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Vacina é apenas parte da solução, mas temos outros e imensos desafios

As desigualdades sociais existiam antes da Covid-19. Os problemas nas políticas de emprego, feminicídio e evasão escolar foram agravados com a pandemia

Maria Teresa Ferreira

7 min

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O mundo foi atravessado por longos e dolorosos dias em 2020, finalmente a travessia chegou ao fim. Aportamos em 2021 com muitas expectativas, principalmente em relação à imunização contra o coronavírus. As esperanças do mundo estão centradas nas políticas de vacinação para que tenhamos dias melhores. O mundo está no processo de imunização, há lugares, como os Estados Unidos da América e a União Europeia (UE), que já estão fornecendo a segunda dose da vacina. Importante que se diga que juntamente com os esforços de vacinar toda a população desses países, também foram tomadas medidas de proteção e auxílio, tanto nas populações mais vulneráveis quanto nas suas economias.

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Nos EUA houve o aumento do valor do auxílio pago às pessoas afetadas pela pandemia da Covid-19 e na UE foram adotadas medidas para mobilizar e flexibilizar o orçamento para proteção da vida, dos meios de subsistência e aumento da capacidade do sistema de saúde. Essa é uma perspectiva mundial.

O Brasil é um lugar peculiar, ouso dizer que nós estamos na contramão da história quando falamos sobre a pandemia. Nós e os EUA no governo Trump. Será um problema de governo? Penso que antes de elaborar sobre as questões que envolvem a vacinação, aqui na Terra Brasilis, é urgente ter clareza de que a vacina está longe de resolver os problemas que já existiam antes da pandemia, a exemplo das desigualdades sociais, que inclusive foram agravadas em decorrência dela. 

A política de vacinação é de extrema importância para erradicação da Covid-19, mas ela precisa estar dentro de um plano de ação que efetivamente combata os efeitos da pandemia, e não somente a imunização contra uma doença/vírus. A ausência de um plano integral de combate a pandemia reforça a dissociação dos seus efeitos e suas consequências. A vacinação não pode ser um ato isolado dentro do caos que estamos vivendo, é preciso que tenhamos olhos para outras áreas que compõem a vida e o bem-estar das pessoas que estão integralmente envolvidas na pandemia.

Carecemos da visão integral do ser humano e das suas necessidades básicas. Também é preciso considerar que estamos falando de um conjunto de indivíduos que estão vivendo em situação de pandemia ou sendo mais otimista, caminhando para a pós-pandemia. A partir dessa análise, as urgências se mostram mais concretas, mesmo nas suas complexidades.

Compreender que estamos falando de um ser humano pós pandemia, é entender que as garantias para sua sobrevivência estão para além da imunização, elas têm relação direta com sua saúde mental, emocional e mais ainda com sua sobrevivência.

A criação de um plano com estratégias claras de recuperação de empregos, para além das políticas de assistência como o auxílio emergencial se faz urgente, porque como canta Gonzaguinha “E sem o seu trabalho/Um homem não tem honra/E sem a sua honra/Se morre, se mata/ Não dá pra ser feliz/ Não dá pra ser feliz” – Guerreiro Menino (Fagner).

Não dá pra ser feliz sem uma política econômica que garanta o incentivo ao empreendedorismo que, segundo o Sebrae, compõem 30% do PIB, principalmente se considerarmos o agravamento da taxa de desocupação causada pela pandemia. Investir em pequenos e médios negócios me parece uma estratégia inteligente para a geração de emprego e renda.

As mulheres, sobretudo as mulheres negras, continuam sendo as mais atingidas pela pandemia do coronavírus, exatamente pela sua situação de vulnerabilidade. A ausência de políticas efetivas de emprego e geração de renda, são fundamentais para que elas possam se manter, ainda mais agora com a suspensão do auxílio emergencial. São essas mulheres com seus fazeres ancestrais, que desde a pós-abolição, movimentam a economia. Quando levavam para as ruas seus tabuleiros de frutas e verduras, para serem vendidos dando conta da sua sobrevivência e da suas famílias, como está descrito no livro  Mulheres Negras do Brasil de Schuma Schumaher (Editora Senac).

>>Glossário: o que é racismo estrutural

A força de trabalho da mulher negra é ancestral, é a renda dos trabalhadores informais que nesse tempo pandêmico e de isolamento, tem permitido o funcionamento de pequenos e médios negócios. Confirmando o que nos ensina Ângela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

As crianças e os jovens também foram duramente afetados pela pandemia. O isolamento social os afastou da escola e a demora na implementação das diretrizes curriculares, pelo desconhecimento da operacionalização online para o ensino a distância, prejudicou substancialmente a aprendizagem de milhares de crianças e jovens em idade escolar. Hoje ainda não sabemos como será feita a recuperação do conteúdo escolar, como também é uma incógnita se nossos filhos voltam ou não para escola.

Terminamos 2020 com o aumento do feminicídio, o agravamento do genocídio da juventude negra e do número de pessoas em situação de rua também. O pacote de arroz está custando trinta reais. Sem contar o MP sendo acionado para impedir festas de réveillon e a polícia literalmente fechando “reuniões particulares”. O Neymar passou incólume pelas batidas policiais.

Estreamos 2021 com os apelos da OMS para evitar aglomerações. A Europa recrudesceu as regras de isolamento para o combate do novo, novíssimo coronavírus eu diria. No Brasil as conhecidas chuvas de verão já começaram a inundar casas e arrastar pessoas nas suas enchentes.

A sociedade brasileira vive a ilusão infantil do salvamento fora de nós, como nos filmes e nos desenhos dos estúdios de Hollywood. Estamos como as princesas penduradas na janela à espera do milagre que irá salvá-las do patriarcado. As pessoas têm depositado na vacina contra o coronavírus todas as suas esperanças de transformação e infelizmente isso não é real.

A vacinação vai dar conta do que lhe é cabido, imunizar os corpos de determinado vírus e nada mais, a crise sanitária causada pela pandemia tem raízes muito mais profundas. Ela nos atravessa em todas as dimensões da vida e isso sim precisa ficar claro e ser lembrado a todo momento. A vacina não vai trazer as vidas que se foram de volta, mas na perspectiva global da sua eficácia junto com outras políticas, ações e iniciativas ela pode evitar mais mortes.

Nossos corpos estão ansiosos pela vacina, nossos corações excitados pela possibilidade dos abraços, nossa alma desassossegada pela expectativa do retorno da vida normal, toda nossa energia está empregada na vacinação, como se ela fosse a corda de salvação para não sermos tragados pelo abismo, onde reside o dragão chamado coronavírus.

Na medida que bom senso, respeito, empatia e  solidariedade não fazem parte da fórmula da vacina comercializada, seja Oxford/Astrazeneca (Reino Unido), Sinovac/Butantan (China), Pfizer (Estados Unidos e Alemanha) e nosso olhar permanecer na infantilidade dos pseudos milagres, há poucas chances da imunização fazer a diferença.

Foto de capa: Vrin Resende / Mídia NINJA

Uma contribuição de Imagem ilustrativa

Momunes

Sorocaba - SP

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