Os retrocessos na educação em tempos de pandemia
Projeto caro ao governo federal, militarização de escolas ganha fôlego, e ameaça direito de crianças e jovens ao livre pensar
Maria Teresa Ferreira
6 min
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Desde a emergência do novo coronavírus, no ano passado, o modo de viver — e conviver — dos brasileiros passou por profundas revisões. Muitas delas, desagradáveis. Tivemos que nos adaptar a uma nova forma de nos relacionar, e sofremos com a saudade de abraçar nossos afetos. Uma parcela expressiva de homens e mulheres precisou adotar uma nova maneira de trabalhar, o home office. As máscaras seguiram o caminho já trilhado pelos óculos escuros, bolsas e sapatos, e passaram a fazer parte dos acessórios do nosso guarda-roupa.
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Essas mudanças forçadas chegaram à educação. Para evitar a propagação do vírus, adultos, crianças e jovens passaram a interagir em salas de aula virtuais. Os resultados dessa experiência variaram — foram, geralmente, piores para os mais pobres e para os mais jovens. Especialistas indicam que crianças que frequentam aulas presenciais aprendem melhor, e têm a chance de socializar, algo importante para o seu desenvolvimento, sobretudo nos anos escolares iniciais. No Brasil, as escolas públicas são importantes para a alimentação da garotada, que come no colégio o alimento que, por vezes, falta em casa. Por fim, escolas fechadas intensificam a sobrecarga emocional causada pela quarentena e pelo isolamento social.
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De diferentes maneiras, a educação foi afetada pela pandemia, e a sociedade brasileira tenta encontrar caminhos para navegar em meio ao tumulto (se as escolas devem ser reabertas ou permanecer fechadas, esse é um embate ainda acalorado).
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Nesse começo de 2021, a pandemia não é o único desafio à educação de qualidade. Como se não bastassem os percalços impostos pelo vírus, o governo federal e seus aliados decidiram tornar as escolas em uma nova trincheira de sua guerra ideológica. Bandeira de campanha de Bolsonaro à presidência, o governo tenta dar fôlego ao modelo de escolas cívico-militares.
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Em alguns locais, esse modelo já foi implantado e os resultados são desastrosos. Manaus é o maior símbolo dessa experiência. Houve um aumento significativo da violência nas escolas militarizadas, como também houve elevação da evasão escolar das classes menos favorecidas.
No estado de São Paulo, cidades como São Vicente, no litoral paulista; Sorocaba e Campinas no interior do estado, estão na mira dessa nova investida no desmonte dos serviços públicos.
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O que são as escolas cívico-militares?
Nesse modelo, a gestão administrativa das escolas é entregue a militares da reserva das Forças Armadas. Eles atuam, também, como monitores da conduta dos alunos no ambiente escolar. O programa é caro: só em 2020, o MEC já destinou R$ 54 milhões para levar a gestão cívico-militar para 54 escolas, sendo R$ 1 milhão por instituição de ensino.
Para incentivar a expansão do modelo, o Ministério da Educação lançou, em setembro de 2019, o Plano Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). A meta é militarizar 216 escolas em todo o país até 2023. Reportagem do portal UOL conta que, desde então, 15 estados e o distrito federal aderiram ao programa — ou seja, pretendem militarizar seus colégios. Em janeiro deste ano, o governo do estado de São Paulo aderiu ao programa federal.
A ambição levanta uma série de questionamentos. Ponto importante, que a sociedade precisa levar em consideração, e que faz parte do exercício democrático, é a ausência de consulta pública ou o pouquíssimo tempo para discussão do assunto com a comunidade escolar. Em alguns municípios houve, inclusive, manifestações contrarias dos Conselhos Escolares sobre o assunto.
As escolas militarizadas também entraram no radar do Ministério Público (em Goiás, Mato Grosso, Bahia e São Paulo), que questiona a eficácia das escolas cívico-militares para o salto na qualidade do ensino necessário no Brasil, e principalmente quanto aos seus impactos dentro e fora da comunidade escolar.
Quais os problemas criados por esse modelo escolar?
Ao valorizar a disciplina, esse modelo de escola afeta a aprendizagem das crianças e adolescentes, porque reduz a ampliação do olhar para a produção de conhecimentos, resultado da mudança dos conceitos educacionais por pessoas que não são da área, além de apresentar um retrocesso nas conquistas educacionais da comunidade escolar.
Barrar o crescimento e o desenvolvimento do pensamento crítico é o mesmo que silenciar as esperanças em um futuro próspero, inclusivo e capaz de transformar as próximas gerações. É preciso que tenhamos estruturas educacionais que possam ampliar, incluir e fortalecer as capacidades cidadãs de nossas crianças, jovens e adolescentes e não o contrário.
O MP do estado da Bahia questiona a desconsideração de direitos previsto no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, como as que restringem e violam a intimidade e a vida privacidade dos adolescentes. Acrescenta ainda que esse modelo coloca os estudantes como objetos de intervenção e alvos de mecanismos de conformação e normalização, perguntando se é esse o papel de um sistema educacional que se propõe a formar cidadãos?
Como mudar este cenário?
Em vez de usar dinheiro público em um projeto de ares retrógrados, o governo federal deve retornar à sociedade investimentos que possam solucionar problemas urgentes e atuais, e não para criar novos obstáculos na teia da rede educacional.
Modernizar, ampliar e interligar os sistemas digitais que estão sendo usados na pandemia para a continuidade das aulas. Aumentar a oferta dos cursos de capacitação e aperfeiçoamento dos professores das redes públicas municipais e estaduais de ensino. Aumento salarial para os profissionais da área. Rever e reativar a entrega de cestas básicas e cartões de alimentação para alunos de baixa renda. Se é para gastar dinheiro público, eis aqui problemas reais e urgentes que precisam de soluções a curto, médio e longo prazo.
É preciso achar caminhos para construir um futuro promissor, e não cimentar as possibilidades que nos levem a eles. As escolas cívico-militares estão longe de ser a saída para garantir uma educação pública, inclusiva e de qualidade.
Foto de topo: Pátio do colégio CED 01, em Brasília, em 2019. A escola segue o modelo cívico-militar (Fonte: Agência Brasil)
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