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Governo federal esvaziou espaços de participação social, dizem pesquisadores

Levantamento mostra que 68% dos conselhos gestores de políticas foram extintos, alterados por decreto ou estão inativos. Políticas sociais e ambientais aparecem entre mais afetadas

Rafael Ciscati

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A reunião do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDI) estava prestes a terminar quando Lucia Secotti notou um burburinho percorrer a sala. Era abril de 2019 e Lúcia ocupava o posto de presidente do colegiado. Ligado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), o grupo reunia representantes do governo e de organizações da sociedade civil, e  tinha por função debater e fiscalizar os rumos das políticas federais destinadas às pessoas com mais de 60 anos. Aquele era já o terceiro dia de uma reunião que, lembra Lúcia, custara a acontecer. Alegando falta de verbas, o ministério desmarcara a reunião do CNDI programada para janeiro. O encontro  foi reagendado para fevereiro, depois março — e aconteceria, por fim, naquele início de abril, em Brasília. 

À boca miúda, circulava o boato de que o governo Bolsonaro pretendia fazer mudanças na estrutura dos conselhos gestores de políticas públicas — um conjunto de órgãos colegiados, em expansão desde o início dos anos 1990, e que servem como um dos pontos de contato entre a administração federal e a sociedade civil organizada. Havia sinais de que a relação desses órgão com o governo ia mal.   “Já em janeiro, o governo tinha extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Justo num país desigual como o nosso”, lembra Lúcia. E a demora em realizar a reunião do CNDI era outra mostra de que “a correia tinha escapado da engrenagem”, conta ela.  Era esse o assunto que dominava aquele final de reunião. Lúcia só teve tempo de se inteirar das novidades a caminho do aeroporto, de volta para casa. Numa canetada, o presidente Jair Bolsonaro acabara de extinguir todos os conselhos e órgãos colegiados ligados à administração federal. O decreto 9759, de 11 de abril de 2019, punha fim a grupos que discutiam direitos das crianças, política indigenista, trabalho e previdência, dentre outros temas. Àquela altura, o alcance da medida era ainda desconhecido.“Minha reação inicial foi de dúvida: o CNDI tinha sido extinto ?”, lembra Lúcia. 

Três anos depois, um levantamento ainda inédito tenta mensurar as mudanças provocadas pelo decreto de abril. Segundo a análise, conduzida pelos professores Adrian Lavalle, da Universidade de São Paulo, e Carla Bezerra, da UFRJ, havia 96 conselhos gestores de políticas públicas ativos no início de 2019. Desde então, sempre por força de decretos, o governo Bolsonaro extingui 22% desse total. Outros 18% ainda existem, mas estão inativos. E  28% tiveram sua composição e suas funções alteradas. No total, as mudanças promovidas pelo governo afetaram 68% dos colegiados. “Com isso, o governo tentou esvaziar os espaços que pudessem lhe fazer algum tipo de oposição”, diz Carla. 

Carla conta que o decreto de abril foi a mais simbólica de uma série de medidas tomadas pelo governo que reduziram o espaço de atuação da sociedade civil organizada. A legalidade do texto foi imediatamente questionada na justiça: já no dia 13 de abril daquele ano, uma decisão do Supremo Tribunal Federal determinou que não poderiam ser extintos aqueles conselhos cuja existência estivesse prevista em lei.  “Isso fez com que o governo lançasse mão de outras estratégias”, diz Lavalle. Impossibilitado de excluir conselhos sumariamente, o governo editou pelo menos mais 30 decretos, pela conta dos pesquisadores. Cada um deles destinado a alterar o número de participantes e o funcionamento dos colegiados que tinham sobrevivido. 

Foi esse o destino do Conselho de Políticas para Idosos. O colegiado fora criado em 1993, com aval do Congresso Nacional. Seguindo a decisão do STF, não poderia ser eliminado por decreto. Ante o futuro incerto, Lúcia Secotti — a então presidente do CNDI — conta que entrou em contato com o ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Numa audiência com a ministra Damares Alves, foi avisada de que a pasta tomaria medidas para preservar o colegiado. No dia 27 de junho, teve uma nova surpresa: um novo decreto, número 9893, foi editado para alterar a composição do CNDI. Lúcia e seus colegas foram destituídos. “Os representantes da sociedade civil passaram a ser escolhidos pelo próprio MMFDH”, diz Lúcia. “Isso acabou com a transversalidade da política. O CNDI foi desfigurado.” 

Carla Bezerra conta que as mudanças alteraram mais pesadamente conselhos que tratavam de políticas sociais, meio ambiente e direitos humanos. “Foi o que aconteceu com o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), que passou de 96 conselheiros para 23”. 

Os conselhos gestores de políticas públicas ganharam fôlego no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988. Antes disso, já existiam órgãos colegiados — o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o mais antigo deles, foi criado em 1938. “Mas sua natureza era outra. Eram conselhos de notáveis, sem participação popular”, explica Adrian Lavalle, da USP. 

Eles ganhariam novos contornos a partir da redemocratização. “A Constituição de 1988 prevê a participação social na gestão de áreas consideradas estratégicas, como educação, saúde e assistência social”, diz Lavalle. “Depois de promulgada a Constituição, há um processo de regulamentação desses mecanismos de participação social”. 

Os conselhos gestores de políticas públicas passam a fazer parte de um ecossistema de participação social, que envolve outros mecanismos, como conferências nacionais e orçamentos participativos. Além dos conselhos ligados à administração federal (que foram afetados pelo decreto presidencial), há conselhos municipais e estaduais. Lavalle diz que, antes do governo Bolsonaro, eles chegaram a somar 70 mil conselhos em todo o país. “Não por acaso, o Brasil se tornou conhecido, em todo o mundo, como um laboratório de experiências participativas”. 

Mesmo com atritos eventuais, essas experiências se fortaleceram ao longo dos anos 1990 e até meados de 2010. “Os governos Fernando Henrique e Lula trouxeram militantes históricos para ocupar cargos em ministérios. Havia atritos, mas nós tínhamos espaços de interlocução”, diz Sandra Carvalho. Coordenadora da ONG Justiça Global, Sandra fez parte do Conselho Nacional de Direitos Humanos por dois mandatos. 

O alcance das ações dos conselhos varia caso a caso, de acordo com as regras definidas durante sua criação. Há aqueles com maior ingerência no desenho de políticas públicas — caso do Conselho Nacional de Saúde (CNS). E outros de caráter consultivo. Todos, no entanto, têm o mérito de aproximar sociedade civil e governo. “Os conselhos são espaços de contraponto. Trazem esse olhar do beneficiário da política, que é essencial para melhorar sua execução”, diz Mônica Alckmin, coordenadora do Movimento Nacional dos Direitos Humanos. “A participação social é um preceito constitucional. Sem ela, a democracia perde”, afirma. 

Mônica coordena a comissão de participação social do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Na avaliação dela, as mudanças introduzidas a partir de 2019 deixaram grupos populacionais vulneráveis, ao imobilizar a atuação dos conselhos. “É o caso do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que, durante toda a pandemia, nem mesmo se posicionou sobre mecanismos de proteção às crianças, sobre o ensino remoto ou outras questões que afetam esses públicos”. 

Outros prejuízos foram sentidos na área ambiental, lembra Carla Bezerra, da UFRJ. Ela lembra que as alterações no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) extinguiram mecanismos que protegiam áreas de mangue e restinga. As mudanças foram eventualmente revertidas na justiça. 

Paulo Carbonari, do MNDH, aponta que a experiência vivenciada nos últimos anos sugere que é preciso avançar mais na institucionalização dessas instâncias de participação social. “Para que não fiquem à mercê de canetadas desse ou daquele governo”. 

Mônica Alckimin, do CNDH, se permite ser positiva: apesar de considerar o cenário atual preocupante, ela acha que há espaço para avançar. “O que faz a democracia não são os espaços. São os movimentos, as pessoas. E eles não estão apenas dentro dos gabinetes”, afirma. “A principal luta pelos direitos humanos se dá nas ruas”. 

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