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Maternidade antitrans: transfobia cresce entre feministas radicais

Na internet, grupos de mães propagam que existe pressão para pais forçarem filhos a trocar de gênero por não aceitarem que serão gays e lésbicas

15 min

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por Camilla Figueiredo, da Agência Diadorim

Em 25 de novembro de 2022, um perfil no Instagram com quase 50 mil seguidores publicou um carrossel de imagens com o “alerta” antitrans: “protejam as crianças dissidentes de gênero”. Segundo a postagem alarmista, uma pressão social tem levado pais de meninas e meninos com inconformidade de gênero a procurarem meios de “forçar” o processo transexualizador de seus filhos.

Para a autora, que diz estar nas redes sociais para ampliar a consciência de classe sexual, “o desconforto ou repulsa por um ‘garoto afeminado’ ou uma ‘garota machona’ se chama homofobia”, escreve. Ela defende que a família que tenta acolher manifestações de inconformidade de gênero por parte das crianças e procura auxílio médico e psicoterapêutico é, na verdade, homofóbica ou lesbofóbica.

“A homofobia tradicional vai dizer para a mãe punir o filho, e proibi-lo de se comportar ‘como menina’”, justifica a mulher na legenda da publicação, que tem mais de 8 mil curtidas. “Já a homofobia progressista vai sugerir que a criança seja consertada através da alteração de gênero. Mentindo para a criança que ela ‘tem um cérebro de menina no corpo de menino’ ou que tem ‘pipi feminino’ — e inventando justificativas que acomodam o desconforto dos pais. É a cura gay revisitada.”

A postagem não tem qualquer embasamento em dados, pesquisas ou informações de credibilidade. Ao contrário, apela a fake news (de que existe pressão social para forçar crianças e adolescentes a trocar de gênero, e que as famílias que procuram auxílio médico nesse sentido são homofóbicas ou lesbofóbicas) e a ilustrações emotivas, como a de uma mãe que abraça com força um menino e uma menina. No entanto, esse tipo de conteúdo tem mobilizado milhares de seguidoras em redes sociais através de influenciadoras digitais que passaram a difundir teorias de “militância da maternidade” nas quais reproduzem, entre outras mentiras, discursos transfóbicos. São as chamadas “feministas radicais trans-excludentes” ou TERFs.


Reprodução de imagens publicadas em perfil trans-excludente, no Instagram.

Origem do termo

O registro mais antigo do uso do termo “trans-exclusionary radical feminists” (feministas radicais trans-excludentes, em português), ou TERFs, na internet, é de 2008. Ele foi escrito no blog da australiana Viv Smythe para se referir a mulheres cis que defendem a exclusão das trans da categoria “mulher”.

De acordo com a cartilha TERF, o gênero é uma construção social ideológica que serve apenas para enfraquecer a luta das mulheres e seu conceito deve, portanto, ser abolido. Para suas defensoras, apenas o órgão sexual de nascença importa. Assim, homens trans são, para elas, mulheres vitimizadas pelo patriarcado, e mulheres trans são homens querendo roubar a narrativa do feminismo. Pessoas não binárias, agênero e gênero fluído não existem para as terfistas.

O pensamento antitrans dentro do feminismo, entretanto, é bem mais antigo do que a postagem de Smythe. Tem origem no final da década de 1970, quando a estadunidense Janice G. Raymond publicou “The Transexual Empire: The Making of the She-Male”, livro que critica a trangeneridade. De lá para cá, com o recrudescimento de diversas pautas ultraconservadoras em todo o mundo, em resposta ao avanço das transformações sociais, o terfismo tornou a ganhar força.

Nos anos 2020, essa pauta passou a recrutar também mulheres ditas de esquerda e progressistas. Nas redes sociais, as “críticas de gênero” — como se autointitulam as terfistas — têm ganhado espaço recorrendo à defesa da infância e da maternidade.

Esses perfis reúnem milhares de seguidoras e disseminam pensamentos que reforçam a binariedade do mundo dividido pelo sexo de nascimento. O vocabulário comum entre elas também é recorrente. Definem “mulher” como “fêmea humana adulta” e usam os termos “linguagem fantasiosa/fantasia” para se referir a falas e teorias transinclusivas.

Não é raro encontrar, nestas páginas, discurso transfóbico que associa pessoas LGBTQIA+, principalmente a população trans, ao assédio sexual e à pedofilia. É uma estratégia comum também na extrema-direita: causar pânico moral para agregar públicos heterogêneos contra um inimigo comum inventado e, assim, ganhar votos, como mostramos nesta reportagem sobre a utilização da expressão “ideologia de gênero” nas redes sociais do clã Bolsonaro.

Em outro perfil do Instagram, hoje com mais de 60 mil seguidores, uma influenciadora explica que “gênero é um conjunto de ‘regras’ que existem para definir e demarcar qual é a expectativa sobre o comportamento de um grupo que nasce com um determinado sexo”. A publicação é de 22 de outubro de 2022 e tem mais de 6 mil curtidas.

Na legenda da imagem, a dona do perfil afirma existir uma “patologização da resistência da criança à socialização de gênero”. “Quando ela não demonstra estar em ‘conformidade com seu gênero’, ao invés de deixarmos ela em paz porque ela está certa em resistir a essa violência, dizemos que o problema é que ela nasceu no ‘corpo errado’ e que é preciso adequar o sexo de nascimento (que é imutável) ao ‘gênero’ [com] que ela se sente ‘confortável’”, explica. “O que tem acontecido em larga escala com base em muita medicalização e cirurgias danosas e irreversíveis.”

O texto completo publicado no site ligado ao perfil, na mesma data, critica os protocolos médicos criados para conclusão do “diagnóstico” de incongruência de gênero em crianças e defende que “o tratamento para a disforia corporal é terapia, acolhimento, conforto, aceitação do próprio corpo, elevação da estima, autocuidado”.

Na verdade, os parâmetros médicos para o atendimento de pessoas com incongruência de gênero estão na Resolução nº 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM). De acordo com a instituição, “o debate que levou à formulação do texto foi amplo e exaustivo”, envolvendo especialistas de diferentes áreas médicas e representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e de movimentos sociais, além de pais de crianças e adolescentes trans e de gestores de hospitais que já realizam esses atendimentos.

A médica da família e sexóloga Jaqueline Souza acompanha um paciente trans com 13 anos e conta que a família dele tinha muita dúvida sobre o que fazer, sobre o uso ou não do nome social no ambiente escolar, “mas com muito amor e com muita certeza de que estava ali pra ajudar esse adolescente, para minimizar os efeitos da disforia”. “Ele chegava pra mim com alguns sinais de sofrimento por causa da disforia de gênero”, conta.

Souza ressalta que nenhuma intervenção médica é permitida antes dos 16 anos, exceto pelos estudos de bloqueio hormonal, que só pode ser iniciado a partir da segunda fase do estágio puberal da puberdade, a Tanner 2. “E isso deve ser feito exclusivamente em caráter experimental, em locais onde haja protocolos de pesquisa de acordo com as normas do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)”, explica.

Nada impede, porém, que tanto as crianças e os adolescentes recebam atendimento de saúde especializado antes dos 16 anos quanto as famílias sejam acolhidas, inclusive como suporte para que esses indivíduos elaborem e processem as questões relacionadas à identidade de gênero. “Então a gente ganha aí alguns anos, né? De acompanhamento, para fazer seguimento clínico, com psicólogo, com a equipe multidisciplinar, traçando um plano terapêutico singular para essa criança, para esse adolescente”.

O que é o feminismo trans-excludente?

Se parece difícil entender como um movimento que tem por definição a luta contra o machismo e a misoginia pode reproduzir o mesmo discurso dos setores ultraconservadores da sociedade, aqueles mais fundamentalistas cristãos, é porque é confuso realmente. O que se tem visto na Europa, América do Norte e também na América Latina é que as feministas radicais trans-excludentes estão alinhadas com a extrema-direita na perseguição à população trans e travesti.

Para Maria Clara Araújo, autora de “Pedagogias das Travestilidades” e mestranda em Educação pela USP (Universidade de São Paulo), é incontornável o fato que feministas antitrans e a extrema-direita compartilham a mesma gramática. “Embora afirmem que defendem os direitos das mulheres, se alinham com grupos e parlamentares que são publicamente contrários à implementação de políticas que avancem direitos sexuais e reprodutivos.”

Beatriz Bagagli, que concluiu mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a dissertação intitulada “Discursos transfeministas e feministas radicais: disputas pela significação da mulher no feminismo”, em 2019, concorda que o alinhamento entre TERFs e conservadores é inegável.

“Eu vejo bastante artigos em língua inglesa que já investigaram essa aliança. Não acho que seja difícil de entender porque isso acontece porque, a despeito das diferenças entre esses grupos, eles têm de fato um ponto em comum, que é lutar contra o movimento de direitos da população trans. Então, na medida em que os direitos trans estão sendo colocados como alvo preferencial de pânicos morais (é algo que gera engajamento político nesse sentido, gera visualização em rede social, mobiliza atores até então meio adormecidos), é só questão de tempo para essa articulação acontecer de forma até espontânea”, analisa.

Nesse sentido, os ultraconservadores e as TERFs são unânimes: o que define homem e mulher é o sexo biológico de nascença, e não existe nada entre esses dois opostos, nem para além deles. Mas apesar de defenderem ideias que excluem as pessoas transgênero (e demais identidades de gênero) das duas categorias que acreditam serem as únicas possíveis, as feministas cissexistas não aceitam serem chamadas de TERF.

“Até a lógica de mobilização é a mesma dos bolsonaristas. Estão organizadas em algum grupo do Telegram, lá jogam publicações que dialogam com mulheres transexuais e travestis e elas aparecem para, literalmente, cometer crimes”, diz Maria Clara Araújo.

A doutoranda em Estudos sobre Gênero, Mulheres e Feminismos pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e ativista transfeminista Viviane Vergueiro enxerga duas possibilidades para essa aliança aparentemente improvável, a primeira delas está relacionada ao dinheiro.

“A gente sabe que as pautas conservadoras, de direita, têm uma capilaridade de captação e mobilização de recursos muito maior do que o campo progressista, e dentro disso eu explicitaria o campo LGBT, e mais especificamente ainda, o campo trans. Seguir o dinheiro traz uma hipótese”, comenta.

A segunda possível explicação, na opinião de Vergueiro, seria a busca pelo poder dentro dos movimentos feministas. “Os feminismos não são um corpo unitário. A interseccionalidade vem justamente de uma crítica a uma hegemonia, a uma priorização daquelas mulheres cis brancas no que chamam como pauta feminista”, explica. “Então olhar a interseccionalidade é olhar para formas políticas que, apesar de se colocarem como progressistas, são muito conservadoras se observadas a partir de lentes interseccionais. Elas podem não só ser desatentas a uma pauta racial, de luta de classes, por exemplo, mas ela pode ser ativamente conservadora.” É aí que entra a proteção de crianças e adolescentes como uma das principais pautas de ideologias que exploram o medo.

Ataque antitrans nas redes sociais

Em março, a cruzada antitrans liderada por perfis de “feminismo crítico de gênero” e de militância materna pulverizou ataques a postagens transinclusivas em páginas de notícia e até do governo federal.

Um desses casos foi contra a ação da revista AzMina e do site Gênero e Número, que celebraram “a vida e a luta das mulheres trans” no Dia Internacional da Mulher. Na ocasião, os veículos de comunicação receberam uma enxurrada de críticas insistentes nas redes sociais. Mesmo tendo explicado que não toleraria transfobia e comentários transfóbicos poderiam ser restringidos ou excluídos, basta acessar qualquer postagem dAzMina sobre o assunto no mês de março para encontrar diversas falas transfóbicas.

Antes disso, em janeiro, outro episódio chamou atenção quanto ao poder de mobilização digital das feministas antitrans, com comentários preconceituosos em foto de representantes da Antra postada no Instagram do Ministério das Mulheres. Uma comitiva da organização se reuniu com a ministra Aparecida Gonçalves, no dia 26 daquele mês, e entregou o dossiê anual com os números de assassinato de pessoas trans no Brasil ao governo.

Na legenda da foto, foi incluída uma fala da própria ministra, na qual ela diz: “O ministério é ‘das mulheres’ porque elas são diversas e são plurais. E está à disposição e será parceiro na execução de políticas públicas para pessoas trans e travestis e em combate ao preconceito”.

Em resposta à foto, no entanto, diversas pessoas escreveram comentários transfóbicos, criticando o encontro — a maioria de autoria de mulheres. Em muitos deles, há contestação da definição de mulher, com recorrente uso de termos como “macho” e “fêmea”.

Em uma publicação no Twitter, a Antra comentou os ataques. “Feministas Trans Excludentes mobilizaram um ataque coordenado e estão deixando comentários altamente violentos no post do Ministério das Mulheres por termos sido recebidas para discutir a proteção de nossa população”, escreveu a ONG. “A transfobia é a última barreira que aponta os desafios que seguiremos enfrentando.”

Arte de topo: João Menezes/Diadorim

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