Intolerância ou racismo: o que, de fato, afeta a nossa fé?
As inúmeras denúncias realizadas por comunidades de terreiro sugere que o termo intolerância religiosa não é suficiente para classificar as violências sofridas por essas pessoas
Coletiva Aroeira
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A partir do ano de 2007, com a Lei n° 11.635/2007, foi instituído o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A escolha da data se deu em homenagem a Mãe Gilda do Axé Abassá de Ogum.
Simbolicamente, portanto, a data de combate à intolerância religiosa no nosso país é o mesmo dia em que morreu uma mulher negra e de terreiro, após uma sequência de atitudes violentas causadas por adeptos das igrejas Assembleia de Deus e Universal. A yalorixá sofreu ataques dentro e fora do seu terreiro. Neste dia 21, podem respeitosamente citar Mãe Gilda, falar sobre seu axé, mas até quando irão atenuar o racismo que baseia os ataques que ela sofria e que todos os povos de terreiro enfrentam cotidianamente?
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De acordo com o artigo 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Um direito que, na prática, não se efetiva desde o período colonial no país. Faz-se necessário lembrar que há pouco mais de 50 anos, as práticas religiosas de matriz afro-ameríndia eram amplamente perseguidas e reprimidas com aval explícito do Estado por meio de leis, como por exemplo, a do estado da Paraíba que proibia a prática pública de rituais de juremeiros ou catimbozeiros. Eram, por isso, perseguidos e reprimidos pela política.
Tal legislação foi mudada no governo de João Agripino, com a Lei Estadual nº 3.443 de 1966 que permitia práticas religiosas que seguissem as diretrizes estabelecidas pela Federação de Cultos Africanos do Estado da Paraíba.
Segundo dados do balanço de denúncias do Disque 100, canal para denúncia de violação dos direitos humanos, em 2018 foram registradas 506 denúncias de intolerância religiosa, das quais 152 encaminhadas por pessoas de terreiro, somadas as categorias Umbanda, Candomblé, matriz africana e outras. Entre todos os segmentos religiosos identificados, a Umbanda e o Candomblé registraram o maior quantitativo de denúncias, com 72 e 47, respectivamente. No estado da Paraíba, em 2019, segundo relatório do Fórum Diversidade Religiosa – Paraíba, 75% das denúncias de intolerância religiosa partiram de pessoas de comunidades de terreiro.
Após constatar as inúmeras denúncias realizadas por povos pertencentes a comunidades de terreiro, vale afirmar que o termo intolerância religiosa não é suficiente para classificar as violências sofridas por essas pessoas. A começar pela definição de religião, algo trazido pelos colonizadores europeus onde as crenças e espiritualidades de origem indígenas e africanas são demonizadas e desconsideradas.
Segundo porque compreendemos que, nos espaços dos terreiro, o que é vivenciado vai muito além de uma prática apenas religiosa, como menciona Flor do Nascimento: “[…] podemos dizer que essas ‘religiões’ são muito mais que religiões, no modo como o ocidente as entende: são modos de vida que contém em seu interior uma espiritualidade’. Ainda seguindo a fala de Flor do Nascimento acreditamos que o termo racismo religioso se enquadra de uma forma mais coesa através de dois pontos que explicitam o racismo, que é constantemente minimizado no termo Intolerância Religiosa, que são:
2- o racismo, por serem estas “religiões” constituídas por pessoas negras e formadas por elementos africanos e indígenas.
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O primeiro ponto é a exotização e demonização, por serem crenças não-cristãs ou não ligadas à cultura que a Europa – e suas projeções no “mundo desenvolvido” – adotou para si (e isso inclui uma convivência menos atritante com religiões judaicas ou islâmicas, por exemplo). O segundo ponto se refere ao fato de serem estas “religiões” constituídas por pessoas negras e formadas por elementos africanos e indígenas.
Quando se define como intolerância religiosa as violências sofridas pelos povos de terreiros, se mascara socialmente o viés racista por trás desses atravessamentos. Seguimos combatendo violências históricas e cotidianas causadas pela intolerância religiosa ao redor do mundo, mas ao falar especificamente do nosso povo, precisamos reafirmar o motivo dos ataques em nossa direção: nossas práticas de crença e espiritualidade com origem indigena e africana. “O meu tambor não se cala não, a minha voz não morre jamais”, assim como canta o Afoxé Oxum Pandá da cidade de Olinda/PE, reafirmamos a existência e continuidade de nossas vozes e tradições em meio a uma estrutura racista que tanto nos nega, silencia e violenta.
Foto de capa: Céu Mendonça/Coletiva Aroeira
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