Retificação de prenome e gênero: no RS, ação de ONG garante gratuidade
Desde 2018, a retificação do registro civil pode ser feita no cartório, mas implica no pagamento de taxas. Ação da ONG Somos permite que pessoas acessem o direito gratuitamente
Rafael Ciscati
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Já fazia alguns meses que uma mesma queixa se repetia entre as pessoas que procuravam a ONG Somos, em Porto Alegre. Criada em 2001, a Somos atua em defesa dos direitos da população LGBTQIA+. Trabalha em várias frentes: propõe ações coletivas na justiça, orienta sobre cuidados em saúde, realiza pesquisas e, dentre várias outras ações, tira as dúvidas das pessoas que precisam retificar seu registro civil. Casos de pessoas transgêneros e não-binárias que queiram adequar seus documentos de modo a refletir sua identidade de gênero. Em teoria, o processo é simples e pode ser feito diretamente nos cartórios. Na prática, exige que a pessoa vença obstáculos burocráticos e custos financeiros. Era essa a queixa mais comum. “As pessoas tinham dificuldade para conseguir a certidão negativa de protesto, um documento pago exigido para fazer a retificação do registro civil”, conta Caio Klein, diretor executivo da Somos. O problema era tão recorrente que o grupo decidiu agir.
Desde o começo do março, pessoas que moram no Rio Grande do Sul e queiram alterar seus documentos podem obter a certidão negativa de protesto gratuitamente. A mudança é resultado de uma negociação conduzida pela Somos junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Klein explica que a medida é duplamente vantajosa: além de facilitar o acesso a um direito, a gratuidade da certidão desafoga os serviços públicos. A certidão negativa de protesto é um documento que informa que a pessoa não tem dívidas protestadas — que foram tornadas públicas num cartório.
Quem não pode pagar pela emissão do documento tem a possibilidade de procurar a Defensoria Pública e pedir para ser isento das taxas. Essa costumava ser a orientação dada pela Somos. “A defensoria abria um processo, algo que toma tempo e tem um custo”, afirma Klein. “Agora, isso deixou de ser necessário”.
>>Retificação de prenome e gênero ainda esbarra em burocracia e custos, diz Antra
A retificação do registro civil pode ser feita diretamente no cartório desde 2018. Naquele ano, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu que não é necessário um processo judicial para retificar prenome e gênero em documentos civis. Organizações LGBTQIA+ destacam, no entanto, que o direito é menos acessível do que poderia. Hoje, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) exige 17 documentos de quem solicita a retificação do prenome. Um levantamento organizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) em 2022 sugere que a burocracia afasta quem precisa do serviço. Em especial, as pessoas trans e travestis mais pobres. Segundo a pesquisa, que reuniu mais de mil respostas, entre as pessoas que não conseguiram fazer a retificação, a maioria (66%) tinha renda mensal inferior a um salário mínimo.
Além disso, embora o processo de retificação seja o mesmo em todo o país, as taxas cartoriais pagas por quem procura o direito podem variar. No caso da certidão negativa de protestos, muda também o número de estabelecimentos aos quais a pessoa precisa recorrer para conseguir a documentação. Em Porto Alegre, por exemplo, há três cartórios de protesto — e é preciso que a pessoa obtenha a certidão em todos eles. Em São Paulo (SP), há dez.
A pauta é especialmente cara à Somos. Em 2021, o grupo se notabilizou por organizar um mutirão que garantiu a retificação de prenome de mais de 35 pessoas não-binárias. A ação foi inédita em todo o país: pessoas não-binárias não foram incluídas na decisão do STF de 2018, o que torna o processo de retificação de registro mais penoso para elas. Antes disso, nos anos 2010, o grupo assessorou o primeiro caso em que, no Brasil, o direito à retificação de registro civil foi assegurado à uma pessoa que se declarava travesti. Àquela altura, essa mudança exigia um processo judicial. “Havia uma perspectiva patologizante da questão. Os tribunais pediam laudos médicos e, em alguns casos, até perícias. Não eram aceitas pessoas que se diziam travestis, somente pessoas que se declaravam transexuais”, conta Klein. “O caso que a Somos assessorou foi o primeiro em que a pessoa se declarou travesti do início ao fim do processo, e conseguiu retificar os documentos.”
Na avaliação de Klein, o acesso à retificação de prenome deve ser entendido como uma política de reconhecimento. A mudança ajuda a aproximar pessoas trans e travestis dos serviços públicos. “É notório que muitas pessoas trans não acessam o serviço de saúde pelo constrangimento de serem chamadas pelo nome pelo qual elas não se reconhecem”, diz ele. “Isso afasta as pessoas da educação, da saúde, da assistência. O reconhecimento abre portas para outros direitos”.
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