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Como a pandemia de covid-19 agravou a crise de habitação no Brasil

Desde março do ano passado, mais de 14 mil famílias passaram por remoções coletivas. Projetos de lei no Senado e em assembleias estaduais tentam barrar novos despejos

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Rafael Ciscati

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Valdirene Frazão vivia com os dois filhos e o marido em um cômodo improvisado nos fundos da casa da mãe quando soube da notícia: não muito longe dali, um terreno da prefeitura que passara anos sem destino certo começava a ser ocupado por famílias que buscavam onde morar. Era maio de 2020 e Valdirene não tinha trabalho: perdera o emprego com a chegada da pandemia de covid-19 no Brasil. “Eu trabalhava como caixa em um espaço de eventos. Até o início do ano, tudo ia bem. Mas os eventos pararam”, lembra ela. Sem emprego e renda, não havia dinheiro para pagar aluguel. Ao saber da movimentação, ela diz que não hesitou. “Joguei uma enxada no ombro e parti para o terreno”.

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A ocupação Viva Jardim Julieta, no bairro da Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, abriga cerca de 800 famílias. Por mais de uma década, o terreno ficou vazio. Segundo relatos de moradores, chegou a ser utilizada como estacionamento clandestino para caminhões. Seus atuais ocupantes repetem histórias semelhantes a de Valdirene: desempregados na pandemia, perderam a renda e o teto. “Eu tenho duas ruas de vizinhos que trabalhavam com eventos” afirma Valdirene, uma das lideranças da comunidade. “Todo mundo ficou desempregado”.

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Desde julho do ano passado, a prefeitura tenta retomar a posse da área. Ela foi destinada a uma parceria público privada (PPP) que pretende construir 1580 unidades habitacionais no local. Todas elas, dizem os atuais moradores do Viva Jardim Julieta, destinadas a faixas de renda superiores às suas. Por ora, a SP Urbanismo, a empresa pública dona do lugar, adiou a remoção. Mesmo assim, paira o temor de que ela aconteça a qualquer momento. Se forem despejadas, conta Valdirene, as famílias não sabem para onde irão.

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A mesma dúvida se repete pelo país. Desde o começo da pandemia de covid-19, em março do ano passado, ao menos 14.301 famílias passaram por remoções coletivas em todo o Brasil. O dado foi levantado pela Campanha Despejo Zero. Lançada em julho do ano passado, a mobilização reúne mais de 100 organizações e movimentos sociais, e cobra que os processos de despejo e reintegração de posse sejam paralisados até o fim da crise sanitária. Os estados mais afetados foram São Paulo (3970 famílias removidas até o dia 6 de junho) e o Amazonas (3028). Os números crescem depressa: no levantamento anterior, divulgado em fevereiro, pouco mais de 9 mil famílias haviam sido removidas.

De acordo com o grupo, além das remoções efetivadas, há ao menos 84092 famílias sob ameaça. São casos como o do Viva Jardim Julieta, em que há um processo de reintegração de posse em curso.

A chegada da covid-19 no Brasil acentuou uma crise habitacional que já se arrasta por anos. Calcula-se que, em 2019, o déficit habitacional no país chegou a quase 6 milhões de domicílios. Os números são compilados desde 1995 pela Fundação Joel Pinheiro, ligada ao governo de Minas Gerais. Levam em consideração, por exemplo, casos de famílias que vivem em moradias precárias, sem paredes de alvenaria, ou em “coabitação involuntária” — quando têm de dividir o espaço de moradia por falta de opção. Incluem, ainda, os casos de famílias que ganham até 3 salários mínimos e que despendem mais de 30% dessa renda no pagamento de aluguel.

O agravamento do quadro era um cenário previsível e que, de maneira geral, os governos optaram por negligenciar. “De um lado, a crise do emprego e a ausência de um auxílio emergencial permanente deixou pessoas sem renda e sem condições de pagar aluguel”, diz Débora Ungaretti, pesquisadora do Observatório das Remoções, que monitora o fenômeno. “De outro, é possível dizer que os governos pecaram por omissão. Desde o início, houve alertas. As remoções deviam ter sido interrompidas”. Mas elas não pararam: na região metropolitana de São Paulo, os dados do Observatório das Remoções mostram que, embora tenha havido uma redução de casos entre o segundo e o terceiro trimestre de 2020, os processos foram retomados de maneira acelerada a partir de outubro do ano passado.

Sem ter onde morar, as pessoas foram viver nas ruas, buscaram abrigo em casas de parentes, ou deram início a novas ocupações. Dados do Observatório das Remoções sugerem que, ao menos em São Paulo, as decisões judiciais favoráveis às reintegrações de posse se concentraram em terrenos ocupados  durante a pandemia. Na capital paulista, foi emblemática a reintegração de posse de uma ocupação surgida em Guaianazes, na periferia da zona leste, em março do ano passado. Sem abrigo, 900 famílias foram viver em casa de parentes ou ergueram barracos à beira de um córrego da região. “Com isso, o ciclo de violência se repete”, explica Débora.

Num caderno que mantém sempre por perto, Maura Cristina da Silva, do Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB), registra os casos que se sucedem em Salvador. “Em abril do ano passado, aconteceu uma reintegração de posse em Lauro de Freitas, na região metropolitana. Conseguimos barrar, mas cerca 400 famílias ficaram prestes a ir para a rua”, conta ela. “Tem outra ocupação aqui na rua do Taboão. A justiça deu 30 dias para ele deixarem o local. Estamos tentando reverter a decisão”.

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Maura Cristina da Silva na casa onde vive em Salvador há 15 anos: “Sempre acho que estou em perigo”. (Foto: arquivo pessoal)

Nascida em São Paulo, Maura vive há cerca de 15 anos na capital baiana. Na maior parte desse tempo, morou num mesmo casarão no centro da cidade, uma ocupação do MSTB onde criou seu filho e construiu sua história. “Cheguei aqui quando meu filho tinha 7 anos de idade. Hoje, ele é um rapaz de 22 anos”, conta satisfeita. Com o avanço das remoções na cidade, ela teme ter de deixar a própria casa.

Desde 2017, o centro da cidade, onde Maura mora, é palco de um projeto de revitalização encabeçado pela prefeitura, e que prevê o restauro de casarões centenários considerados abandonados ou subutilizados. Segundo o projeto, cabe aos donos dos imóveis restaurar as construções. Quem não o fizer pode ter o prédio estatizado — tomado pela prefeitura sem contrapartida financeira.  Representantes de movimentos sociais, no entanto, apontam que os planos podem resultar na remoção dos atuais moradores do centro. Pessoas pobres cujas famílias vivem ali há gerações ou que, como Maura, vivem em ocupações.

“Há o caso de uma ocupação que passou por reintegração de posse e que existia há tanto tempo quanto a minha”, diz Maura, passando os olhos pelo caderno. “É por isso que eu sempre acho que estou em perigo”. O temor se acentuou durante a pandemia. As medidas de distanciamento necessárias para barrar a propagação do vírus dificultam mobilizações de rua. “Ninguém deveria sofrer reintegrações de posse, em momento algum. Nós trabalhamos pelo uso social desses imóveis ocupados”, afirma Maura. “Na pandemia, o dano provocado por essas reintegrações é ainda maior”.

Projetos de lei tentam barrar remoções

A escalada da crise habitacional fez surgirem projetos de lei destinados a barrar as remoções. Hoje, o assunto é pauta no Senado federal. De autoria dos deputados André Janones (Avante-MG), Natália Bonavides (PT-RN) e Professora Rosa Neide (PT-MT) o PL 827/2020 pede que sejam interrompidos os despejos e reintegrações de posse coletivas, de propriedades urbanas ou rurais, até o final de 2021. A medida valeria somente para aquelas ocupações surgidas até o dia 31 de março deste ano. A proposta ainda impediria que famílias pobres, com contratos de aluguel de até R$600,00, fossem despejadas por meio de decisão liminar. Nesse caso, seria preciso provar que o locatário ficou sem renda em função da crise sanitária.

Apesar de tramitar em regime de urgência, o texto só foi aprovado na Câmara em maio, mais de um ano depois de proposto. Sua votação no Senado estava prevista para a semana passada, mas foi adiada para os próximos dias. “O que se viu foi uma forte movimentação da bancada ruralista no Senado para adiar a votação”, afirma Benedito Roberto Barbosa. Advogado da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, ele é um dos articuladores da Campanha Despejo Zero, que impulsiona a pauta nacionalmente.

As movimentações pela campanha começaram em junho do ano passado, conforme as notícias de novos despejos e remoções se acumulavam. “Àquela altura, já havíamos feito uma denúncia à relatoria de direitos humanos da Nações Unidas, porque notamos que o governo brasileiros não se sensibilizaria com a situação”, afirma o advogado.

Hoje, além de levantar o número de remoções e ameaças em todo o país, o grupo ainda se encarrega de municiar parlamentares e membros dos legislativos locais acerca do alcance do problema. Desde o começo da pandemia, foram propostos projetos de lei estaduais contra as remoções  nas assembleias do Pará, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Goiás. É possível que  textos semelhantes tramitem em outros estados, e em câmaras municipais, diz Barbosa — mas não há, por ora, um levantamento nacional que contabilize todos os casos.

Na avaliação do advogado, a aprovação da proposta em discussão no Senado é urgente, ainda que o texto seja mais tímido do que o desejado. “O projeto tem um marco temporal bastante claro. E não suspende todos os despejos. Hoje, não existe uma correlação de forças que permitiria a aprovação de uma ampla paralisação dos despejos”, afirma. “Ainda assim, é um avanço fundamental e urgente. E que seria válido para todo o país”.  Até a terça-feira (8), quando conversou com a Brasil de Direitos, Barbosa calcula que os integrantes da campanha tinham enviado mais de 50 mil e-mails pressionando os senadores para que votassem o PL com urgência. Naquela tarde, os dados compilados pelo grupo foram citados em plenário pelo senador Jean Paul Patres (PT-RN), que defendia a votação célere do texto. Seu pedido não foi acatado.

Enquanto a discussão não avança no Senado, as famílias ameaçadas buscam amparo no Supremo Tribunal Federal. No começo de junho, o ministro Luís Roberto Barroso proferiu uma decisão liminar — que precisa passar pelo plenário da Corte — suspendendo, por seis meses, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse. A decisão vale para somente para ocupações realizadas até 20 de março de 2020. Barroso fez uma ressalva: a de que remoções e despejos não podem resultar em pessoas desabrigadas, qualquer que tenha sido a data de início da ocupação.  A medida começou a ser discutida pela corte na última quinta-feira (10), mas o julgamento foi interrompido, ainda sem data de retorno. Por ora, continua válida a decisão liminar.

Na Viva Jardim Julieta, a decisão foi comemorada por Valdirene e seus vizinhos. “A gente ganha tempo para respirar. É um alívio”, diz ela. A comemoração é sóbria. A casa que construiu no lote ocupado foi feita em madeira — como a maioria das moradias próximas. Valdirene sonha com uma casa de tijolos, a seu gosto. “Mas eu me pergunto: será que vale colocar o pouco dinheiro que temos nisso?  Só o que eu quero é ter minha casa, mas o tempo todo a gente escuta que vai ter de sair daqui”.
Foto de topo: vista da ocupação Viva Jardim Julieta. Desde o começo da crise sanitária, aumentou o número de ocupações em São Paulo (Foto: reprodução LabCidade)

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