PL 191/2020: quais os impactos da mineração em terras indígenas
Projeto do governo Bolsonaro pretende autorizar mineração em áreas demarcadas. Só na Amazônia, medida pode provocar desmatamento de mais de 800 mil km2 de floresta, diz estudo
Rafael Ciscati
14 min
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ATUALIZAÇÃO (31/03/2023) – O PL 191/ 2020, que pretende regulamentar mineração em terras indígenas, continua em tramitação na Câmara dos Deputados, mas perdeu fôlego ao longo de 2022. No início do ano passado, o texto tramitava em regime de urgência – ou seja, tinha prioridade sobre outros temas e dispensava ser discutido em comissões. Diante da oposição de movimentos sociais, políticos e da classe artística, acabou não sendo votado. Na avaliação da imprensa, pesou contra o projeto o desembarque de algumas mineradoras, que decidiram não apoiar o texto temendo riscos reputacionais.
No começo de fevereiro de 2023, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) enviou uma petição ao recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. No documento, a Apib alega que o PL é inconstitucional, e cobra que o texto seja arquivado. Já, na Câmara dos Deputados, o deputado Ricardo Ayres (Republicanos – TO) apresentou uma nova proposta, destinada a proibir a lavra de recursos minerais e a construção de hidrelétricas em terras indígenas. De acordo com o parlamentar, o objetivo é proteger esses territórios do avanço de garimpeiros. A proposta foi apensada ao texto do PL que já tramitava. Isso significa que os dois textos serão discutidos juntos.
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Em abril de 2020, logo que assinou o Projeto de Lei 191/2020 — que autoriza mineração, construção de usinas hidrelétricas e outras atividades econômicas em terras indígenas — o presidente Jair Bolsonaro teceu elogios animados à proposta. “Nunca é tarde para ser feliz, 30 anos depois. Espero que esse sonho […] se concretize, porque o índio é um ser humano exatamente igual a nós”, disse, durante as comemorações pelos seus 400 dias de governo.
O texto era a manifestação de uma promessa de campanha do presidente. Ele estabelece que os povos indígenas afetados pelos empreendimentos deverão ser ouvidos, mas não terão poder de veto. A eles cabe parte do lucro gerado pela atividade. À época, Bolsonaro defendeu que a medida traria avanços econômicos para os povos indígenas e para as populações da Amazônia Legal. A região pode ser uma das mais afetadas pela proposta — hoje, é a que concentra o maior número de terras indígenas demarcadas no país.
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Uma série de estudos, no entanto, sugere que a aprovação do PL 191/2020 pode fazer saltar o desmatamento na Amazônia e provocar prejuízo bilionário para a região. Além disso, de acordo com esses trabalhos, os benefícios econômicos advindos da mineração são efêmeros: “ A mineração não é uma atividade sustentável”, afirma a engenheira ambiental Juliana Siqueira-Gay, gerente de projetos do Instituto Escolhas, uma organização sem fins lucrativos que avalia os impactos econômicos e sociais de decisões tomadas por governos. Desde 2020, ela estuda os possíveis reflexos da proposta presidencial, e os impactos provocados pelo avanço da mineração na Amazônia Legal, vista mais comumente em terras Yanomami. “Nossas pesquisas mostram que a exploração de ouro e diamantes não traz benefícios para os municípios da Amazônia. Não gera desenvolvimento econômico. Traz impactos, mas não há ganhos duradouros”.
O projeto ganhou novo fôlego nas últimas semanas. No dia 09 de março, a Câmara dos Deputados decidiu que o texto deve tramitar em regime de urgência. Isso significa que ele pode ir para votação no plenário, sem precisar passar por comissões temáticas. O PL deve ser votado até o dia 14 de abril. O governo argumenta que o assunto ganhou urgência em função da guerra entre Rússia e Ucrânia. Com o conflito, as exportações russas de potássio, mineral usado na fabricação de fertilizantes, foram interrompidas. A saída seria extrair o mineral em terras indígenas de modo a fabricar fertilizantes nacionalmente.
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A celeridade provocou reações de setores do movimento indígena, para os quais a abertura desses territórios à mineração será prejudicial. “ [O PL] afronta a dignidade dos Povos Indígenas ao impor verdadeiro retrocesso social”, escreveu a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) em nota divulgada no dia 15 de março. Na avaliação da COIAB, a medida se choca com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de que o Brasil é signatário. Ela determina que povos indígenas e populações tradicionais têm direito à consulta livre, prévia e informada para opinar a respeito de empreendimentos realizados em seus territórios. “O PL transforma a consulta prévia em mera oitiva”, diz Tito Menezes, assessor jurídico da Coiab.
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Mas, faz sentido minerar terras indígenas? Quais os potenciais impactos dessa medida? E, por fim, há mesmo potássio nesses territórios? Para responder a essas perguntas, conversamos com Juliana Siqueira-Gay, do Instituto Escolhas, e com Tito Menezes, assessor jurídico da Coiab.
Há minério em terra indígena ?
Sim. Hoje, a maior parte das Terras Indígenas (TIs) no Brasil está na Amazônia Legal: a região concentra 424 das 726 TIs, e responde por mais de 98% da área demarcada no país. A expectativa é de que a região concentre, também, grandes depósitos minerais. “As dimensões da Amazônia brasileira, bem como o seu patrimônio já conhecido de jazidas minerais, asseguram-lhe um grande potencial mineral, comparável ao que existe em partes do Canadá ou da Austrália”, escreveram Umberto Cordani e Caetano Juliani, pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado em 2019. No mesmo trabalho, eles destacam que, em 2013, as minas já ativas na Amazônia Legal respondiam por 30% do faturamento mineral brasileiro.
Juliana Siqueira-Gay, do Escolhas, conta que há, na Amazônia, grandes depósitos de ouro. O metal é, hoje, o que mais desperta a cobiça dos interessados em atuar na região. Apesar de a mineração em terras indígenas ser ilegal, a Agência Nacinoal de Mineração (ANM) registra pelo menos 2466 requerimentos de exploração mineral ativos sobrepostos a esses territórios. São empresas, cooperativas e mesmo indivíduos que querem autorização para fazer pesquisa mineral ou extrair minérios em TIs. Os dados são da pesquisa Amazônia Minada, projeto conduzido pelas organizações Amazon Watch e Infoamazônia. Mostram que, do total de requerimentos, 554 pedem autorização para explorar minério de ouro, e outros 514 pedem para explorar ouro. No ranking de interesse, a cassiterita é a terceira substância mais procurada, com 169 requerimentos sobrepostos a terras indígenas.
FONTE: Amazônia Minada
Tamanho interesse esbarra em algumas dificuldades. Os depósitos minerais da Amazônia foram pouco pesquisados, e as grandes distâncias da região fazem saltar os custos de transporte. “Há riscos para as empresas. Você não sabe qual o tamanho das jazidas, nem sabe quanta infraestrutura vai ser necessário levar para explorá-las”, explica Juliana. Os custos de operação são especialmente elevados por que, no caso do ouro, todo o processamento do minério precisa acontecer no mesmo local onde ele foi extraído. “Não tem como tirar o minério dali sem processamento”, diz Juliana. “Não há nada provando que essas atividades sejam economicamente viáveis”.
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Mas esses territórios são ricos em potássio, como afirma o governo?
Não. De acordo com um levantamento feito pelo Instituto Sócioambiental (ISA), os requerimentos para explorar sais de potássio sobrepostos a terras indígenas representam uma parcela ínfima do total: 1,6% das jazidas requeridas para exploração estão nas TI. No caso do fosfato, a parcela é ainda menor: somente 0,4% do total de jazidas requeridas na Agência Nacional de Mineração (ANM) estão em terras indígenas.
A suposta presença desses minerais em áreas demarcadas, no entanto, foi a base da defesa do governo e de seus aliados para fazer o PL 191/2020 voltar ao debate. O argumento é o de que a guerra entre Ucrânia e Rússia dificulta a importação de fertilizantes, importantes para o agronegócio brasileiro. Hoje, estima-se que mais de 80% dos fertilizantes usados no país sejam importados — e a Rússia é o exportador que mais vende para o Brasil. A solução seria estimular a produção local. Bolsonaro afirma que as terras indígenas são um entrave à indústria: “Em 2016, como deputado, discursei sobre nossa dependência do potássio da Rússia. Citei três problemas: ambiental, indígena, e a quem pertencia o direito exploratório da foz do Rio Madeira”, escreveu o presidente no Twitter.
Se a mineração em terras indígenas for autorizada, quais serão os impactos ambientais e sociais?
Somente nos estados da Amazônia Legal, a área desmatada pela mineração poderia chegar a 862 mil km2. É pouco mais que o dobro do tamanho da Alemanha. A estimativa é da engenheira ambiental Juliana Siqueira-Gay e de colegas da Universidade Federal de Minas Gerais.
A análise considera os impactos causados pela mineração dentro de um raio de 70km contados a partir da cava da mina. A essa distância, chegam os chamados impactos indiretos — aqueles provocados, por exemplo, pelas estradas abertas para transportar o minério; e pelo afluxo de pessoas que seriam atraídas para as terras indígenas pela mineração. Para fazer esse cálculo, a equipe recorreu à base de dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), que registra as ocorrências minerárias conhecidas na região. Se todas as ocorrências minerárias fora de terras indígenas forem exploradas, a área máxima desmatada será de 700 mil km2. É isso o que pode acontecer se o PL 191/2020 não for aprovado.
O quadro se agrava num cenário em que mineração em terras indígenas passa a ser legal: nesse caso, se todas as ocorrências minerárias em terras indígenas também forem exploradas, a área desmatada salta, e alcança os 862 mil KM2 previstos pelos pesquisadores.
A perda de floresta não é o único prejuízo. “As terras indígenas na Amazônia e seus arredores são regiões de grande biodiversidade”, afirma Juliana. São ricas, inclusive em espécies vegetais de importância econômica, cuja comercialização gera renda para comunidades tradicionais. Além disso, elas desempenham aquilo que os pesquisadores chamam de “serviços ecossistêmicos” — a floresta é importante para a regulação das chuvas, das quais dependem o agronegócio e a pecuária no restante do país. A floresta, por fim, atua capturando gás carbônico, um dos principais responsáveis pela escalada das temperaturas globais. Sem ela, haveria mais CO2 livre na atmosfera: e as temperaturas globais subiriam. Perder essas riquezas significa assumir um custo que pode ser calculado em termos monetários. Nos cálculos da equipe de Juliana, o prejuízo seria de US$5 bi anuais — quase R$25 bi por ano. “Com o estudo, quisemos propor uma pergunta: vale mesmo abrir para mineração?”.
Há o temor de que o avanço da mineração ameace a vida dos povos indígenas que vivem nesses territórios. “A gente não precisa prever qual será o impacto da mineração, porque já vemos esse impacto hoje”, afirma o advogado Tito Menezes, assessor jurídico da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Desde 2019, dispararam as ocorrências de garimpo em terras indígenas na Amazônia, o que fez recrudescer a violência contra povos originários. Aumentaram, também, a incidência de malária e os casos de contaminação de rios pelo mercúrio usado no garimpo de ouro. “A aprovação desse PL — que consideramos inconstitucional — vai levar essa economia da destruição para as demais terras indígenas, levando, consequentemente, a morte para esses povos. O projeto pretende erodir os direitos garantidos aos indígenas na Constituição. E isso traz prejuízos econômicos e para a organização social desses povos”, afirma o advogado.
Por fim, a mineração não gera benefícios socioeconômicos para as populações locais. Outro trabalho conduzido por Juliana e seus colegas do Instituto Escolhas constatou que, nas regiões da Amazônia onde há exploração legal de ouro e diamantes, há uma breve melhora em indicadores como PIB per capita, educação e saúde. Mas os efeitos positivos duram pouco, e tendem a regredir depois de três anos. “Com efeitos apenas momentâneos sobre os indicadores, a extração desses minérios não é capaz de transformar a realidade local a longo prazo e manterá a região pobre, doente e sem educação”, escrevem os pesquisadores.
Há grandes empresas interessadas nessa atividade ?
Até agora, as grandes mineradoras declararam ser contrárias ao projeto de lei. Em um comunicado divulgado no dia 15 de março, o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) — associação que reúne as maiores empresas do setor — chamou o texto de “inadequado para os fins a que se propõe”. A associação defende que a proposta precisa ser mais debatida pela sociedade brasileira, inclusive com populações locais, que seriam diretamente afetadas pelos empreendimentos.
Juliana explica que, para essas empresas, há ao menos dois riscos grandes associados a esse tipo de empreitada: o financeiro e o reputacional. O financeiro é simples de compreender: as jazidas na terras indígenas da Amazônia foram pouco pesquisadas. Muitas estão localizadas em áreas remotas da floresta. Explorá-las exige que as empresas levem infraestrutura — de maquinário pesado a vias de acesso — para essas regiões. É uma empreitada cara e de viabilidade econômica incerta. Por fim, a mineração gera impactos ambientais e sociais que podem resultar numa associação entre essas empresas e a destruição da biodiversidade. Um dano grave à sua reputação.
Apesar disso, há grandes mineradoras na lista da ANM que registra requisições para minerar nessas áreas. Vale S.A e Anglo American Níquel Brasil LTD aparecem, respectivamente, na terceira e quarta posição entre as maiores requerentes.
Se o PL 191/2020 não interessa às grandes mineradoras, quem sai ganhando com a aprovação da medida? Na avaliação de Juliana, os maiores beneficiados seriam os garimpeiros já em atividade na região. Hoje ilegais, passariam a ser regularizados. “O Brasil é, hoje, um país garimpeiro”, afirma a pesquisadora. “ A área hoje explorada pelo garimpo é maior do que aquela minerada por uma grande indústria”.
Ela explica que o garimpo que avança nas terras indígenas da Amazônia pouco tem a ver com a imagem tradicional do garimpeiro artesanal: são operações industriais, que se valem de maquinário pesado, grandes balsas para transporte e helicópteros. Na avaliação dos pesquisadores do Instituto Escolhas, trata-se de “mineração ilegal” e não garimpo. “Há uma crescente pressão do governo por explorar essas áreas e regularizar essas atividades ilegais”, explica Juliana.
Foto de topo: Vinícius Mendonça/ Ibama
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