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Como uma comunidade quilombola se uniu para salvar um mangue em Pernambuco

Em 2007, um dique construído pelo porto de Suape obstruiu o rio Tatuoca, que alimenta um mangue próximo. Documentário Sangue conta como quilombolas reabriram o rio

Rafael Ciscati

7 min

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O pescador José Reis da Silva conta que sorri toda vez que olha para o manguezal próximo de sua casa. Aos 51 anos, Reis — que entre amigos  é chamado de Martins — nasceu e se criou em uma das comunidades quilombolas de Ilha de Mercês, em Pernambuco. Um lugar onde, na falta de terra para cultivo, a maior parte da população encontra sustento na pesca. “Aqui, a gente vive do filé de aratu”, diz ele, se referindo ao crustáceo de carapaça acinzentada que se reproduz no manguezal.

Se, hoje, Reis sorri ao ver o mangue cheio de aratu, ostra e camarão, é porque, não muito tempo atrás, toda essa vida pareceu prestes a desaparecer. O mangue em Ilha de Mercês é abastecido pelas águas do rio Tatuoca. Conforme a maré sobe, agua do mar e do rio se misturam, numa dinâmica que garante a manutenção da vida na região. Em 2007, a empresa responsável pela operação do porto de Suape – um complexo industrial que funciona nas imediações –  construiu uma barragem que interrompeu parte do fluxo do rio e prejudicou a troca entre água salgada e doce. 

Peixes ,caranguejos e camarões que viviam no mangue começaram a desaparecer. Sem eles, logo a população quilombola sumiria também. Reis, seus vizinhos e parentes, se insurgiram: com o apoio de organizações locais, exigiram que o curso do rio fosse desobstruído. Em agosto de 2021, 34 metros da barragem que matava o mangue foram removidos. Foi uma vitória parcial. Agora, os quilombolas de Ilha de Mercês querem mais. Na justiça, cobram a completa liberação do rio Tatuoca. Para salvar o mangue e a si mesmos. 

O périplo dos Quilombolas de Mercês para salvar o rio Tatuoca é contado no recém-lançado documentário Sangue. O filme é uma produção do Fórum Suape, organização que há mais de 10 anos denuncia os danos causados pelo porto de mesmo nome à vida das comunidades locais. O complexo industrial reúne mais de 100 empresas, como a Univeler, a Coca Cola e a Pepsico. Sua construção, iniciada na década de 1970, destruiu recifes e forçou o deslocamento de mais de 20 mil pessoas que viviam na região. 

Para a população de Ilha de Mercês, o porto já foi motivo de esperança. “Eu era criança e via as luzes de Suape à distância”, conta Reis. “Achei que o porto traria desenvolvimento”. A região reúne pouco mais de 230 famílias quilombolas, distribuídas em diferentes comunidades. Embora sejam reconhecidas como populações tradicionais pela Fundação Cultural Palmares, as comunidades ainda não foram tituladas: não receberam os documentos que estabelecem a posse coletiva sobre suas terras. Sem melhores perspectivas econômicas, muita gente migrou: as 230 famílias de hoje, nos cálculos de Reis, já foram algo em torno de 900. 

Quem permaneceu, viu a promessa representada por Suape ruir. “Suape trouxe destruição, criminalidade prostituição”, diz Reis. “Antes de Suape, nós éramos mais felizes”. 

No filme, Reis e outras lideranças locais narram como, sem aviso, encontraram as águas do rio Tatuoca barradas. Na região em que o rio se aproxima do mar, a administração do porto de Suape mandara construir um paredão de pedras. O dique era interrompido em quatro pontos, onde foram instalados grandes tubulações destinadas à passagem da água. O obstáculo dificultava as trocas entre a água doce e salgada, importantes para manter o mangue saudável.

A barragem sobre o Tatuoca deveria ser uma solução temporária. Foi construída para servir como uma via de acesso de veículos ao estaleiro Atlântico Sul. Passados 14 anos, ganhou ares de instalação permanente. 

Logo, as consequências se tornaram visíveis. “Quando barraram o rio, era época de camarão”, diz Reis. “O camarão acabou, sumiram as ostras. Criou lodo, uma vez que a maré não subia nem descia”. A população conta que o cheiro do mangue mudou.  Mudou, também, o cotidiano de quem vive da pesca. “A gente entrava no mangue e, com três horas, voltava com 40kg de peixe”, conta Maria Madalena da Silva, uma das moradoras da comunidade, no filme. “Hoje,é preciso três dias para conseguir os mesmos 40kg”.

Os danos provocados pela barragem, dizem ativistas, põem em risco a sobrevivência de um ecossistema essencial para a vida marinha. Próximos ao mar, os manguezais funcionam como  berçários para espécies de peixes e crustáceos. Na legislação ambiental brasileira, são classificados como áreas de preservação permanente. “Ao realizar e manter por 14 anos uma obra que era prevista como provisória e que demonstradamente provocou uma série de desequilíbrios no manguezal, a empresa Suape violou, sim,a legislação ambiental”, diz a advogada Mariana Vidal, do Fórum Suape. 

Com a ajuda do Fórum, a comunidade de Ilha de Mercês se organizou para negociar com a administradora do Porto. As tratativas foram acompanhadas pelo Ministério Público do Estado.  De saída, cobravam a desobstrução completa do rio. Os 34 metros recém-reabertos são consequência direta dessa pressão, conta Mariana. Sem conseguir maiores avanços, o grupo decidiu judicializar o caso. “Quando ficou evidente que, somente pelo diálogo, Suape não reabriria o rio, resolvemos entrar com uma Ação Civil Pública”, diz Mariana. Na peça, as comunidades apontam os danos ambientais provocados pela construção do dique, e pedem que os quilombolas sejam indenizados pelos 14 anos que o rio passou obstruído.

Suape rebate afirmando que a obra foi precedida por estudos de impacto ambiental, e foi realizada com o aval dos órgãos ambientais do estado.

“ Foram realizados estudos de Avaliação de Impacto Ambiental – ATIA, bem como, elaboração de Programas de Controle e Monitoramento Ambiental (PCA/PMA) da intervenção. Os estudos citados foram objetos da Licença de Instalação Nº 01.21.07.002742-8 emitida pela CPRH”, disse a empresa em nota. “O derrocamento parcial da foz do rio Tatuoca apresenta condições de estabilidade ambiental com a dinâmica marinha de renovação pelo fluxo de maré. Estima-se, portanto, que seus componentes biológicos já atingem padrões ambientais que mostram que o rio está estabelecendo condições de fonte de riqueza biológica, inclusive, com potencial de exploração pela pesca artesanal.”

A empresa afirma, ainda, que não planejou medidas para mitigar os impactos da barragem sobre o modo de vida tradicional das comunidades quilombolas: “O processo perene de desenvolvimento e gestão territorial que tem como instrumento de referência o Plano Diretor 2035, estabelecido por meio do decreto N° 54.185, de 20 de dezembro de 2022, e novo zoneamento, esta área em questão é definida como zona de ampliação da área portuária. Por este motivo, qualquer iniciativa de Suape para consolidar as comunidades neste território vai de encontro a todo planejamento legal e institucional. Neste sentido, não foram tomadas medidas mitigatórias a possíveis danos apontados pelas comunidades.

Entre os quilombolas, a abertura parcial já é comemorada. “Esse primeiro passo trouxe muita motivação, mesmo sabendo que a luta não termina aí”, diz Mariana. “ Ao mesmo tempo em que foi um respiro pro rio, foi também um respiro pra comunidade, que teve suas esperanças renovadas”. 

Reis diz que os peixes ainda não voltaram. E os camarões preocupam, porque parecem não crescer. Mesmo assim, ele está feliz. “O rio passou muito tempo fechado, ainda tem muita lama”, afirma. “Mas a gente já cultiva e vende a ostra. Agora, a gente olha para o rio e sorri”. 

Aproveite e veja também: Você sabe o que são quilombos?

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