, pescar ou colher frutos. “Por aqui, a vida só piorou”, assevera Bureta. Para ele, restou o constante zumbido provocado pelo girar das hélices dos aerogeradores. “Um barulho que acorda a gente durante à noite. E que, a gente sabe, é para a vida inteira”.
O conflito entre pescadores e empresa de energia é o mote do documentário Ventos do Delta. Produzido pelo Movimento de Pescadores Tradicionais do Piauí, com financiamento do Fundo Casa Socioambiental, o filme narra o descolamento entre a promessa de desenvolvimento, anunciada pela chegada da energia eólica, e a vida cotidiana dos pescadores. Aponta, ainda, a falta de planejamento do poder público que, segundo os pescadores, falhou ao autorizar o funcionamento dos parques sem antes considerar as necessidades da população local.
Cerca de 200 famílias moram na Pedra do Sal. São pescadores que, apesar de viver há mais de um século no local — a data exata de povoamento da ilha é incerta — não detêm a posse sobre as terras que ocupam. Desde 1989, elas pertencem, oficialmente, à família do ex-governador do Piauí Alberto Tavares Silva. O clã diz tê-las adquirido na década de 1940.
A praia da Pedra do Sal, em Delta do Parnaíba (foto: reprodução)
No início dos anos 2010, os Silva arrendaram parte das terras à Omega Energia. As famílias que moram na área dizem não ter sido consultadas. “As comunidades foram silenciadas durante o processo de licenciamento ambiental”, conta Luciano Galeno, do Conselho Pastoral dos Pescadores. “Na etapa das audiências públicas, o projeto já estava todo encaminhado”.
A chegada da energia eólica ao Piauí acompanhou a expansão dessa atividade pelo Nordeste brasileiro. De 2000 a 2015 (período em que foram construídos os parques na Pedra do Sal), a capacidade instalada de energia eólica no Brasil saltou de 20 GigaWats para quase 9 mil GW. Hoje, ultrapassa os 20 GW, segunda dados da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica). A maioria dos parques se instalou na região do semiárido nordestino. Nem sempre o processo é tranquilo: um artigo publicado em 2018 pela geógrafa Mariana Traldi, do Instituto Federal de São Paulo, conta que no município de Caetité, na Bahia, empresas de energia eólica entraram em conflito com comunidades quilombolas. Segundo ela, as empresas adquiriam terras de uso coletivo, ou firmaram contratos de arrendamento que desrespeitam o modo tradicional de vida das comunidades.
No trabalho, Mariana também conta que a construção dos parques eólicos gera empregos na região. Mas, na sua maioria, são vagas temporárias, e que exigem mão-de-obra com habilidades específicas, nem sempre encontrada em meio à população local. “Em geral, os parques eólicos, para funcionarem, precisam de um segurança armado e de um técnico, que é responsável por acompanhar a produção da energia e verificar possíveis problemas”, escreve a pesquisadora. Na Pedra do Sal, a ausência de empregos entra no rol de frustrações vivenciadas pela comunidade. “Quando as eólicas surgiram, havia a promessa de que haveria empregos e energia limpa”, diz Maria Celeste de Souza, liderança do Movimento de Pescadores Artesanais do Piauí. “Mas vieram trabalhadores de fora, que engravidaram as moças da comunidade e sumiram. Ficaram os filhos do vento”.
Com os aerogeradores visíveis da janela de casa, os pescadores se queixam da ausência de retorno social dos empreendimentos. “Pago caro pela energia elétrica que é produzida no meu quintal ” diz um dos entrevistados no filme. Por fim, apontam que o maquinário dos parques contamina com óleo as lagoas onde costumavam pescar. Em 2019, a associação de pescadores montou um dossiê em que documenta a presença da substância na água.
A Omega diz tomar precauções para mitigar impactos sociais. De acordo com a empresa, os terrenos onde estão os aerogeradores não são cercados, para permitir a circulação dos pescadores. “Ressalta-se que não é comum a adoção da circulação livre em áreas privadas de parques eólicos, mas optamos por tal modelo para garantir que atividades tradicionais continuassem normalmente”, disse a companhia por email. A empresa conta que oferece cursos à comunidade que vive nos entornos dos parques, e que assessorou pescadores na criação da Associação de Coletores de Sementes e Produtores de Mudas Florestais do Delta do Parnaíba – ACOSEMDELTA, em Ilha Grande, município vizinho à Pedra do Sal. Sobre a contaminação das lagoas, afirma realizar “estudos de monitoramento da qualidade da água em lagoas do parque e informa que não foi identificada a presença de óleos ou graxas, o que descarta a possibilidade de contaminação por esses componentes. Vale ressaltar que esses estudos são submetidos periodicamente ao órgão ambiental competente, que nunca apontou qualquer irregularidade”.
José Bureta acha insuficiente. Aos 63 anos, o pescador nasceu na Pedra do Sal, filho de lavradores. Ali criou seus filhos, sustentados pela pesca e pela venda das frutas da região. A vida, diz ele, era pobre mas boa. “Esse era um lugar maravilhoso e tranquilo” afirma. “Mas agora há menos frutos e menos pesca. Hoje, não tem tranquilidade: eu durmo e acordo com o zumbido dos aerogeradores”.
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