Mercado ainda resiste em contratar pessoas trans
Pesquisa realizada no Rio de Janeiro apontou que apenas 15% dos respondentes tinham carteira assinada
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por Nelson Bortolin, da Rede Lume de Jornalistas
Oliver Letícia Fernandes de Oliveira, 29 anos, já estava empregado quando fez sua transição de gênero, em 2020. As reações dos colegas de trabalho e do patrão foram as melhores possíveis. Cozinheiro no Hopper’s Cerveja Artesanal, em Londrina, ele tem carteira assinada, goza de todos os direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e se sente um privilegiado.
Pesquisa feita pelo projeto TransVida, no ano passado, mostra que ele tem razão em sentir-se assim: só 15% das pessoas trans que responderam ao questionário tinham emprego formal; 15,6% delas tralhavam como autônomas formais e, 27,2%, estavam na informalidade. A prostituição era a atividade remunerada de 14,3% dos que participaram da pesquisa.
O cozinheiro Oliver Letícia Fernandes de Oliveira
Coordenador do trabalho, o antropólogo e ativista LGBTQIA+ carioca Fabrício Longo ressalta que os questionários foram aplicados somente no município do Rio de Janeiro e que, portanto, não seria cientificamente correto atestar que se trata de uma realidade nacional. Mas sua percepção é de que o cenário é parecido no restante do País.
Segundo Oliver, o patrão, Tomio Toda, foi compreensivo desde o começo de sua transição. “Desde quando contei que ia mudar meus documentos, ele respeitou o meu pronome. Não tive nenhum tipo de empecilho no trabalho.”
O cozinheiro acredita que a realidade para a mulher trans é mais difícil. “A sociedade vê as travestis sempre relacionadas com a prostituição, com a rua, com o roubo. É muito mais difícil para elas conseguirem acessar o mercado de trabalho”, afirma.
Raffaela sempre sofreu discriminação no trabalho
A mulher trans e estudante de geografia da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Raffaela Rocha confirma. Apesar de já ter trabalhado algumas vezes com carteira assinada, sempre sofreu discriminação. “O pior lugar onde trabalhei foi numa confeitaria do Shopping Catuaí. Não era respeitada nem pela dona, nem pelos clientes”, conta.
Embora tenha sido contratada como Raffaela, era comum escapar um “ele” quando se referiam a ela. A antiga patroa também já a chamou pelo “nome morto”, que é o nome utilizado pela pessoa antes da transição. Na época, a estudante ainda não tinha feito hormonização e a aparência não era considerada tão feminina.
Raffaela também trabalhou numa grande operadora de celular. Nesta empresa, não tinha problemas com os clientes que atendia sempre pelo telefone. “Eles reconheciam minha voz como de mulher.” Mas entre os colegas de trabalho a discriminação rolava solta. “Até me chamavam pelo meu nome, mas muitas vezes se referiam a mim como ‘ele’”, conta.
A jovem hoje está focada nos estudos. Quer terminar a licenciatura em geografia e emendar o bacharelado e mestrado. E, depois, prestar concurso público. Para se sustentar, ainda precisa fazer programas.
Defensoria apoia cota para pessoas trans em Curitiba
Buscar emprego na iniciativa privada não está mais nos planos dela. “Em um ano, eu enviei mais de 130 currículos. Fui chamada para 10 entrevistas. Em 7, deixaram claro que não me contratariam porque (quando chamaram para a entrevista) achavam que eu era mulher (cis)”, relata.
Questionada se não denunciou as empresas por transfobia, Raffaela demonstrou ter achado a pergunta ingênua. “Você acha que uma mulher trans consegue ir sozinha fazer um B.O. numa delegacia?”
Militante do movimento LGBTQIA+, a estudante tem certeza que a empregabilidade é mais fácil para os homens trans. “É muito mais fácil aceitarem uma mulher que quer virar homem. Nós, mulheres trans, seremos sempre consideradas putas. Não importa o quanto a gente estude, para a sociedade, seremos sempre putas.”
O antropólogo Fabrício Longo concorda: os homens trans se beneficiam da própria imagem que a sociedade faz do homem. “Veem a força, a capacidade de resolver as coisas, enfim toda aquela imagem construída ao longo da história.”
Patrão diz que funcionário trans está mais feliz
Sócio-proprietário do Hopper’s Cerveja Artesanal, Tomio Toda, 39 anos, diz que seu funcionário, o cozinheiro Oliver de Oliveira, melhorou muito “como pessoa” depois de ter assumido sua identidade de gênero. “Ele está mais feliz, mais solto. Para a gente, essa questão sempre foi tranquila.”
O público do bar, conforme explica Tomio, tem a “cabeça mais aberta” e não se importa com a orientação sexual ou identidade de gênero dos funcionários. “Pelo menos metade do nosso quadro de funcionários é de pessoas não heterossexuais.”
Questionado sobre como agiria se um cliente reclamasse de Oliver, ele responde: “Graças a Deus nunca passamos por isso. Mas eu tentaria argumentar que o bar não tem preconceito e que o cliente deveria avaliar o atendimento do profissional e não a forma como a pessoa se veste ou se identifica.”
A CEO da agência de marketing K2, Anna Zimermann, diz que a empresa, com sede em Londrina, disponibilizou vagas para pessoa trans em junho do ano passado por meio do site TransEmpregos. “Na época, participei de um debate sobre empregabilidade LGBTQIA+ e conheci a plataforma TransEmpregos, que me abriu essa possibilidade.”
Mas a agência até hoje não conseguiu preencher as vagas afirmativas porque não apareceram candidatos. “Acho que, primeiramente, precisamos entender o contexto geral. Uma grande parcela da população trans (e LGBTQIA+ no geral) cresce marginalizada pela sociedade. Muitas vezes, são pessoas que experimentam a exclusão do convívio familiar, o que leva a uma alta taxa de evasão escolar, uma grande dificuldade de qualificação profissional e assim por diante”, afirma.
Ela considera dever das empresas que prezam e buscam pela diversidade, adotar medidas visando o preenchimento das vagas e também contribuir para a qualificação dos profissionais.
“Acho que vivemos hoje uma sociedade em constante mudança, acelerada pela tecnologia, pela globalização, e isso faz com que os desafios e problemas de uma empresa sejam cada vez mais complexos. Isso demanda, invariavelmente, que as empresas passem a adotar nas suas equipes perspectivas, vivências e visões de realidade diferentes e múltiplas”, justifica.
Empresas preencheram mais de 1,1 mil vagas da TransEmpregos no ano passado
Como o próprio nome diz, a TransEmpregos é uma agência especializada na oferta de vagas de trabalho para pessoas trans. Foi criada em São Paulo em 2013 e tem como cofundadora a cartunista Laerte. Somente no ano passado, ao menos 1.100 vagas ofertadas no site foram preenchidas por pessoas trans em todo o País.
Segundo a empresária e advogada Márcia Rocha, coordenadora da TransEmpregos, o número de contratações é crescente. Foram 707 em 2020 e 797 em 2021. Mas os dados tendem a ser subnotificados já que nem toda empresa comunica o preenchimento de vaga para a agência.
Márcia Rocha, coordenadora da TransEmpregos
Em entrevista à Rede Lume, ela admite que parte das organizações que anunciam no site não estão de fato interessadas em contratar trans. “Há algumas que fazem o anúncio para inglês ver. Tem empresa que diz que é inclusiva, mas tem uma pessoa trans entre 40 mil funcionários”, conta.
No entanto, entre os parceiros da agência, há muitos que têm compromisso com a inclusão. Entre eles, segundo a coordenadora, está a grande maioria das multinacionais. “E tem muita empresa pequena e média que de fato se compromete, contrata porque acredita na diversidade.”
Márcia Rocha também admite que há situações em que vagas são anunciadas e não aparecem candidatos. Mas são casos isolados “Já tivemos anúncio para contratar professor de inglês que teve mais de 200 interessados.”
Altamente qualificados
Para ela, a falta de qualificação é “meio folclore”. “Tem muitas pessoas trans com alta capacitação, principalmente homens trans, com mestrado e doutorado.”
Dos 22 mil currículos que a agência tem, 40% são de trans com curso superior.
Assim como os demais entrevistados desta reportagem, Márcia Rocha considera que homens trans têm mais facilidade para arrumar emprego. Um dos motivos seria o fato de que eles se assumem mais tarde. “É muito raro homens trans se assumirem aos 13, 14 anos como as meninas e serem expulsos de casa. As meninas trans, até por uma questão hormonal, têm o impulso de se assumir mais cedo.”
Os homens trans, de acordo com ela, em geral se assumem depois dos 18 anos de idade, às vezes quando estão na universidade ou mesmo já graduados.
Outra questão importante é que o homem trans têm mais passabilidade, que é a característica da pessoa transgênera de ser percebida pela sociedade como cisgênera. “A hormonização do homem é mais fácil. Ele toma testosterona e, em seis meses, se torna um homem careca, de barba, musculoso. O homem trans muda o nome do documento no cartório e muitas vezes ninguém mais vai perceber que ele é trans”, alega.
Já nas mulheres trans, segundo a coordenadora, os hormônios não fazem efeito tão rápido e de forma tão poderosa.
Site tem 11 vagas para Londrina
Entre as milhares de vagas ofertadas hoje pela TransEmpregos em todo o País, há mais de 170 para o Paraná. Elas vão desde jovens aprendizes a consultores, advogados e gerentes. Para Londrina — onde a Rede Lume está sediada — são 11 vagas. A Takeda Vacinas oferece dois empregos de consultores na cidade. A Agência K2 tem oportunidades para designer assistente e assistente de rede. Já a Atos quer contratar técnico de suporte do usuário. E a Allis Trade oferece vaga de representante de envios.
Na Syngenta, há oportunidades para estagiário comercial e gerente de marketing seeds. A Luandre quer contratar auxiliar de logística; a Schneider Eletrics, consultor de negócios júnior; e a MRV, consultor de imóveis.
A Rede Lume tentou entrevistar a Atos e a MRV, mas segundo as assessorias de imprensa essas empresas não têm porta-vozes disponíveis para tratar do assunto neste momento. A Schneider Eletrics e a Takeda não responderam mensagens enviadas por email.
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