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Transfeminismo: (novas) possibilidades na luta das mulheres

Nas reflexões desta travesti preta amazônida, o movimento feminista deve mudar para incorporar mulheres transgêneras em toda a sua diversidade de pensamentos, métodos e corpos

Dandara Rudsan Souza de Oliveira

43 min

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RESUMO: Segundo a autora, mulheres transexuais e travestis devem se envolver em pautas feministas, e ser contempladas pelo feminismo, pois “são mulheres, e legítimas defensoras dos direitos de outras mulheres”. Essa necessidade no entanto, convive com obstáculos, visto que o feminismo “predominantemente teoriza a partir de perspectivas cisgêneras”.  Na avaliação da autora, os espaços dos movimentos sociais (dos movimentos feministas, inclusive), precisam ser capazes de estimular processos de desconstrução social, para que mulheres trans possam se movimentar sem ser julgadas e limitadas por estereótipos de gênero. Esses movimentos precisam, ainda, praticar uma espécie de sororidade que inclua as mulheres trans, algo que a autora não identifica nos movimentos atuais. Caso não o façam, “nós, transgêneras, estamos fadadas a continuar fazendo passagens rápidas por estes espaços, e em seguida partindo para uma luta ‘transfeminista independente’, demasiadamente árdua e/ou solitária e, quando muito, seremos lembradas apenas no mês do orgulho LGBTQI+. Ou quando utilizarem as notícias cotidianas de assassinatos de mulheres transgêneras para cumprir o fetiche de compartilhar a informação em suas redes e grupos sociais”.

A partir dessas observações, a autora propõe pensar as bases do “transfeminismo” — aquele que reflete, de “maneira ampla e profunda”, as experiências feministas de mulheres transexuais e travestis. Segundo ela, não há sentido em pensar um movimento feminista “que não inclua mulheres transgêneras e toda sua diversidade de pensamento, de métodos e de corpos, nos deixando a mercê de um transfeminismo incerto, nos forçando a lutarmos sozinhas”.

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Refletir de maneira ampliada e com profundidade as experiências feministas de mulheres travestis e transexuais é um imperativo para tirarmos os discursos de inclusão da teoria e implementa-los de forma prática, estendendo afeto, visibilidade e proteção a mulheres travestis e transexuais. Estas reflexões, para serem frutíferas, precisam ser praticadas a partir da ótica das travestis e transexuais, baseadas em suas experiências com as relações estabelecidas no feminismo que predominantemente teoriza a partir das perspectivas cisgêneras.

 

O pensamento transfeminista está em construção no Brasil, isso significa dizer que ele não está apenas sendo importado como um conhecimento pré-elaborado, mas, isso sim, está sendo resignificado e adaptado às vozes e realidades das mulheres e homens trans, travestis e demais pessoas trans nestas terras tupiniquins. E isso é extremamente positivo, em termos de criatividade e protagonismo na adequação de uma linha teórica a determinada conjuntura cultural e humana, em oposição à tendência colonialista de introjeção e sujeição a conceitos das metrópoles culturais. (JESUS, 2013, p.6).

Partindo do que nos ensina Djamila Ribeiro (2017, p. 43), que “necessariamente, as narrativas daquelas que foram forçadas ao lugar do Outro, serão narrativas que visam trazer conflitos necessários para a mudança”, saliento que sim, a intenção destas reflexões é gerar incomodo. Gerar o incomodo necessário para que possamos, cis e trans, enquanto feministas, aprofundar as raízes que fortificam a luta histórica das mulheres pela conquista de direitos, ampliando ferramentas e métodos para que agreguem as reivindicações e necessidades das mulheres trans. Não é questão de visibilizar ou valorar experiências em detrimentos de outras, ou disputar narrativa dentro do movimento de mulheres unicamente para ‘ver quem sofre mais’. A intenção principal é contribuir para que se possa perceber onde nós, mulheres travestis e transexuais, estamos colocadas nesta luta feminista e como estas colocações atuais, em determinados momentos nos invizibiliza e silencia, mesmo em contextos onde paradoxalmente se luta pelo direito a fala, pois “o debate é sobre a posição ocupada por cada grupo, entendendo o quanto raça, gênero, classe e sexualidade se entrecruzam gerando formas diferentes de experenciar opressões. Justamente por isso não pode haver hierarquia de opressões, pois, sendo estruturais, não existe “preferência de luta” (BAIRRO apud RIBEIRO, 2017, p.39). É apenas uma tentativa de fazer ecoar ‘novas’ perspectivas feministas partindo das reflexões sob o ponto de vista e do lugar de fala de mulheres trans, pois “o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas” (RIBEIRO, 2017, p.). “Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades” (BAIRROS apud RIBEIRO, 2017, p.39).

>>Nesse 8 de março, precisamos seguir os passos de Marielle

A utilização do conceito de ‘lugar de fala’ discutido por Djamila Ribeiro (2017), para fortalecer os argumentos que defendem a necessidade de lançarmos novas reflexões sobre a luta do movimento feminista, no que diz respeito a legitimidade e visibilidade das mulheres trans, não foi aleatória. Djamila destrincha o conceito de lugar de fala a partir de uma perspectiva ampla de sociedade, trazendo como o lugar de onde falamos é determinado, até que haja o rompimento, pela posição em que nos encontramos na chamada pirâmide social. Desta feita, a intenção destes escritos é provocar a necessidade de refletirmos também sobre nossas ‘micro-pirâmides’ e como as relações de representatividade, visibilidade e protagonismo são pensadas, debatidas e construídas dentro de nossos movimentos feministas, nos permitindo perceber minimamente como estas relações entre mulheres ativistas cis e trans estão refletindo nos caminhos que o movimento está trilhando.

De acordo com Koyama apud Coacci (2013) 

[…]é preciso parar de fingir que são todas iguais e que a inclusão de mulheres trans não é uma ameaça. Segundo a autora a própria existência de pessoas transexuais é uma ameaça a um mundo que essencializa, polariza e dicotomiza gêneros e as comunidades feministas não estariam imunes a essa ameaça, uma ameaça não física, mas social e política. (KOYAMA apud COACCI, 2013, p.149).

A intenção não é responder aos questionamentos e obstáculos que estão postos entre as relações de mulheres feministas trans e cis. A tentativa é voltada justamente a gerar dúvidas incomodas, colocando em xeque alguns fundamentos que precisam ser revistos para que nós, mulheres travestis e transexuais sejamos agregadas por este feminismo atual que visivelmente não nos é plenamente confortável. 

>> O 8 de março e as mulheres das águas

Na condição de mulheres e legítimas defensoras dos direitos de outras mulheres, nós travestis e transexuais, não desejamos pura e simplesmente teorizar o transfeminismo ou nos voltar apenas para o movimento LGBTQI+ como resposta às nossas inquietações. Primeiro porque o movimento LGBTQI+ sozinho também não abarca as pautas das pessoas transgêneros amplamente e depois, não há como mulheres trans simplesmente decidirem não lutar pelas pautas feministas, não lutar pelos direitos das mulheres ou não empregar suas forças para fortalecer o movimento, pois a partir do momento que entendemos a experiência de mulheres travestis e transexuais como seres que também sobrevivem nesta estrutura machista, percebemos como a luta de mulheres, cis e trans, começa a perder o sentido em ser feita separadamente. “É preciso pensar ações políticas e teorias que deem conta de pensar que não pode haver prioridades, já que essas dimensões não podem ser pensadas de forma separada” (RIBEIRO, 2017, p.39-40).

>> Os direitos das pessoas transexuais e travestis migrantes

Neste sentido, respeitando todas as mulheres, cis e trans, que me antecederam e que estão nesta caminhada a mais tempo, àquelas que lutam, ou não sob a bandeira do feminismo, peço licença para falar-vos e desejo profundamente ser ouvida, não para alimentar negativamente o ego ou provocar embates desnecessários, mas para que juntas possamos galgar um futuro onde as diversidades relacionadas a identidade de gênero não sejam motivos para nos apartar, e sim para nos fortalecer mutuamente, pois acredito piamente que, da mesma forma que a luta contra o racismo não será vencida se lutada apenas por pessoas negras, a transfobia não será derrotada sem as mulheres cisgeneras.

Boas reflexões! Laroyê!

  1. NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM”: UM OLHAR FORA DA CIRANDA

“Ninguém solta a mão de ninguém”, esta foi a frase (1) que ecoou após os trágicos resultados do pleito eleitoral do ano de 2018. Criada inicialmente para homenagear a mãe da autora, a frase foi rapidamente incorporada aos ideais de união e resistência diante do cenário apocalíptico que estava por vir. Ativistas e movimentos sociais estamparam, como uma oração, a afirmativa de que, apesar de todas as opressões que se intensificavam, a partir daquele momento estávamos unidas, firmes e atentas para cuidar uma das outras, naquela que demonstrava ser a maior crise política, social e moral da história recente. Não soltar a mão de ninguém, analisando a semântica da frase, pressupõe que estas mãos já estavam dadas, já estavam seguradas e a estratégia de sobrevivência e resistência a partir de agora se basearia em não largar estas mãos, não deixar ruir tudo aquilo que foi construído durante séculos de luta, principalmente no que diz respeito a luta das mulheres e do movimento feminista, negro, quilombola, indígena e LGBTQI+, uma vez que o (des) governo colocado no poder, apresenta abertamente sua oposição aos direitos das mulheres, de comunidades tradicionais, pelo meio ambiente,  encontrando abrigo para seus posicionamentos, em fundamentos machistas, misóginos e racistas.

>> Que perspectivas e desafios há em 2021 no campo dos direitos LGBTQIA+ no Brasil?

A partir daí, um questionamento emergente surgiu em meio à comunidade de mulheres travestis e transexuais: “E as mãos que nunca foram seguradas? ”. Onde estão as mãos das manas travestis e transexuais pretas? Prostitutas? Gordas? ‘Macumbeiras’? Agricultoras? Ribeirinhas? Indígenas? Onde estão as mãos das travestis idosas? Com deficiência física? Moradoras da zona rural? Da floresta amazônica? Da fronteira? ESSAS MÃOS NÃO ENTRARAM NA CIRANDA. 

Para nós, mulheres travestis e transexuais, as manifestações que embasavam a famigerada frase de afeto, ‘ninguém solta a mão de ninguém’, deixaram ainda mais evidente como são seletivos os espaços que “acolhem” nossas pautas e nos estendem seus métodos e afetos, e como o imaginário cisheteronormativo, silenciosamente, mantém seus conceitos externos gerando efeitos sutis dentro dos próprios movimentos sociais. Se a mensagem que se quer passar é de que estamos todas unidas e em resistência, primeiro temos que fazer o exercício subjetivo de reflexionar quais ‘mãos’ estão sendo seguradas e se há realmente diversidade, interseccionalidade e pluralidade de ideias, no momento de decidir a que ‘mãos’ serão estendidas as práticas de afeto, resistência e cuidado. 

Viver em uma sociedade com bases estabelecidas no colonialismo e em fundamentos cisheteronormativos exige de todas as pessoas, ou pelo menos daquelas que se propõem a defender também mulheres travestis e transexuais, uma atenção constante a como este sistema se apropria dos nossos corpos, desejos e relações afetivas, nos definindo características ou atribuições que se refletem na nossa acolhida, ou não, pelas ações e métodos de defesa de direitos, e influenciam diretamente a decisão de quem vai ‘segurar nossas mãos’. 

Para evidenciar como este fundamentalismo cisheteronormativo se estabelece e designa como serão as relações que envolvem mulheres travestis e transexuais, apresentamos a seguir dois fatos, aparentemente contraditórios, sobre a realidade brasileira. De acordo com o Benevides & Nogueira (2020), o Brasil se reafirma “como o país que mais mata travestis e transexuais do mundo, assim como expõe a omissão do Estado frente a esses mesmos dados, ignorando as pesquisas e denúncias feitas pelas instituições que lutam pelos direitos humanos e da população LGBTI”. (BENEVIDES & NOGUEIRA, 2020, p.13). Paradoxalmente, desde 2016, o Brasil figura na liderança entre os países que mais consomem pornografia trans. Segundo BENEVIDES (2020, p.1) “Anualmente, os maiores sites pornôs do mundo publicam um relatório com as categorias mais acessadas pelos seus usuários, […] O Brasil, que nunca fica de fora dessa lista, demonstrou mais uma vez em 2019 o paradoxo de viver entre o desejo e o ódio em relação às travestis e transexuais”. (Grifo nosso).

Esta dualidade do Brasil, de ser o país que mais mata e ao mesmo tempo mais deseja voluptuosamente os corpos de mulheres travestis e transexuais é o resultado de uma equação que estampa como os padrões cisheteronormativos definem a maneira como devem ser tratados os corpos, afetos e relações destas mulheres, paralelamente definindo também a maneira como a sociedade nos enxerga, chegando a alcançar inclusive as noções de diversidade sobre a comunidade trans, que incidem diretamente no momento de decidir “em que mão segurar”. Este padrão, imposto pelo sistema sobre todos os corpos que transitam nele, alcança as mulheres travestis e transexuais de várias formas e em diversos espaços, a começar pela tentativa de se definir um conceito físico e uma ‘função’ para estas mulheres. Isso tem fundamentos históricos.

Estruturas sociais como o Direito e a Religião (na maioria dos casos Cristãs), sempre negaram a existência e o reconhecimento dos corpos e vidas trans em seus escritos e ações. Essa negação parte da legitimação do homem cis e da mulher cis como seres sagrados, cujas uniões abençoadas pelo matrimônio são a base da manutenção da vida, devido os seus propósitos reprodutivos, assim como representa a união de famílias para acumular patrimônio. A partir desta premissa, tanto o Direito, quanto a Igreja, empenharam esforços para a proteção deste modelo de união, corpos e finalidades, invisibilizando e demonizando as pessoas transexuais. O Direito se incumbiu de negligenciar qualquer possibilidade de reconhecimento de garantias a esta população durante séculos, ao passo que a Religião dominou o imaginário popular, demonizando estes corpos, associando nossas vidas ao pecado, a luxúria da carne, ao profano, ao proibido e finalmente, à condenação eterna. Essa aliança entre Direito e Religião, contribuíram fortemente para o tratamento social de travestis e transexuais como temos, hoje e que se expressa nos dados trazidos acima.

Não servindo para a “reprodução” ou para o “matrimônio”, nos moldes do Direito e da Religião, as mulheres travestis e transexuais foram historicamente marginalizadas e clandestinizadas. Qualquer tipo de relação, afeto ou atração por estes corpos devem ser socialmente desencorajados e estigmatizados. Essas estruturas contribuíram fortemente para o desenvolvimento de uma sociedade que tem aversão a transexuais; que devido ao ‘pecado’ e ao ‘profano’ a que foram associadas as mulheres trans, seus corpos só serviriam para satisfazer o prazer sexual e fetiches promíscuos do machismo hipócrita, às escondidas e preferencialmente à noite, no silêncio da madrugada ou na escuridão entre as quatro paredes de um motel. Já às mulheres cis foi reservada a ‘pureza’ do casamento, as relações socialmente abertas e diurnas, resguardadas pelas bênçãos de deus sob o lar sagrado. 

Assim, nesta sociedade machocêntrica, se um homem, hetéro e cisgênero sentir algum tipo de afeto ou atração por uma mulher transexual ou travesti, cabe a ele esconder e reprimir esses desejos, pois não pode arriscar sua reputação de ‘macho’ ou ser condenado ao inferno. Isso os faz recorrer ao consumo excessivo de pornografia trans (2), ou procurar alguma relação clandestina, geralmente puramente sexual para eles, nos usando como verdadeiras máquinas sexuais, realizadoras de fetiches ‘extremos, que não podem ser feitos dentro de seu imaculado casamento’, ou no pior dos casos nos matam, para eliminar de vez aquele ‘objeto demoníaco’ de desejo, apagar os rastros de uma vida dupla ou simplesmente pelo ódio e medo, as vezes de nós e as vezes deles mesmos, por sentirem o que sentem.

 

  1. ENXERGANDO A DIVERSIDADE TRANS E TRAVESTI ALÉM DO IMAGINÁRIO CIS-HETERO-NORMATIVO

Por vivermos em uma sociedade que valoriza determinados padrões de estética, a hipersexualização de mulheres travestis e transexuais, reflete diretamente na percepção que as pessoas têm sobre nossos corpos. Não é raro sermos interpeladas por curiosos, no mínimo desatentos, acerca de nosso corpo e nossa transição. Nos questionam se ‘somos operadas’, ‘quando vamos colocar silicone’, ‘se vamos deixar o cabelo crescer’, ‘se usamos aplique’, ‘unhas postiças’, ‘se somos versadas em maquiagem’, entre tantas outras colocações, determinadas pelos padrões cisheteronormativos. Colocações como estas revelam a maneira como fomos estereotipadas e rotuladas, e é para reflexão sobre estes estereótipos que chamamos a atenção. 

 

Quando a travesti encena a feminilidade através dos hormônios, silicones, cabelos, maquiagens, vestidos, demonstra o quão artificial é o processo de fabricação do gênero. A travesti não é uma imitação da mulher; na verdade, ela é a prova de que as próprias técnicas de feminilização utilizadas pelas mulheres são tão artificiais quanto aquelas empregadas pelas mesmas. (CRUZ & SOUSA, 2014, p.214).

Quando as pessoas (que não reflexionam devidamente) ouvem as palavras ‘mulher travesti’ ou ‘transexual’ logo imaginam um corpo com próteses de silicone, curvas definidas e pronto para o sexo sem fronteiras morais. O território a ser ocupado por estas mulheres também é ditado pelo imaginário, que as enquadra em grandes centros, zonas urbanas e cosmopolitas, quase sempre vinculadas ao asfalto noturno e luzes da ‘cidade grande’.

Percebam que, em um primeiro momento, as pessoas não conseguem, sem o devido exercício reflexivo, visualizar outras realidades e contextos em que vivem mulheres travestis e transexuais. Nesta linha imaginativa imposta pelos (des) valores cisheteronormativos, realidades como das travestis e transexuais agricultoras, pretas, gordas, indígenas, ribeirinhas, pescadoras, quilombolas, deficientes físicas, idosas, entre muitas outras, são invisibilizadas e oprimidas de formas que se traduzem em números. 

Outro mito derramado sobre as vivências transexuais, é o de que em dado momento, nós que nascemos no interior, só poderemos ter mais liberdade para nos expressarmos, se formos para as grandes zonas urbanas e centros cosmopolitas, onde as pessoas têm “uma mente mais aberta” e serão mais “acolhedoras” com nossa condição de gênero, fazendo com que a sociedade rapidamente assimile mulheres trans às grandes cidades e centros urbanos, impossibilitando mais uma vez as percepções, a priori, de outras realidades. 

 

Fazer a crítica à centralidade e superioridade das perspectivas cisgêneras e às múltiplas ausências de pessoas transgêneras e não-cisgêneras tem, assim, o objetivo de provocar um reexame dos caminhos analíticos utilizados para se pensar as transgeneridades e não-cisgeneridades e, como consequência, uma mudança significativa nas perspectivas em relação a estas individualidades. Espera-se, ainda, que esta mudança seja concomitante a um processo de tomada de consciência crítica e à ampliação da presença de pessoas transgêneras e não-cisgêneras em esferas de decisão. Este processo e ampliação engendrariam uma dinâmica cujo potencial é o de desfazer as consequências da colonização cisgênera sobre as subjetividades inferiorizadas e estigmatizadas das pessoas transgêneras e não-cisgêneras. (SIMAWAKA, 2011, p.12).

Existem mulheres travestis e transexuais que, por mais opressivo que seja o ambiente interiorano ou rural no qual nasceram, podem passar a vida inteira sem nunca cogitar a hipótese de sair definitivamente do seu território. Por mais que sejam fortes as opressões e violências, decidem se fortalecere ali, nos seus espaços originais, e quando ativistas, defendem as pautas e necessidades locais, independentemente de serem pautas puramente feministas ou LGBTQI+. 

A título de exemplo, na Cidade de Altamira, localizada a sudoeste do estado, mulheres travestis e transexuais empenham suas forças na luta contra modelos predatórios de desenvolvimento, como hidrelétricas, mineradoras, madeireiras, garimpos ilegais, monoculturas e diversas outras lutas regionais. Estas mulheres são plenamente capazes de debater e discutir outros temas fora do eixo HIV x Transfobia x Nome social.

Necessário salientar que estas nuances e dificuldades de visualizar outras realidades também têm seus reflexos dentro das comunidades de mulheres travestis e transexuais, uma vez que também fazemos parte desta estrutura social e seria leviano falar como se fossemos alheias aos seus efeitos em nossos conceitos. 

Durante nosso amadurecimento e transição, passamos muito tempo acreditando que, para sermos uma mulheres completas, precisamos do silicone, dos hormônios, da voz aguda, da ausência de pelos no rosto (ou em lugar nenhum), nos submetendo a cirurgia mudança de genitália e tantas outras mudanças que o imaginário cisheteronormativo estampa como obrigatórias. Percebam que esta não é uma crítica às mulheres trans e travestis que resolvem modificar seus corpos. A crítica se faz aos motivos que nos levam a estas radicais intervenções em nós mesmas. Se tivermos que idealizar alguma modificação, qualquer que seja ou em qualquer esfera de nossas vidas, que seja POR NÓS, PELO AUTOAMOR e não pela pressão desta sociedade doente.

 Mesmo alertas, passamos muito tempo acreditando, até mesmo quando passamos a fazer parte da luta antitransfóbica, que esses padrões físicos são necessários para nos legitimar enquanto mulheres diante da sociedade e muitas vezes até mesmo dentro de movimentos sociais que leem nossa feminilidade sob as lentes dos conceitos cisheteronormativos, e relutam em respeitar voluntariamente nossa condição de gênero, caso não enxerguem um farto par de próteses de silicone ou se perceberem alguma protuberância entre nossas pernas por meio de uma verificação injustificável, invasiva e patológica. 

Tudo isso faz com que, na maioria das vezes, tenhamos que passar por duas espécies de desconstrução até conseguirmos nos libertar destas definições de mulher trazidas pelo machismo cisheteronormativo: a desconstrução íntima e a desconstrução social. 

A desconstrução íntima se inicia primeiramente e silenciosamente dentro de nós, geralmente na casa dos pais, parentes, amigos ou onde quer que vivamos e vai sendo posta para fora de acordo com a realidade e no contexto de cada uma de nós. Vamos percebendo o mundo a nossa volta e consequentemente absorvendo os conceitos que o permeiam, e um destes conceitos rapidamente absorvido é a definição do que é ser uma mulher para esta sociedade. As referências primárias são as mulheres cisgêneras de nossa própria família ou círculos íntimos, que muitas vezes também já estão contaminadas com o conceito cishegemônico sobre a mulher e replicam a transfobia sem perceberem, seja assistindo um programa de TV onde aparecem pessoas transgêneras ou fazendo uma piada de “veado que quer ser mulher”, transmitindo para nós desta forma, o conceito deturpado e colonial do ser mulher.

[…] defender a descolonização das identidades transgêneras significa, […] refletir sobre as circunstâncias históricas em que estas demandas são efetuadas. Se é verdade que as individualidades transgêneras e não-cisgêneras têm sido capazes de expressar suas perspectivas politicamente e até mesmo conquistar alguns direitos na contemporaneidade, também é evidente que estas possibilidades são severamente limitadas pela ausência praticamente absoluta delas em posições decisórias, sejam elas em instituições médicas, jurídicas, ou acadêmicas. (SIMAKAWA, 2011, p.2).

    Assim, mesmo quando chegamos àquele ponto da desconstrução íntima onde, rompemos com os valores superficiais do machismo fundamentalista e nos afirmamos enquanto mulheres, ainda estamos involuntariamente impregnadas dos conceitos cisheteronormativos acerca do que é ser mulher. Mesmo se afirmando como tal, ainda estamos enraizadas em conceitos deturpados e fetichistas deste modelo de feminilidade, que nos faz perder certo tempo em meio a uma ‘montanha russa’ de frustrações por não ter ainda o ‘peito’, ‘a bunda’, ‘as pernas’, a ‘vagina’ ou qualquer outro elemento utilizado pela sociedade como medidor de transexualidade ou travestilidade. E é com essa bagagem, de autoafirmação e ao mesmo tempo limitada, resultado da desconstrução íntima, que muitas vezes chegamos nos espaços de acolhimento dos movimentos sociais, sejam eles feministas, LGBTQI+ ou de qualquer outro segmento. A partir deste entendimento, percebemos a importância de os movimentos que se propõem a acolher as demandas das mulheres transgêneras se manterem alertas para não reproduzirem essas formas de opressão sobre as mulheres transexuais e travestis, possibilitando um espaço saudável para o próximo passo, que é a desconstrução social, ou como chamei pela primeira vez em Live com Guilherme Gobato: ‘desconstrução da desconstrução’.
    
A desconstrução social é a que passamos a implementar em nossas vidas para desmontar os conceitos de feminilidade machistas que nos foram impostos na desconstrução primária, que faz com que, mesmo já nos afirmando enquanto mulheres que somos, fiquemos presas nos modelos coloniais de gênero. Assim a desconstrução social é a segunda pela qual passamos, para podermos vislumbrar a totalidade da maravilha que é nossa existência e de nossos corpos, do jeito que são, sejam travestis gordas, com marca de barba, sem próteses de silicone, sem cirurgia de redesignação de gênero, peludas, sem saber andar salto alto, sem maquiagem, plásticas ou qualquer outro elemento, imposto como obrigatório por este sistema centrado nas vontades e desejos dos machoscis. 

 Esta desconstrução social também é importantíssima, quando se trata de ocupação de espaços de poder e decisão por mulheres transgêneras, pois a partir da consciência sobre quem realmente somos, percebemos que os espaços “reservados” para nós por essa sociedade cis-hetéro-normativa não são os únicos que podem nos receber. 

    Percebemos que não estamos limitadas a prostituição, aos salões de beleza ou estúdios de maquiagens. Começamos a nos perceber em qualquer espaço e fazendo profissionalmente o que quisermos. Logo vemos que podemos ser professoras, médicas, advogadas, engenheiras, astrofísicas, matemáticas, bancárias, defensoras, servidoras públicas, ativistas e até escritoras! Podemos ser tudo, o mundo também é nosso em toda a sua pluralidade e possibilidades. 

    E é a partir da desconstrução social, que começamos a perceber nossa verdadeira essência e por isso deve ser incentivada e operacionalizada dentro dos movimentos onde mulheres transgêneras transitam, caso contrário este corpo trans só estará ali para cumprir tarefas invisibilizadoras e exaustivas, e para ser o “politicamente correto” daquele espaço, servindo para acalentar a consciência da coordenação de qualquer movimento que está comprometido em NÃO FAZER NADA pela vida e direitos das mulheres travestis e transexuais.    

 

  1. SORORIDADE NAS VIDAS DAS MULHERES TRANSGÊNERAS E A NECESSIDADE DA LUTA COLETIVA PARA ESTAS VIDAS

De acordo com Marasciulo (2020), a palavra ‘sororidade’ é definida da seguinte forma: “do latim soror, que significa irmã, a palavra sororidade tem sido mais usada por seus contornos feministas e significa a união entre as mulheres. Mas o conceito vai além, e sustenta que sororidade trata de empatia e solidariedade real feminina. Isso inclui deixar de incitar a rivalidade entre o gênero”. (MARASCIULO, 2020, p.1). 

Partindo deste conceito trazido pela autora, levanta-se a seguinte questão às mulheres cisgêneras: ‘sua sororidade também alcança mulheres transgêneras’? Essa pergunta é necessária, pois nós, mulheres transexuais e travestis, estamos há algum tempo ouvindo e vendo, que este tema tem sido recorrente nas rodas de formação, autocuidado e bem-viver de movimentos feministas, e temos sentindo pouco, ou quase nada, este conceito se praticar em nossas vidas transgêneras. O conceito de sororidade, parte do pressuposto de que mulheres podem (e devem) andar de mãos dadas, se cuidado, se amando, compartilhando afetos, cuidados e estratégias de defesa coletiva, rompendo com o condicionamento imposto pela estrutura cis-hetéro-normativa e não mais se enxergando como rivais ou competidoras. 

O conceito de sororidade, porém, está longe de ser cunhado ou praticado, de fato, para com a vida das mulheres trans. Ainda somos enxergadas por esta sociedade como violentas, ladras, imorais, pedófilas, doentes, assassinas e toda a sorte de conceitos negativos que podem nos empregar. Enxergamos todos os dias nos olhos de muitos, a lâmina do ódio pronta para nos ceifar a vida no primeiro momento de descuido. Percebemos como somos colocadas, de todas as formas, no papel de inimigas. Inimigas da moralidade, do respeito, das mulheres cis, do afeto e até mesmo de deus. 

Todo este arcabouço de conceitos está em nosso cotidiano e se materializa de muitas formas, impedindo que a sororidade nos alcance de fato. Quando não somos contratadas para vagas de emprego, quando geramos desconforto ao entrar no banheiro feminino, quando somos despidas nas saídas de lojas, quando somos vistas como incapazes de cuidar (de uma criança, de um/a idosa/o ou de um lar), ali estão os conceitos revertidos em transfobia e exclusão de espaços, muitas vezes protagonizadas por mulheres cisgêneras. Onde está a sororidade? Qual sentido do feminismo se não for diverso? 

Neste sentido, não vemos possibilidades reais de se praticar a sororidade de forma ampla e completa caso não se inclua as mulheres transexuais e travestis no rol de beneficiárias deste amparo mútuo. Não há como enxergar o movimento feminista como plenamente sororidático (3) se dentro deste movimento não há a presença ativa de mulheres transgêneras. Isso porque acreditamos fortemente, que não há interseccionalidade completa sem nossas presenças, assim como é nosso direito também lutarmos aquilombadas, juntas, unidas e protegidas, pois na condição de mulheres, muitas de nossas dores e opressões se cruzam, sendo necessária e vital para mulheres transgêneras a atuação e luta coletiva, e esta necessidade está ligada diretamente a nossas possiblidades de conquistarmos direitos.  “A construção da categoria das mulheres e a noção estável de gênero não servem mais para a premissa básica da política feminista” (BUTLER apud ALVES, 2017, p.2).

Quando analisamos a legislação brasileira, por exemplo, percebemos evidentemente a omissão do Estado em reconhecer a existência das mulheres transgêneras. Não estamos amparadas expressamente pela legislação ordinária, sendo tratadas apenas como mulheres portadoras de direitos, em julgados e portarias, conquistados literalmente ao custo de muito sangue, suor e solidão, pois diferente das mulheres cisgêneras, nós pessoas transgêneras nem sequer existimos ao rigor da lei e desse sistema que nos permeia, o que corrobora a necessidade de aliança e sororidade entras mulheres cis e trans, pois quando se trata da conquista de direitos, a presença transexual pode não fazer muita diferença para as mulheres cisgêneras que já estão expressamente reconhecidas pela legislação, enquanto para nós, mulheres transexuais, a união com mulheres e movimentos cisfeministas é decisiva para que alcancemos a visibilidade e conquista de nossos direitos. Foram anos aguardando o Supremo Tribunal Federal definir julgado acerca do reconhecimento do crime de homotransfobia, ou o Conselho Nacional de Justiça regulamentar por meio de portaria a retificação dos registros civis, lutas que, quiçá, poderiam ter sido mais breves se fortalecidas pelas companheiras cisgeneras.

[E]n estas periferias del mundo (y desde mi perspectiva como transexual tercermundista, mestiza, proletaria), las transexuales y travestis no contamos con otras armas distintas [al diagnóstico] para exigir nuestros derechos, no contamos con leyes o normatividades que garanticen nuestros derechos de la salud, bienestar y ciudadanía, que garanticen nuestro acceso a servicios[…]. (MISSÉ & COLL, 2010, p. 272).

A necessidade de praticar esta sororidade e o fato de as metodologias sororidáticas florescerem principalmente a partir dos movimentos sociais, percebemos a importância estratégica destes espaços para a manutenção da vida e direitos das mulheres transgêneras. Se queremos falar e defender protagonismo e ocupação de espaço de poder por mulheres, devemos necessariamente visualizar as mulheres transexuais e travestis nestes contextos, pensando métodos de conquista que levem em consideração a construção social destas, iniciando esta abertura de espaço dentro dos próprios movimentos, a partir de um processo de escuta ativa às mulheres transgêneras e nossas pautas, encaminhando ações que intervenham diretamente na opressão e violência que recaem sobre nossas vidas, como se suas fossem, porque em realidade são, partindo do princípio que somos todas mulheres, afetadas de maneiras e intensidades diversas, mas antes de tudo mulheres!

Há muito tempo, nós mulheres transgêneras, sentamos incansavelmente nas fileiras e rodas de formação feministas idealizadas, construídas e protagonizadas por mulheres cisgêneras. Não recusamos convites, não medimos distância e nem esforços, mesmo quando nos convidam para apenas falarem sobre nós como se fossemos um espécime à mostra, ou para levantar uma placa feminista em meio a uma manifestação em sol escaldante, intitulando isso de debate de inclusão e diversificação.

Praticando a sororidade de fato, as mulheres cis, precisam ouvir as mulheres trans, sendo este um dos possíveis pontos de partida para a construção de um movimento feminista sororidático e diverso, caso contrário, nós transgêneras estamos fadadas a continuar fazendo passagens rápidas por estes espaços, e em seguida partindo para uma luta ‘transfeminista independente’, demasiadamente árdua e/ou solitária e, quando muito, lembradas apenas no mês do orgulho LGBTQI+ ou quando utilizam as notícias cotidianas de assassinatos de mulheres transgêneras para cumprirem o fetiche de compartilharem a informação em suas redes e grupos sociais e NÃO FAZER NADA segundos depois, como se o repasse da informação pura e simplesmente fosse adiantar alguma coisa, se não para acalentar a consciência e massagear o ego de quem o faz. ISSO NÃO É SORORIDADE! Me remetendo a um post realizado recentemente por minha companheira nordestina Ana Flor, onde ela falaàs pessoas cisgêneras para que se rebelem diante da transfobia e crimes de ódio contra a população trans, uma vez que este conceito foi cunhado pela própria hegemonia cisnormativa, devendo sua desconstrução ser robustamente fortalecida por este grupo hegemônico, e uma boa maneira de começar é praticando a sororidade de fato para com as mulheres travestis e transexuais. 

Esta necessidade latente de aliança das mulheres cisgêneras às lutas das mulheres transgêneras, se faz muito mais importante ainda quando avaliamos determinados aspectos. Quando mulheres cis enfrentam a violência contra a mulher e o feminicídio, não se pode perder de vista que esta violência e morte também engloba as mulheres trans, principalmente no Brasil, país que mais assassina pessoas transgêneras, em especial negras. Apesar disso seguimos invisíveis nos números de feminicídio e nas ações de enfrentamento a violência contra a mulher. E está invisibilização é fortalecida por omissão, quando por exemplo, mulheres cis fazem palestras, oficinas e discursos contra a morte e violência contra mulheres e não apontam EXPLICITAMENTE como essa pauta atinge as mulheres trans. Para quem está ouvindo, se não for falado expressamente sobre a realidades das mulheres trans, dificilmente a plateia irá pensar nestas mulheres no canário apresentado.

Faz-se necessário que mulheres e movimentos feministas, realizem o recorte expresso de suas pautas em relação a vida das mulheres trans, para que seus discursos não alimentem a invisibilidade que já é expressa em números e políticas de morte que recaem sobre a comunidade transgênera. Além de realizar o devido recorte é necessário abrir os espaços para que as pessoas transgêneras falem, se expressem, apresentem argumentos e disputem narrativas. TODAS as rodas de conversa e troca de saberes entre mulheres devem, em nome da sororidade, OBRIGATORIAMENTE ter a presença de mulheres transgêneras. Caso contrário, não nos representam, jogando por terra o conceito de representatividade tão defendido por todas em diversas esferas da existência cotidiana.

 

  1. LUTA ANTIRRACISTA E A VIDA DAS MULHERES TRANS E TRAVESTIS

O Brasil, como é cediço, é o país que mais mata pessoas transgêneras. Dentre esses números, é necessário destacar que o maior quantitativo está entre a população de mulheres travestis e transexuais negras, nos fazendo reflexionar onde se localizam as pautas de mulheres negras transgêneras dentro da luta antirracista, dada sua notável importância na mudança deste cenário de mortes naturalizadas de pessoas negras, travestis e transexuais.

Desde a morte de George Floyd nos Estados Unidos da América em 25 de maio de 2020, o movimento internacional denominado ‘Vidas Negras Importam’ voltou a tomar conta do mundo. Em todos os cantos e meios de comunicação vimos vozes gritarem repetidamente a emblemática frase, seguramente sem antes refletir sobre quais vidas negras importam. Aos nossos ouvidos, de mulheres travestis e transexuais pretas, a frase nunca fez sentido completamente.

Quantas travestis pretas foram mortas depois de George Floyd e nem mesmo um suspiro de lamento foi solto? E neste ponto, creio que as lutas de mulheres cis e trans convergem. Igualmente, quantas mulheres negras cis foram assassinadas depois do estadunidense negro e nenhum som se ouviu?
Isso nos remete a reflexão de que se faz necessário desdobrarmos e destrincharmos dentro de nossos movimentos negros as afirmações trazidas pelas manifestações Vidas Negras Importam. Precisamos mapear e enxergar essas vidas negras em toda sua pluralidade e diversidade, caminhando sem invizibilizar nenhuma destas vidas e isso é urgente. 

O Movimento que cresceu após a morte de Floyd, foi rapida e paradoxalmente apropriado pela mídia hegemonicamente branca e racista, apenas por ser notícia e ‘dar audiência’. Não podemos perder de vista que por mais importante que sejam as manifestações, o debate precisa entrar nos movimentos negros de fato, pois para nós este debate realmente importa e é uma questão de sobrevivência. Já para a mídia é como dizia Cazuza: ‘-Jornal de ontem, notícia de anteontem’, para eles a “moda” vai passar, mas em nossas vidas negras o sentido de tudo isso deve permanecer e nos impulsionar para frente, fortalecendo a unidade do movimento negro, em todos os seus seguimentos, inclusive de mulheres, cis e trans, que figuram entre os maiores números de assassinatos de pessoas negras neste país, e por isso refletir negritude e cruzar este com o debate amplo de gênero é essencial para compreendermos a dimensão de como as pressões e opressões se dão em cada um de nossos segmentos, assim como iluminará o caminho para pensarmos estratégias coletivas de fortalecimento a partir do discurso e visibilidade mundial inerentes ao Black Lives Matter. 

5- COVID-19 COMO OPORTUNIDADE DE FORTALECER A LUTA DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

A pandemia do COVID-19 veio e fragilizou muitos setores da sociedade. As mulheres negras, cis e trans, as mais atingidas pela precariedade social, sanitária, política e econômica tiveram suas vidas ‘viradas de ponta a cabeça’. Sabemos que a pandemia não inventou a vulnerabilidade nas vidas das mulheres negras, sejam elas cisgêneras ou transgêneras, porém quando observamos o panorama geral das vidas das mulheres trans no Brasil, percebemos como estas vulnerabilidades se aprofundam.

90% (noventa por cento) das mulheres transexuais e travestis ainda tem como principal empreendimento e fonte de renda a prostituição nas ruas, sem garantias ou segurança, e a estas mulheres não foi concedido o direito de se isolarem. Outras tantas estão desalentadas, sem moradia, sozinhas e não podendo contar nem com a ajuda de seu núcleo familiar, antes ou depois da crise. Estes contextos, como ditos, não foram criados pela COVID-19, foram apenas desnudados e deixados mais evidentes.

A pandemia nos mostrou como, historicamente, pensamos pouco na realidade das mulheres transgêneras e como nossas campanhas de solidariedade e bem-viver não foram construídas de maneira sororidática, sensível a realidade destas mulheres. Porém, percebemos como cresceram as correntes de ajuda e apoio à estas pessoas, mesmo que de maneira tímida, mas foi um crescimento, e isso deve ser continuado, fortalecido e ampliado a partir das oportunidades que a crise traz. 

Muitos fundos filantrópicos se voltaram a patrocinar ações e projetos de ajuda emergencial, a curto, médio e longo prazos, voltadas para a reestruturação de movimentos, fortalecimento de capacidades institucionais e para suprir necessidades básicas de alimentação e higiene. A partir destas oportunidades, movimentos cisfeministas tem a possibilidade de incluírem cada vez mais mulheres transexuais e travestis no processo de elaboração destes projetos, assim como beneficiárias das ações, (re) aproximando de maneira objetiva estas mulheres a luta por direitos de forma aquilombada.

As necessidades trazidas pela COVID-19, forçaram mulheres transgêneras a criar novos métodos e maneiras de sobreviver neste cenário. Para nós, mulheres travestis e transexuais, CRIAR método de sobrevivência está na gênese de quem nós somos. A partir do momento que nos entendemos e nos afirmamos enquanto mulheres portadoras de direitos, sentimos de maneira cruel como não há espaços nesta sociedade para nós, e com isso tudo passa a ser enfrentamento e disputa por espaços. Esta luta acontecendo em um terreno onde não nos cabe, nos obriga, a partir daí, a CRIAR maneiras de sobrevivermos e avançarmos nestes cenários. Neste sentido, nós mulheres travestis e transexuais, possuímos um repleto conjunto de metodologias sororidáticas que podem ser prontamente partilhados para o fortalecimento coletivo de todas as mulheres, cis ou trans, sendo que para isso, reitero que precisamos ser ouvidas e envolvidas de fato nos projetos, campanhas e pensamentos estratégicos da luta feminista, uma vez que, ao nosso pensar, nunca será um feminismo completo sem a garantia do espaço de luta das mulheres transgêneras em TODAS as frentes que venham a ser levantadas, sem exceção. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
    Conforme abordado, e pelos argumentos verificados, percebemos o quanto é necessária e emergente a união de mulheres cis e trans por meio da sororidade. Vislumbramos como não faz muito sentido pensar um movimento feminista que não inclua mulheres transgêneras e toda sua diversidade de pensamento, de métodos e de corpos, nos deixando a mercê de um transfeminismo incerto, nos forçando a lutarmos sozinhas, o que não faz mais sentindo ainda quando nos enxergamos enquanto mulheres que somos, e sendo mulheres onde está nosso lugar no feminismo? 

    Não podemos permitir ou naturalizar o imaginário da necessidade de enfrentamento desgastante para que pautas trans e cis caminhem paralelamente. Se praticarmos a sororidade de fato, iremos encontrar caminhos conjuntos para caminhar e nos fortalecer mutuamente e equanimemente, resultando em um movimento feminista mais robusto e forte, não permitindo realmente que ‘ninguém solte a mão de ninguém’. 

    Para tanto, experiências têm demonstrado que o princípio desta sororidade se dá a partir do momento que mulheres cisgêneras se rebelarem abertamente contra a transfobia e movimentos feministas passarem a abrir espaço para o debate da pauta transgênera de forma a ampliar a visibilidade e protagonismo destas mulheres. Precisamos ser inclusas EXPRESSAMENTE em campanhas e mobilizações do 8 de março, 25 de julho e tantas outras datas atribuídas implicitamente (e até explicitamente) às mulheres cisgêneras, devendo, portanto, estas mulheres cis serem as primeiras a se rebelar contra a comemoração colonial destas datas significativas para todas nós. Que a sororidade possa ser praticada de modo a possibilitar o afeto e o bem-viver entre mulheres cis e trans, às aproximando de fato, em luta e em amor, e que não esqueçamos que tudo começa com o processo de escuta de qualidade. O feminismo precisa ouvir as mulheres trans, precisa se permitir aprender com estas mulheres e perceber de forma consciente onde estão as pautas das mulheres transgêneras neste movimento.

É preciso reconhecer o quanto o feminismo ainda negligência a vida das mulheres transgêneras e não as agrega em sua amplitude, o que nos aproxima em pauta também das mulheres negras cis neste quesito, uma vez que em dado momento o feminismo seletivo também não agregou estas mulheres, que precisaram igualmente criar metodologias e maneiras de transitar nesta luta histórica e cotidiana, mesmo que estes métodos fossem arraigados em bases hegemonicamente cisgêneras. 

Assim, contemplar a existência das mulheres transexuais e travestis de maneira concreta nas pautas feministas, exige que repensemos as bases que fundamentam nosso feminismo e assumirmos, o que já se faz muito evidente, que não há possibilidade de continuar a luta feminista por muito tempo sem que lidemos com este tema de frente, utilizando métodos sororidáticos que permitam estender às mulheres transgêneras a proteção mútua, afeto e projetos de sobrevivência.

Sobre a autora: Mulher preta travesti, TransFeminista, antirracista e abolicionista penal. Bacharela em Direito (Instituto Tocantinense Presidente Antônio Carlos – Faculdade de Ciências Humanas, Econômicas e da Saúde de Araguaína – 2012). Co-fundadora e Coordenadora Executiva do Coletivo Amazônico LesBiTrans e Fundadora do ZarabatanaINFO – laboratório de cyberativismo construído por mulheres lésbicas, travestis e transexuais da Amazônia. Bolsista do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco (Fundo Baobá para Equidade Racial). AfroAssessora & AfroEmpreendedora em Projetos culturais e socioambientais. Especialista em Diálogos e Mediação de Conflitos (SILO ArtLatitude Rural). Ex-Relatora Nacional em Direitos Humanos DhESCA e membra do Grupo de trabalho interdisciplinar da Defensoria Pública do Estado do Pará no Enfrentamento ao Racismo Ambiental. Professora convidada da UERJ no Curso de especialização em Relações Étnicos-Raciais e Gênero: Ferramentas Teórico e Práticas em Perspectivas Emancipatórias e Teoria Crítica do Direito (2021).

Notas
1 –  Frase de Thereza Nardelli (2018). Descrição completa in: https://www.hypeness.com.br/2018/10/ninguem-solta-a-mao-de-ninguem-criadora-se-inspirou-na-mae-para-criar-frase/. Acesso em 04/08/2020.

2- Brasil lidera consumo de pornografia trans no mundo (e de assassinatos) – por Revista Híbrida: Anualmente, os maiores sites pornôs do mundo publicam um relatório com as categorias mais acessadas pelos seus usuários, detalhando palavras-chave, celebridades, fetiches e tendências mais buscadas em cada país do top 20. O Brasil, que nunca fica de fora dessa lista, demonstrou mais uma vez em 2019 o paradoxo de viver entre o desejo e o ódio em relação às travestis e transexuais. Disponível em: https://revistahibrida.com.br/2020/05/11/o-paradoxo-do-brasil-no-consumo-de-pornografia-e-assassinatos-trans/. Acesso em: 13/08/2020.

3- Neologismo: Que prática a sororidade de forma ampla e inclusiva utilizando em suas metodologias as práticas de sororidade.

REFERÊNCIAS

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