Na menor terra indígena do Acre, povo Huni Kuin replanta floresta que sumiu
Na terra indígena Colônia 27, o pasto degradado deu lugar a agroflorestas. Reflorestamento garantiu alimento aos indígenas, e permitiu que sua cultura sobrevivesse
Rafael Ciscati
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Quando o cacique Assis Kaxinawa nasceu, há 51 anos,o lugar em que vivia era cercado por florestas. “A natureza era farta”, lembra ele, que é cacique do povo Huni Kuin. “Tínhamos muita caça, muita pesca, muita mata preservada”. Kaxinawa vive na Terra Indígena Colônia 27, no estado do Acre. Trata-se da menor terra indígena da região norte: 305 hectares, o equivalente a 250 campos de futebol. O território, próximo da fronteira com o Peru, já foi menor. No ano 2000, os Huni Kuin conseguiram ampliá-lo, ao anexar vastos terrenos que, até ali, estavam sob a posse de fazendeiros da região. A conquista foi importante, mas agridoce. Naquela nova porção de terra, a floresta cedera espaço a pasto degradado.“Mas os Huni Kuin não vivem sem a floresta. Sem os igarapés, sem os rios”, afirma Kaxinawa. No lugar da floresta que sumira, seu povo decidiu plantar uma nova.
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Desde 2003, o povo Huni Kuin já reflorestou mais de 100 hectares de pasto degradado. Mal manejada, a terra tinha sido compactada pelo pisoteio do gado, e estava coberta por capim. Graças ao trabalho dos indígenas, a pastagem improdutiva deu lugar a agroflorestas: um sistema no qual a comunidade cultiva alimentos entremeados a árvores nativas. “Primeiro, nós plantamos macaxeira, banana, batata e inhame”, conta Biná Huni Kuin, um dos dois agentes agroflorestais indígenas em atividade na Colônia 27. Esses cultivos, explica ele, ajudam a adubar e preparar o solo, que logo se torna capaz de sustentar árvores frondosas. “A seguir, nesse mesmo lugar, são plantados o Ingá, o cupuaçu, a bacaba e o mogno”, completa, citando árvores nativas da Amazônia.
Biná aprendeu a manejar agroflorestas ao frequentar um curso oferecido pela Comissão Pró-Índio do Acre, uma organização indigenista que atua há décadas na região. Hoje, se encarrega de repassar o conhecimento técnico aos demais moradores da comunidade. Além dos cultivos, os Huni Kuin também criam peixes nativos em açudes. Parte da produção é destinada ao consumo das pouco mais de 140 pessoas que vivem na terra indígena. Parte é vendida nas cidades da região.
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Nos cálculos dos indígenas, desde 2003 foram produzidas mais de 100 toneladas de alimentos. “Todas as famílias da Terra Indígena Colônia 27 cultivam as agroflorestas” diz Biná. A adesão foi grande, mas a empreitada representou um desafio novo. Acostumados a viver próximos da mata,os Huni Kuin nunca imaginaram que teriam de plantar sua própria floresta. A mudança de hábito foi um passo necessário para garantir a sobrevivência desse povo, cuja cultura, por muito tempo, pareceu destinada a desaparecer.
A partir do final do século XIX, o estado do Acre recebeu um imenso contingente de migrantes . A maioria vinha de estados do nordeste ou do Peru para trabalhar na extração do látex de seringueiras. A substância é usada na produção da borracha.
Conforme os seringueiros seguiam o curso dos rios, adentravam território indígena, entrando em conflito com os povos da região. “Os invasores chegavam com armamento muito superior aos dos indígenas, promovendo a guerra do arco e flecha contra o rifle Winchester 44”, escreveu o antropólogo indígena Francisco Apurinã. Na sua dissertação de mestrado, Apurinã conta que esse período ficou marcado na memória dos indígenas do Acre como “o tempo das correrias”. O nome faz referência às expedições promovidas por seringueiros mata adentro.
Com o avanço dos seringais, muitos Huni Kuim passaram a trabalhar na extração da borracha: ora por vontade própria, ora à força. “Os seringueiros tratavam os indígenas como se fossem objetos”, conta Bina Huni Kuin. “Alguns indígenas eram marcados com ferro em brasa, para indicar que pertenciam a seus patrões”. Nos seringais, seus hábitos e tradições eram ridicularizados. Os indígenas eram forçados a falar português. “Meu avô costumava dizer que, quando um branco chegava numa casa Huni Kuin, o correto era falar a língua do branco”, lembra Biná.
A sorte dos Huni Kuin mudaria a partir da década de 1970. Foi quando chegaram ao Acre entidades como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Comissão Pró-índio do Acre. As duas instituições contribuíram para promover os direitos dos povos originários. Nessa mesma época, um grupo de Huni Kuim se instalou em 150 hectares de terra doados pelo prefeito do município de Taraucá. Aquele primeiro assentamento daria origem à Terra Indígena Colônia 27, cuja demarcação foi homologada em 1991.
O território seria expandido anos mais tarde, quando o governo do Acre adquiriu 200 hectares de pastagem e os destinou aos indígenas. A medida foi parte da estratégia de compensação adotada para mitigar os danos causados pela construção da BR-364, que corre junto da terra indígena.
Nesse meio tempo, a cultura Huni Kuim – que fora sufocada – aos poucos ganhou novo fôlego. “No tempo dos seringais, o povo Huni Kuim não era indígena: era seringueiro”, diz Biná. “Mas nossa realidade indígena nunca foi completamente esquecida. Ficou marcada nas nossas mentes, nos nossos espíritos”.
Hoje, cercados por fazendas de gado e sob ameaça constante de invasores, os Huni Kuin não vivem como seus antepassados. Tiveram de incorporar novos hábitos para manter vivas antigas tradições. “Tivemos de aprender a reflorestar, a usar a roçadeira e o trator”, diz o cacique Assis Kaxinawa. “Mas nunca esquecemos da nossa cultura. Agora, unimos elementos dos dois mundos”.
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