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O Lugar de alguns corpos no mundo

(Re) Existências viscerais, lutas atemporais: ao definir o homem branco, europeu, heterossexual e cisgênero como o "normal", o humanismo criou o "anormal". Criou corpos periféricos

Mariah Rafaela Silva

16 min

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Por Mariah Rafaela Silva, do Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de favela

Atravessamos um tempo em que relevantes questões políticas exigem de nós um posicionamento ético urgentíssimo frente às demandas em raça, gênero, sexualidade e território. A contemporaneidade demanda de nós uma atitude coletiva frente às opressões históricas que recaem sobre os corpos periféricos do mundo, dado os resquícios coloniais e ditatoriais que ainda nos assombram e traumatizam.

Justo por isso, o espaço dessa coluna será dedicado aos corpos e corpas periféricas. Nos próximos meses, vamos tratar de suas histórias, suas realizações, seu protagonismo, seus problemas e lutas. Entretanto, nos concentraremos em evidenciar suas potências, culturas, sua alegria. Nos interessa, portanto, desnaturalizar o entendimento sobre as periferias (do corpo, da subjetividade, dos territórios, dos afetos…)

Mas, não entenda mal o significado de corpo periférico. Não nos referimos (somente) aos corpos que ocupam as periferias globais. Nessa nossa coluna, faremos um alargamento do conceito. Aqui, os corpos periféricos serão entendidos também como corpos/corpas não hegemônicas, ou seja, como aqueles corpos que por alguma razão escapam à ratio (a racionalidade, a razão) da inteligibilidade social e da performatividade do homem branco, cisgênero, heterossexual, europeu-dominador, detentor dos meios de produção econômica.

Esse corpo hegemônico é uma invenção já com alguns séculos de história. Ele surge em determinado momento, num movimento político-cultural que se ampliou da Europa para o mundo, denominado humanismo. Uma “atitude” histórica cujos processos voltam-se para o homem como centro do universo, tendo nas dinâmicas científicas, políticas e culturais suas ferramentas de poder. Quando o corpo hegemônico é criado, surge também o seu oposto.

Como o humanismo inventou o corpo periférico

Em um texto intitulado O feminismo não é um humanismo, publicado em 2014, o filósofo trans* Paul B. Preciado, afirma categoricamente que o feminismo é um animalismo.

Quando diz isso, na verdade o que ele está colocando em evidência é um certo tipo de devir-animal cujas lutas históricas estão associadas aos corpos e subjetividades à margem da sociedade: as pessoas negras, as pessoas indígenas (indigenizadas), as pessoas LGBTQI+, as pessoas deficientes, enfim todos aqueles que historicamente foram jogados ao limbo existencial dado o diagrama de forças produzido a partir dessa “atitude” histórica; o humanismo, que pouco tempo depois culminou com o colonialismo.

É que o humanismo inventou os corpos calcado num paradigma político-estético forjado pela figura da monstruosidade e que, ao longo dos séculos XV ao XVII, vai sendo reatualizado, culminando no modelo intrínseco da razão, a estrutura sine qua non da cientificidade como bem último da humanidade difundido pelos ideais iluministas. Preciado, acertadamente, afirma que:

Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da Revolução Industrial, mas sim o escravizado trabalhador da lavoura, a trabalhadora do sexo e reprodutora, e os animais. As primeiras máquinas da Revolução Industrial foram máquinas vivas. Assim, o humanismo inventou um outro corpo que chamou humano: um corpo soberano, branco, [cis]heterossexual, saudável, seminal. Um corpo estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas e cujos desejos são os efeitos de uma tecnologia necropolítica do prazer. Liberdade, igualdade, fraternidade. O animalismo revela as raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu. O regime de escravidão, e depois o regime de trabalho assalariado, aparece como o fundamento da liberdade dos “homens modernos”; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como o reverso da igualdade; a guerra, a concorrência e a rivalidade como operadores da fraternidade [grifos meus].

Apresentação durante a Marcha das Mulheres Negras, em São Paulo, em 2018 (foto: Mídia Ninja)

Em outras palavras, o humanismo inventa o humano e não-humano. Inventa o normal e o anormal, inventa inclusive as técnicas de prazer (postas em prática pelo olhar e por um regime dominante de subjetividade). Há, portanto, de se fazer uma pequena pontuação; dizer que o humanismo inventa o anormal, significa perceber como, quando e de quais maneiras, esta forma de “subjetividade” passa a constituir um elemento importante tanto do ponto de vista discursivo quanto das práticas sociais, ganhando sentidos em determinados regimes de verdade (LIMA, 2014). Em suma, o humanismo – e sua ideia de humano, demasiado humano, ou melhor, de homem (e não é qualquer homem) como o centro – constitui o solo e o céu do mundo. Suas urdiduras históricas vêm deixando um lastro de sangue sobre a Terra, expropriando povos autóctones, racionalizando técnicas de guerra, normalizando corpos e instituindo verdades.

Nesse sentido, propor pensar para além das linguagens dadas como certas é a aposta de Preciado. De maneira que “o feminismo é um animalismo dilatado e não antropocêntrico” (Preciado, 2014), que faz ruir os céus do mundo pintados desde o Renascimento, em sua lógica antropocêntrica. O feminismo questiona crítica, ética e politicamente a noção de humano forjada no interior da ratio humanística e, porteriormente, repensadas e resignificadas pela ratio iluminista.

No processo de colonização histórica, o corpo precisa ser produtivo tanto quanto as terras. É deste modo que, nesta perspectiva, o corpo também passa a ser um território a ser conquistado, domesticado.  Território, nesta perspectiva, é assim, todo espaço (material/físico e imaterial/simbólico/subjetivo) na qual forças externas passam a atuar com objetivos de domesticar, domar, docilizar, por fim, colonizar. Essas estratégias efetivam a própria alteridade do território, sua subjetividade e molda sua identidade. Entram no cálculo a sexualidade e modos desejantes. Território é, portanto, um espaço de fluxos de poder. O corpo, especificamente o corpo dominado, é assim tornado o corpo não-hegemônico, um corpo periférico pois está à margem do centro de emanação desse poder de dominação, ou melhor, desse poder hegemônico.

Quem tem direito a ter direitos?

Com o advento do iluminismo, uma nova cisão é operada no corpo. A razão, a ratio científica deliberadamente soberana, assume um protagonismo primeiro, imediato. Se a razão é o dispositivo de constituição do homem, só a ela pode ser atribuído os processos de aniquilação e as técnicas de manutenção do corpo, do desejo, da sexualidade e do próprio território. O homem social é o homem da razão, aquele cuja razão lhe escapa é aquele cujo espaço social deve ser evitado. Liberdade, igualdade e fraternidade passam, assim, a constituir a verdadeira utopia humana uma vez que os desprovidos de razão, uma razão “iluminística” – iluminada pela perspectiva do Ser (Ser político, sujeito de direito) – é uma parte muito específica das sociedades modernas em desenvolvimento.

Se o corpo entendido como subalterno é em sua gênese algo descartável, se de igual modo, os sujeitos desses corpos são percebidos como despossuídos de direitos dado o processo de constituição de seus corpos e subjetividades, ela/e sequer pode ser considerado “sujeito de fato”, ou seja, aquele cuja cidadania e os princípios democráticos circunscrevem a ontologia do Ser, garantindo-lhes, portanto, acesso ilimitado ao que ingenuamente chamamos, hoje, de “sociedade democrática de direitos”. Seria preciso então repensar a própria noção de democracia.

No percurso histórico de construção do que hoje chamamos de República Federativa do Brasil, de acordo com a Constituição de 1988, alguns corpos e modos de existir estiveram e estão mais acessíveis às políticas multidimensionais de matabilidade. Esses corpos e existências, todos arremessados no que se convencionou a chamar de minoria, são justamente os corpos de pessoas indigenizadas, escravizadas, pobres, LGBTQI e toda sorte de miseráveis que porventura ousar existir fora da grande ficção da inteligibilidade social.

As consequências desse processo histórico colocam um verdadeiro desafio à própria concepção de democracia e o consequente acesso à justiça (aquela ideia de reparação, e inclusão num sistema de igualdade). Na medida em que, não é possível pensar uma democracia sem o povo que a constitui. Mas o que é um povo? Para Agamben (2015: 35),

Toda interpretação do significado político do termo povo deve partir do fato singular de que este, nas línguas europeias modernas, sempre indica também os pobres, os deserdados, os excluídos. Ou seja, um mesmo termo nomeia tanto o sujeito político constitutivo como a classe que, de fato, se não de direito, está excluída da política.


Essa ambiguidade, não é apenas linguística, mas ela mesma é parte de um conjunto de racionalidades que, no curso da história, vem produzindo a própria lógica daquilo que entendemos como democracia. Voltando ao pensamento de Agamben (ibid. p, 37.), temos que povo

é um conceito polar, o qual indica um duplo movimento e uma complexa relação entre dois extremos. Mas isso significa, também, que a constituição da espécie humana num corpo político passa por uma cisão fundamental e que, no conceito de povo, podemos reconhecer sem dificuldade os pares categoriais que vimos definir a estrutura política original: vida nua (povo) e existência política (Povo), exclusão e inclusão, zoé e bios. Ou seja, o povo já traz sempre em si a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído. 


Nesse sentido, o povo é constituído no interior de um paradoxo que faz uma parte significativa dele mesmo o excesso, aquilo do qual se pode descartar, aquilo que “legitima” em seu corpus a própria lógica da aniquilação. Democracia e anti-democracia: duas e uma só coisa. Mas a fratura, engana-se Agamben, é ela mesma necropolítica, aquilo que é retirado da completa possibilidade do Ser, ou seja, é pelo viés da fratura que se caracteriza uma pulsão necropolítica em tensão a um logos biopolítico. Portanto, a fratura é incondicionalmente uma fratura bionecropolítica. É preciso exterminar o “excesso” tanto quanto incluir o “imprescindível”. Estamos falando dos corpos nos quais “escolhemos” (essa escolha é uma “deliberação” das políticas de soberania atravessadas por interesses econômicos, políticos e sociais e estéticos específicos) deixar viver e fazer morrer, tanto quanto dos corpos que deixamos morrer e fazemos morrer; duas coisas aparentemente semelhantes cujas práticas são radicalmente opostas.

Racismo, cisgeneridade e lutas por direitos

Parada LGBT em Brasília, 2018 (foto: Mídia Ninja)

O processo de colonização, conforme aponta Grada Kilomba (2019), é constituído por densas relações políticas de exclusão. Essas políticas não são apenas políticas espaciais ou geopolíticas, elas circunscrevem cada instância molar e molecular de nossas vidas, forjando uma verdadeira máquina social, cujos processos produtivos incidem, por exemplo, nos modos como arrumamos nossos cabelos, como nos relacionamos sexualmente, nas dinâmicas de exclusão presente na cor da pele, nas políticas de acesso aos espaços públicos etc. Elas literalmente constroem e efetivam as nossas instituições, as nossas subjetividades e os mecanismos inventados pelos dominadores na constituição do projeto legalista social.

O racismo, portanto, passa a ser a engrenagem que vai regular essa máquina, gerando uma força incomensurável que vai inscrevendo os processos da grande máquina social, associando-os ao mais diversos tipos de violência e opressão. Em outras palavras, o evento racial é um evento que funda a própria vida no “ocidente” subalternizado a partir de 1492.

O racismo é um processo coletivo, culturalmente produzido e compartilhado nas engrenagens do campo do social com força político-estrutural, histórica e econômica. Nessa densa relação, o racismo coletivo é agenciado por multiplicidades prático-institucionais, sofre processos de individuação, introjetando-se nas subjetividades e constituindo estruturas identitárias. Essas estruturas efetivam e gerem a manutenção das próprias engrenagens macropolíticas. No processo de individuação, ou seja, de impingir no indivíduo um processo coletivo fazendo esse processo se interiorizar, o racismo é lançado no campo da micropolítica, arremessado nas dinâmicas mais ínfimas e íntimas das relações interpessoais. As estruturas macropolíticas ingressam nos agenciamentos, ou melhor, literalmente agenciam os processos micropolíticos, desterritorializando as práticas institucionais e reinserindo-as em outros territórios, o território da alteridade e do campo ético-estético. É deste modo, entre outros, que o racismo constrói suas práticas coletivas de negação e obliteração do Outro, constitui uma verdadeira política de higienização e extermínio. Essa concepção um tanto psicologizante das práticas raciais contribui para materialização de uma série de procedimentos e codificações no campo das políticas e economias sociais do indivíduo. Essa estrutura é agenciada ao infinito pelas diferentes dimensões da cultura. Segundo Stuart Hall (2016: 20),

Os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente gerem efeitos reais e práticos.

 
Em outras palavras, é no interior da cultura onde a representação da alteridade (negra, trans etc.) ganha significado e entra num agenciamento intensivo de negação. Mas, indispensável ao racismo é a própria noção de cisgeneridade. A cisgeneridade enquanto regime de poder, não apenas diferencia pessoas transexuais e pessoas não transexuais, como ela mesma institui as dinâmicas binárias e os processos de inteligibilidade de gênero. Logo, racismo e cisgeneridade são dispositivos complementares e indispensáveis um ao outro. De modo que qualquer estratégia de combate à transfobia e ao racismo serão infrutíferas, se dedicarmos nossos esforços justamente em compreender o oprimido e não o opressor.

Isso não significa dizer que não devamos nos atentar paras modos específicos de vivências das pessoas trans e suas necessidades, não é isso que estou dizendo, mas implica necessariamente em afirmar que os atores políticos, jurídicos e sociais devem tomar o tema da cisgeneridade como o agente causador de processos singulares de violação que pessoas transexuais experimentam. A transfobia e o racismo são materializações de um radical processo de amputação social que se materializa nas práticas institucionais e interacionais ao longo de nossa história.

Na impossibilidade e no desejo de acesso a esse “sistema democrático de direitos” temos assistido uma verdadeira avalanche de processos judiciais que reclamam direitos básicos. As últimas conquistas das pessoas LGBTQI+ no Brasil, em especial aquelas relacionadas às pessoas trans, foram praticamente, se não todas, conquistas efetivadas pelo poder judiciário. E é justamente aí que reside a lógica do paradoxo. Conforme aponta Élida Lauris (2015: 10),

o conceito de acesso à justiça deve desenvolver-se num quadro conceptual amplo de articulação entre agência e estrutura na distribuição dos direitos, o que inclui a  mobilização de procedimentos e mecanismos judiciais (representação em juízo, consulta jurídica, defesa adequada, devido processo legal), instituições estatais não judiciais (administração pública) e instituições não estatais (partidos políticos, organizações não governamentais) através da iniciativa de cidadãos, empresas e grupos sociais, circunscrevendo não só conflitos individuais, mas também questões coletivas e de direitos difusos, com especial atenção aos conflitos estruturais e às clivagens socioeconómicas existentes (género, classe, etnicidade, etc.). Contudo, no campo da disputa pela distribuição dos recursos políticos, dado o papel dos tribunais enquanto órgão de soberania dedicado à aplicação e à garantia dos direitos em última instância, o acesso à justiça strictu sensu, isto é, o acesso ao poder judiciário, assume a centralidade da discussão.


Ora, se pessoas – e neste caso em específico as pessoas travestis e transexuais – só podem ter seus direitos e reconhecimento civil garantidos pela mediação do poder judiciário, reforça-se assim a própria lógica de fratura desses corpos, na medida em que suas vidas precisam ser “traduzidas” de acordo com o que preconiza os documentos legais. Não obstante, esse processo é um indício que a cidadania dessas pessoas só pode ser efetivada pelo viés judiciário e mesmo assim parcamente. Essas pessoas, portanto, passam a ter seu reconhecimento cidadão pela mediação de forças intrínsecas ao seu próprio processo de monstrualização (FOUCAULT, 2010).

Essas engrenagens norteiam nossas agendas sociais cotidianamente. Romper com elas, no entendo, é um processo por vezes traumático e adoecedor. Nesse sentido, essa coluna nasce como uma ferramenta de produção de contra narrativas dos postulados hegemônicos. Queremos, ou melhor, precisamos enxergar para além das nuvens do grande céu mundo, fazê-lo ruir e desabar, não para nos movermos entre seus escombros, mas para sentirmos as possibilidades de criação de um novo mundo, um mundo que é de todos nós e que acontece no aqui e no agora. Um mundo onde a agência da alteridade multiplique sua potência com força descomunal, lançando os corpos periféricos no plano de imanência do sensível. Trazer a potência das periferias é reivindicar um outro lugar que transborde a subalternidade e as narrativas clássicas que povoam o imaginário coletivo e social. Há muito mais que dor nas experiências transexuais. Há muito mais que o racismo nas experiências racializadas. Há muito mais que a violência nas experiências da favela… e é isso que também nos importa.

Ora yê yê ô Oxum.

Referências

FOUCALT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974 – 1975). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
LAURIS, Élida. Para uma concepção pós-colonial do direito de acesso à justiça. Belém, Revista Latino-Americana de Direito Humanos, v. 6, n. 1, 2015.
LIMA, Fátima. Corpos, gêneros e sexualidade: políticas de subjetivação. Porto Alegre: Rede Unida, 2014.
PRECIADO, Paul. B. O feminismo não é um humanismo. Jornal O Povo, 24 de novembro de 2014. Disponível em https://www20.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml

Foto de abre – Míndia Ninja

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