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13 de maio: o direito à memória é um direito humano

Comunidade negra e movimentos antirracistas reivindicam, há 20 anos, um Museu da Diáspora Africana na Paraíba.

Solange Banto Rocha

12 min

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De que serve a memória? Pois bem: a reminiscência pode favorecer o enfrentamento de debates seculares, como aqueles que envolvem os “silenciamentos” e os “esquecimentos” da memória, coletiva e individual, da população negra. O processo de construção da memória nos permite enfrentar um passado dolorido que envolveu, por quase quatro séculos, a escravização de africanos e africanas, de seus filhos e filhas, no território brasileiro. Nos permite, também, valorizar suas experiências históricas de resistência e o seu protagonismo social, no passado e no presente. A memória apresenta forte potencial para suscitar discussões, de imediato, sobre a questão racial brasileira de forma relacional, ou seja, abrangendo vários grupos sociais e raciais; temas da cultura da branquitude e do eurocentrismo. Há que se considerar ainda que a memorialização da gente negra, coletiva e individual, poderá intensificar a politização das pautas identitárias e de classe, expandindo, quiçá, as possibilidades para a (re)fundação do Brasil sob o fundamento, sobretudo, da equidade social.

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Este debate se faz necessário no país, posto que, apesar da presença física expressiva de pessoas negras, há uma negação secular de uma memória que, efetivamente, reconheça e valorize a história de pessoas negras. Há uma recusa em debater temas do passado, em falar da escravização de pessoas no contexto da Diáspora Atlântica; em reconhecer as desigualdades sociorraciais e de gênero e de outros problemas sociais. No Brasil, triunfa uma amnésia coletiva.

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Com a chegada do 13 de maio, quis escrever sobre a importância de um lugar de memória, em atenção aos debates atuais desenvolvidos pela Bamidelê – Organização de Mulheres Negras na Paraíba, acerca do lugar de memória da população negra na Paraíba. Contudo, faço isso ainda sob o pranto e a exasperação, após uma primeira semana de maio, em 2021, marcada pelo terror e por massacres no Brasil. Especificamente, a perda de cinco pessoas (duas mulheres e três crianças), em um ataque em uma Escola de Educação Infantil em Saudades, Santa Catarina. Ocorreu também, uma (possível) chacina na comunidade de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que resultou no assassinato de 24 homens, negros e pobres, em mais um capítulo macabro que atualiza um genocídio de séculos. Neste contexto, neste país que, desde sua formação, tem em sua estrutura os rastros das desigualdades, dos racismos, da cultura patriarcal e machista nas relações sociais, é que tive de fazer um esforço para expor uma das nossas lutas sociais aqui, na Paraíba, em busca do direito à memória, do empenho para conquistar Direitos Humanos, e também de visibilizar a nossa existência e a reexistência secular.

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Explicando melhor: desde os anos iniciais de 2000, os Movimentos Negros Paraibanos, entre eles a Bamidelê, formalizaram junto ao poder público várias reivindicações políticas. Entre elas, a construção de um “centro de memória”, para o desenvolvimento de ações concretas no enfrentamento do racismo estrutural e cotidiano, com políticas de educação antirracista e emancipatória. Esse centro seria um lugar de memória para apresentarmos outras narrativas (históricas, artes, sociológicas, antropológicas, biológicas, políticas, educacionais, literaturas, etc.) que mostram tanto as atrocidades do passado (como a escravização e a exploração de africanos, de africanas e de seus/suas descendentes durante quase quatro séculos), quanto o protagonismo de pessoas negras e de suas lutas, coletivas e individuais, em contextos adversos vincados, historicamente, por iniquidades sociais.

Uma outra meta, visada mediante um espaço de memória da diáspora africana na Paraíba, seria a de realização de debates, de atividades educativas e políticas, a de reunião saberes comunitários, assim como a de formação e afirmação de identidades, como a racial, a questão de classe e de gêneros em sua ampla complexidade, mas de forma que fosse baseada numa linguagem coloquial para favorecer trocas de ideias e partilha de saberes e de conhecimentos.

Em consonância com a Lei 10.639/2003 — que trata da educação das relações étnico-raciais,  e torna obrigatório o ensino de história da África e da cultura Afro-Brasileira na educação básica — esse espaço poderá ser utilizado no desenvolvimento de ações complementares da educação escolar para estudantes em diferentes níveis de formação e, sem dúvida, para a comunidade em geral e plural (gente negra e branca urbana e rural, população quilombola, povos indígenas e tradicionais, juventudes, e quem mais tiver interesse), para compartilhamento de saberes e de conhecimentos, visando ao fortalecimento de grupos subalternizados e à ampliação de parceiros na luta antirracista em defesa de uma sociedade com equidade, com respeito à diversidade e à pluralidade.

A Paraíba, um estado localizado no Nordeste do Brasil, é composta por um significativo percentual de pessoas pretas e pardas (negras, portanto), apresentando um contingente maior que a média nacional. Segundo o último Censo Nacional do Brasil, de 2010, pretos e pardos compunha 58,4% da população total do estado (52,7% de pardas/os e 5,7% de pretas/os). Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2016 (IBGE) informam que a população brasileira ultrapassa o total de 205 milhões de habitantes e é composta por uma maioria de pessoas pretas e pardas (54,9%). Em números absolutos, somos cerca de 112,7 milhões de pessoas negras.  Entretanto, na Paraíba, essa população continua invisibilizada, e não se tem um equipamento público, como Museu, para divulgar o patrimônio afro-paraibano – material/tangível e imaterial/intangível.

Como dito, persiste uma denegação de direitos e de reconhecimento social de mais da metade da população brasileira.

Em termos históricos, desde o processo da “modernidade” (séculos XV-XVI), com a intensificação da navegação no “Atlântico Negro”, predominaram, nas Américas, sociedades escravistas, hierarquizadas e patriarcais. Essa realidade exigiu das pessoas escravizadas a capacidade de se reinventarem social e culturalmente para sobreviver e viver durante a vigência do escravismo – dois terços da história brasileira, do século XVI ao final do XIX.  Mais recentemente, no Pós-Abolição, depois de 1888,  e ainda no século XXI, as ações sociopolíticas contra o racismo estrutural e outras injustiças sociais dão a tônica de nossas vidas. Essas experiências históricas têm sido pesquisadas nas universidades, e são muitas as publicações científicas que circulam, sobretudo, no mundo acadêmico. A sociedade precisa tomar conhecimento das narrativas que contam uma outra história da população negra, posto que poucas pessoas têm acesso a esses conhecimentos recentes. São conhecimento produzidos,  em geral, com recursos públicos e que, sem dúvida, merecem ser compartilhadas com um público mais amplo, com uso de novas linguagens, apoiando a escolarização de crianças, de jovens, de pessoas adultas e de idosas, de forma a avançarmos na democratização do conhecimento, colaborando na construção de identidades e no fortalecimento da luta de classes e de gênero, de modo a assegurar a cidadania republicana.

Acreditamos que a construção de um “lugar de memória” poderá ser um espaço possível para se construir um acervo diversificado para dinamizar a difusão de um conjunto de experiências da população de origem africana no Brasil, visando a mudanças nos imaginários sociais existentes sobre pessoas negras em diferentes contextos históricos, pois, de forma geral, predomina um desconhecimento sobre as variadas formas de resistência ao escravismo e sobre o protagonismo negro no Pós-Abolição e no Tempo Presente.

Ressalto ainda que, na atual conjuntura histórica brasileira,  enfrentamosa pandemia do novo coronavírus e, ao mesmo tempo, um movimento negacionista e anticientífico pelogoverno federal — que reforça o capitalismo neoliberal, a exclusão social, e que se utiliza das práticas políticas baseadas na necropolítica para “administrar” o país. Entretanto, apesar deste nefasto contexto que pode gerar momentos de certo esmorecimento, prevalece a certeza de que a resistência é inevitável, de que o esperançar (Bamidelê) está sempre se renovando, de modo que acreditamos na força das lutas coletivas e de nossa ancestralidade.

Essa utopia proporciona o nosso movimento social e coletivo. Assim, a Bamidelê tem efetivado debates públicos em defesa de um lugar de Memória para a População Negra na Paraíba. Em 2020, foi reiniciada a “disputa” por outras narrativas. E, em 2021, vigésimo ano de existência da Bamidelê, estamos realizando rodas de diálogo: “Conversas Negras: Lugar de Memória da População Negra na Paraíba”, com o propósito de reestabelecer a luta do Movimento Negro Paraibano do início do século XXI, com diálogos horizontais e, por fim, produzir uma proposta museológica a ser apresentada, de novo, ao poder público do estado onde o Sol nasce primeiro e é povoado por gente negra, mas que ainda não tem plenamente o direito à memória. Lutamos, portanto, por acesso a direitos básicos em razão da persistência de desigualdades sócio-históricas e, num cenário como este, compreendemos que um museu pode se configurar como espaço de educação antirracista e emancipatória baseada nos Direitos Humanos, de divulgação científica e de fortalecimento de ações de politização das relações sociais e raciais num país demarcado secularmente por inúmeras injustiças.

Saliento que sigo acreditando no(s) movimento(s) histórico(s), nas continuidades, nas mudanças e na força do povo por meio dos Movimentos Sociopolíticos Negros e Antirracistas. Para reforçar esta minha perspectiva, como um alento, em vários estados brasileiros, acontecerá o “13 de maio de Luta” – Nem bala, nem fome, nem Covid. O povo negro quer viver”, uma iniciativa de mobilização da Coalização Negra por Direitos que agrega mais de uma centena de organizações plurais e comprometidas com o fim de uma sociedade excludente e com a luta antirracista. Hamba! Axé!

Vamos seguindo na luta antirracista na Paraíba com rodas de diálogo, a saber: em março deste ano, realizamos a primeira Edição de Conversas Negras, contamos com a colaboração de Mônica Lima, professora de História da África na Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ e participante do dossiê entregue à Organização das Nações Unidas que reconheceu, em 2018, o Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade. Tivemos ainda a participação de Solange Banto Rocha (historiadora, Bamidelê-OMN/PB e NEABI/UFPB) e a mediação de Ariosvalber Oliveira (historiador, escritor e ativista social).

A segunda Edição de Conversas Negras ocorrerá em 12 de maio, em alusão ao 13 de maio: Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo. A roda de diálogo terá como convidadas: a Mestra Ana Rodrigues (geógrafa, líder comunitária quilombola, dinamizadora do Museu Quilombola Ipiranga/Paraíba) e Joana Flores (Museóloga, autora do livro “Mulheres Negras e Museus de Salvador” e doutoranda na Uneb/Bahia), com mediação de Solange Banto Rocha (historiadora, Bamidelê-OMN/PB e NEABI/UFPB).

A ação sociopolítica é uma realização da Bamidelê – Organização de Mulheres Negras na Paraíba, em parceria com o Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal da Paraíba/NEABI/UFPB e a Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba e com apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos e do Fundo Social Elas.

João Pessoa, 09-12 de maio de 2021, do extremo oriental das Américas e onde o sol nasce primeiro, no segundo ano da pandemia do novo coronavírus.

Foto de topo: em 2013, imagem a imagem de Iemanjá que fica em João Pessoa foi degolada e, posteriormente, teve os dedos decepados. A depredação da imagem, em um estado de maioria negra, representa uma manifestação de racismo religioso.  Passados sete anos, o símbolo religioso continua depredado. 

Solange Banto Rocha é historiadora e ativista Social. Professora na Universidade Federal da Paraíba, onde integra o Departamento e Programa de Pós-graduação em História, o NEABI: Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas/NEABI e o Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista. Atua como ativista, sobretudo, na Bamidelê: Organização de Mulheres Negras na Paraíba, da qual foi cofundadora em 2001. Tem publicado estudos sobre Diáspora Africana, História das Mulheres Negras, racismo(s) e lutas antirracistas no Brasil e patrimônio cultural afro-brasileiro.
Dentre suas obras destacam-se a sua tese de doutorado: Gente Negra na Paraíba Oitocentista: população, família e parentesco espiritual, vencedora do 1º Prêmio Anpuh-Brasil e editada pela Editora Unesp (2009) e o Ensaio “Antigas Personagens, Novas Histórias: memórias e histórias de Mulheres Escravizadas na Paraíba Oitocentista baseado em sua dissertação de Mestrado e agraciada com o 1º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, promovido pelo Governo Federal por meio da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e do CNPq (2006).

Mais recentemente, publicou na Revista Gênero (UFF), em coautoria, os artigos “As mulheres negras em movimento no Brasil: atuação política da Bamidelê – Organização de mulheres negras na Paraíba” (2016); e em 2020, “As artes e os ofícios de um letrado afro-diaspórico: Eliseu César (1871-1923)” na Revista AfroÁsia/UFBA e “Sociabilidades negras na Paraíba Escravista: sociedade, economia e resistências”, na Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as.

 

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