Relação entre religião e Estado é antiga no Brasil e precisa ser debatida
Presença de religiosos na política não ameaça a laicidade do Estado. Problema é usar espaços de poder para impor moral conservadora e suprimir direitos de minorias
Livia Reis
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O Brasil vive hoje um dos momentos mais delicados de sua breve trajetória como Estado Democrático no que diz respeito à defesa dos direitos políticos, sociais, culturais e ambientais assegurados na Constituição Federal. Tanto as ações governamentais quanto a conjuntura sociopolítica têm contribuído para a implementação de uma agenda autoritária e restritiva de direitos que afetam diretamente as minorias. Também é um fato que a participação de lideranças religiosas extremamente conservadoras teve especial contribuição no processo de supressão de direitos experimentado na sociedade brasileira recentemente, com especial destaque para o segmento cristão.
De fato, a presença das religiões e religiosidades nos órgãos estatais e na vida pública ganhou novos e variados contornos nos últimos anos. Com a mudança no campo religioso brasileiro e o crescimento da população que se declara como evangélica, assistimos também ao aumento da presença pública de atores religiosos evangélicos, sobretudo na política institucional. A partir dos anos 2000, por exemplo, foi consolidada a presença evangélica no Congresso Nacional com a criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Essa presença logo se ampliou com a eleição de lideranças deste segmento para cargos do Executivo em nível municipal e estadual, a ocupação de cargos administrativos em ministérios e secretarias e a intensificação do ativismo entre evangélicos, inclusive via Poder Judiciário.
Não por acaso, é muito comum vermos hoje uma associação direta entre religião, política e evangélicos, como se estes fossem o único segmento religioso a ocupar espaços institucionais, e, ainda, como se todos os evangélicos apoiassem pautas antidemocráticas. Não se pode negar, é claro, a influência de determinados grupos religiosos na política nacional, principalmente de grupos conservadores, muitos deles evangélicos. No entanto, essa influência apresenta camadas de complexidade e disputas que precisam ser consideradas quando falamos de religião e política no Brasil.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que a relação entre religião e política no Brasil está longe de ser uma novidade e muito menos de se resumir ao segmento evangélico. Pelo contrário. O Estado brasileiro declarou-se laico pela primeira vez em sua história há apenas 130 anos, por meio do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que instituiu a separação definitiva entre Estado e Igreja Católica Romana, separação reafirmada por nossa Constituição Federal de 1988 em seu art. 19. Antes disso, vale lembrar, houve um passado colonial de quase 400 anos de profunda relação entre catolicismo e Estado. Isso significa, portanto, que a presença católica na formação social brasileira teve reflexos incontornáveis na consolidação de moralidades públicas nas escolas, nas leis e na cultura, na composição dos símbolos nacionais e, é claro, nas ações de repressão do aparelho estatal.
Se, por um lado, a herança católica deixou marcas inegáveis na construção de uma identidade nacional no Brasil, por outro, devemos lembrar que a imagem dessa nação essencialmente católica foi construída sobre a negação e a repressão de outras religiosidades, principalmente dos cultos indígenas e afro-brasileiros, e que conflitos e perseguições religiosas são parte constitutiva de nosso processo histórico, não uma exceção.
Mas, afinal, se o Brasil é um Estado declaradamente laico, por que agentes religiosos exercem tanta influência na política brasileira?
Como disse em outro texto, de forma geral, podemos dizer que um Estado é laico quando há uma separação oficial entre Estado e religião. Isso significa que não existe uma religião oficial de Estado, que nenhuma religião pode ser beneficiada em detrimento de outras e que a interferência religiosa não é permitida em decisões estatais. Assim, ao invés de divulgar, perseguir ou hostilizar religiões, um Estado laico deve garantir que todas as religiões sejam valorizadas e tenham o direito de existir igualmente. Ao mesmo tempo, é importante reforçar a ideia de que a religião que as pessoas vivem não é restrita ao mundo privado, pois não está apenas nas casas ou templos: ela está também nas roupas, na música, na arquitetura, na arte, nos objetos, nas corporeidades, na comida, nos cheiros etc. Além disso, a privatização da religião não é o objetivo de um Estado que se define como laico. A laicidade, portanto, não é inimiga da religião, mas dá ferramentas e garantias para que os diferentes possam coexistir no mesmo lugar.
Dessa forma, não devemos desconsiderar que as diferentes religiosidades são parte fundamental da sociabilidade dos brasileiros, e consequentemente, de agentes políticos de orientações ideológicas e espectros políticos variados. Também devemos considerar essas nuances se pretendemos compreender efetivamente a importância da religião como capital político, cultural e social. Em outras palavras, isso significa considerar que moralidades religiosas são mobilizadas publicamente de formas diferentes, por atores políticos diferentes, em maior ou menor proporção. Estas diferentes formas de viver e experimentar a religião são identificadas também no contexto da política por candidatos/as em processos eleitorais para os Poderes Executivo e Legislativo, por políticos eleitos e também na atuação de agentes do Judiciário. A religiosidade que as pessoas vivem, portanto, também é um importante fator que orienta seus posicionamentos e ações, uns mais que outros. Embora não seja uma prática de todos, hoje muitos deles se reivindicam representantes de uma maioria cristã que está longe de ser homogênea e usam espaços institucionais de poder para impor políticas públicas e leis que têm como base moralidades e práticas cristãs de cunho conservador. E isso, sim, coloca em risco a laicidade do Estado e o respeito à diversidade.
Desde a sua formação, na década de 1970, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) tem se dedicado a analisar as conjunturas políticas à luz das manifestações religiosas, coadunando, assim, religião e política. Entendemos que o fortalecimento do campo democrático depende da produção de um debate mais qualificado sobre os diferentes grupos religiosos e sua interface com a política institucional. Não se trata, contudo, de minimizar a influência da religião ou negar as relações de poder que as atravessam, mas de um compromisso em promover esse debate de forma coerente e responsável. Com base nesse compromisso, é possível dizer que o que assistimos hoje no Brasil é uma recomposição de forças e de relações de poder muito singular, que envolve interesses econômicos, territoriais e políticos específicos e , atuando conjuntamente, têm implementado uma agenda autoritária e antidemocrática de poder.
É também com base nesse compromisso que defendemos a participação de religiosos na arena pública de debate. Não é isso que torna o Estado menos laico. Trata-se justamente do contrário, de chamar atenção para o fato de que o Brasil é um país plural, constituído por múltiplas vozes divergentes e que toda essa diversidade deve ser valorizada e garantida pelo Estado, inclusive nos espaços institucionais. Uma democracia que não respeita suas minorias, inclusive religiosas, é uma democracia em risco.
Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.
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