Jurema Werneck – “ É preciso recolocar a utopia”
Protestos por todo o mundo mostram que há uma multidão de desapontados em busca de um novo sonho
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Por Jurema Werneck*
Nos últimos meses, tenho lido a conta-gotas o livro “No enxame – perspectivas do digital”. Escrito pelo filósofo Byung-Chul Han, um crítico mordaz da sociedade do consumo, a obra afirma que vivemos tempos de "indivíduos empoderados". São pessoas que confiam profundamente em suas crenças e que, solitárias, se expressam com autoridade pelas redes sociais. Falam todas juntas sem se ouvir, num vozerio que lembra um enxame. É um monte de gente. Mas são um monte de “uns”. Antes, segundo esse professor, as pessoas eram capazes de defender sonhos coletivos. Eram multidões que falavam em uníssono, embora houvesse divergências. Mas havia também a capacidade de encontrar um terreno comum, um projeto, que mudava o jogo da política. Eram um monte de ‘uns”, de indivíduos com histórias próprias. Mesmo assim, eram capazes de fazer recuar seus desejos individuais em favor de um projeto coletivo. É essa capacidade que não podemos perder nos individualismos de agora.
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Hoje, os muitos “uns” vão para as ruas, mas parecem ainda estar sozinhos, com dificuldades de dar um passo atrás para sonhar coletivamente . Haiti, França, Espanha, Colômbia, Hong Kong, Bolívia, Irã e outros mais – em todos esses lugares, as pessoas protestam para mostrar que estão desapontadas e zangadas com um sistema político que, elas acreditam, não foi capaz de melhorar suas vidas. Alguns dizem que, no Brasil, fizemos o mesmo em 2013. Infelizmente, na maior parte dos casos, a resposta das autoridades responsáveis tem sido violência policial e perseguições, violando o direito de livre manifestação que todas e todos têm.
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O que as notícias que nos chegam desses lugares contam? Elas sugerem que, de acordo com a perspectiva do filósofo, ir para as ruas denunciar e protestar não tem sido suficiente para mudar as coisas que precisam e queremos que sejam mudadas.Faltaria a esse enxame descobrir e enunciar o mundo que se quer construir, para si e para os outros. Falta o sonho coletivo. Uma nova utopia.
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O sonho de minha geração era construir, no Brasil, uma sociedade de direitos. Por muito tempo, acreditamos que o país avançava nessa direção. Acreditamos na Declaração Universal do Direitos Humanos, por exemplo — um documento que, em 2019, completou 71 anos e cuja adoção pelas Nações Unidas é celebrada no dia 10 de dezembro. Aquela era uma aposta que parecia ganha quando, em 1988, foi promulgada a Constituição Cidadã. Na ocasião, apostamos que o Brasil poderia escolher um novo rumo institucional. E confiamos que essa escolha teria reflexos na vida cotidiana. E chegamos até aqui.
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Hoje, o desânimo com essas notícias nos jornais nos fazem crer que fomos derrotados nessas apostas, apesar do muito e importante que se construiu. No começo de dezembro, nove pessoas morreram e outras 12 ficaram feridas durante uma ação policial na favela de Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo. O massacre aconteceu enquanto aqueles jovens, muitos recém-chegados à maioridade, se divertiam em um baile funk. O incidente engrossou a lista de graves violações de direitos humanos cometidas pela polícia brasileira — uma das mais letais do mundo — e uniu-se à sequência ampla de violências estruturais que ocorrem no Brasil desde há muitos séculos. O massacre de Paraisópolis nos fez lembrar que o Brasil não é — nem jamais foi — um país bom apesar de nossos projetos e esperanças. As notícias nos jornais, que nos falam de censura, perseguição e morte em 2019 são contundentes: a sociedade de direitos com a qual sonhávamos em 1988 ainda não foi concretizada.
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A derrocada dessa nossa utopia, no entanto, é anterior a 2019. O Brasil avançou nos últimos 30 anos, não podemos negar. Mesmo assim, uma parcela ampla da população continuou sem acesso a direitos básicos. Muitos de nós apostamos no fortalecimento de uma sociedade de direitos, mas o cotidiano de tantos e tantas seguia contrariando a aposta. Porque nunca se encarcerou tanto no país quanto nessas últimas três décadas. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo: uma multidão de pessoas pobres e negras atrás das grades, cerca de 40% delas sem qualquer condenação. Prometemos para as pessoas que suas vidas melhorariam. Dissemos que o Brasil respeitaria a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, nas favelas, crianças são mortas. Nas aldeias, indígenas são assassinados. Diante disso, para a maioria dos brasileiros, “direitos humanos” não passam de palavras.
Essas muitas promessas não cumpridas tiveram consequências. Desapontadas e frustradas após as grandes mobilizações de 2013, as pessoas se zangaram. Tomaram decisões baseadas na raiva e no medo. Nas últimas eleições, o Brasil elegeu um presidente com visões autoritárias, que se opõe abertamente à sociedade civil organizada e aos direitos humanos. Se as pessoas vão para as ruas desapontadas, num enxame de muitos "uns", é porque um dia também acreditaram num sonho que não se concretizou. Confiaram numa utopia não alcançada.
O enxame, no entanto, está na rua. Quer ser ouvido. Chama para si uma responsabilidade. Quer operar mudanças. Talvez, o que falte é a utopia que poderá unir o enxame. É preciso recolocá-la. Qual é ela? Ainda não sabemos. Podem ser muitas. A utopia da Greta Thumberg, seu projeto para o coletivo, é deter o aquecimento global. É lutar para que o mundo não pegue fogo. A utopia do Ailton Krenak é adiar o fim do mundo. Qual utopia vai nos fazer levantar da cama amanhã? O enxame na rua cobra essa resposta. Precisamos dialogar, para descobrir um caminho. Por que o fim do mundo está aqui perto. A utopia, ainda precisamos construir.
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