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Chris Rock e Jada Pinkett Smith: quando a piada perde a graça

O humor pode ser um instrumento de desumanização. Ao longo da história, foi usado para subjugar a população negra.

Maria Teresa Ferreira

5 min

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Cheikh Anta Diop, um historiador e antropólogo senegalês que estudou as origens da raça humana e a cultura africana pré-colonial, nos diz que, antes do oponente te matar fisicamente, ele te mata de forma moral e intelectual. Conta com sua insegurança a alienação para garantir seu sucesso.

Trago o mestre Diop para iniciar esse artigo porque foi isso que se viu no triste episódio do Oscar envolvendo Will Smith, sua esposa, a atriz  Jada Pinkett Smith e o apresentador e comediante Chris Rock. O mundo assistiu ao vivo, na entrega da premiação do Oscar 2022, no último domingo, um pocket show de constrangimentos causados pela alienação por parte de alguns sobre pontos e temas nevrálgicos presentes no cotidiano da sociedade, como o racismo e a violência de gênero.

É preciso aprofundar a discussão e para isso é preciso ir além do “ele bateu”. É necessário trazer luz à discussão que está  nas entrelinhas desse triste acontecimento. Discutir as reiteradas violências que o racismo nos impõe quando nos coloca no centro das atenções pelo viés do riso, e os danos causados pela exposição de uma mulher negra — que, na ocasião, foi tratada como um pedaço de carne exposto no mercado (como já cantava Elza Soares).

No livro Racismo Recreativo, o professor Adilson Moreira conta como a política cultural baseada no humor vem sendo instrumento para desumanizar pessoas negras no decorrer da história. Desde a fantasia de negra maluca no carnaval, passando pelo bêbado caricato e a lavadeira desbocada. O resultado é a  construção imagética de um povo sem eira nem beira que, por esse motivo, pode ser alvo de chacota.

O humor tem sido uma potente ferramenta para manter o povo preto nesse lugar de subjugação, dificultando suas chances de acesso a cargos de poder e decisão. Dificultando que essas pessoas sejam  vistas como opções de parcerias amorosas, que tenham  suas elaborações científicas e intelectuais respeitadas e, finalmente, que sejam respeitados pela sociedade, principal ingrediente para que todas as opções anteriores tenham validade.

Chris Rock é um ator e comediante conhecido por escrever e narrar o seriado Todo Mundo Odeia o Chris, baseado em sua vida. O seriado conta a trajetória de um adolescente que convive na escola e na vida social com violência física e psicológica: intimidação, humilhação, xingamentos e agressão física. Chris Rock, o seriado leva a crer, entende o lugar do jocoso como forma de se expressar e se comunicar com o mundo, e assim ser aceito por ele.

Rock entende o poder das piadas. Mas, no domingo, ao contar uma piada, Rock esvaziou Jada da sua humanidade. Reduziu sua vivência de atriz, produtora e empresária, de esposa e mãe, à sua condição de saúde. Qualquer semelhança com o  que vive o pobre Chris no seriado não é mera coincidência. É o que os psicanalistas chamam de projeção.  Rock decidiu assumir o papel de algoz.

O lugar ocupado por Will Smith na trama é o daquele que resolve momentaneamente a dor da ofensa e, depois, lida com as consequências das regras estruturadas por um sistema de essência colonial, burguesa e racista, que pune pessoas sem se aprofundar nos atravessamentos históricos e sociais que envolvem os indivíduos, principalmente os pretos. 

Will Smith está na iminência de ser expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que concede o Oscar;  Jada tem a árdua tarefa de se refazer da humilhação. Me pergunto: e os demais? A academia vai rever sua estrutura para impedir eventos como esse, além de privilegiar pessoas negras, nas suas premiações? Chris Rock irá reinventar sua forma de fazer rir, entendendo que as questões raciais , e também aquelas de foro íntimo, precisam ser respeitadas?

A pessoa que agride alguém precisa arcar com as consequências, certamente. Contudo, isso serve para  todos os envolvidos — Will Smith, Chris Rock e a Academia. A violência física expressa na agressão diz mais sobre se defender do que sobre agredir. Conta mais sobre as lutas internas e as dores silenciosas a que somos submetidos e nos submetemos para sobreviver, do que da carne trêmula após um tapa.

Outro fator a ser considerado é o fato de termos três personagens negros no centro da trama. Eles reforçam os estereótipos de que pessoas negras cultivam, mesmo que inconscientemente, hábitos violentos. Comentários do tipo “eles não se dão”, “eles brigam entre si” tomam conta das entrelinhas de uma imprensa sedenta por “pão, circo e bananas”.

E o cerne da questão vai sendo esvaziado. 

Discutir as questões raciais envolve saber o que nos diverte, e discutir o  quanto da exposição do outro nos toca a tal ponto que nos alegramos e acabamos por rir. As coisas que nos fazem rir nos dizem muito sobre o que entendemos por dignidade e respeito, e quem julgamos merecedores dessa dignidade e respeito. 

As questões raciais precisam ser tratadas e entendidas com seriedade, porque pessoas morrem por serem pretas e isso por si só, já faz piadas com pessoas negras perder a graça.

Uma contribuição de Imagem ilustrativa

Momunes

Sorocaba - SP

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