A tortura transfóbica nas prisões brasileiras
Há mais de 2 mil pessoas trans e travestis presas no Brasil. Sofrem com violência física e sexual, e com a falta de continuidade de tratamento hormonal
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No dia 29 de janeiro de 2004, mulheres transexuais, homens trans e travestis foram a Brasília lançar a campanha “Travesti e Respeito”, com o objetivo de visibilizar a luta diária promovida por milhares de pessoas trans contra o extermínio transfóbico no Brasil. O ato ficou marcado na história, razão pela qual janeiro é lembrado como o Mês da Visibilidade Trans, ou Janeiro Lilás.
A transfobia é uma violência recorrente no cenário nacional, estruturando a sociedade brasileira como um todo, desde o acesso aos direitos fundamentais até a truculência policial. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2021, ocorreram pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e 05 casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Em 2019, foram registrados 124 assassinatos, representando um aumento comparativo de 8,52%.
Segundo a Antra, em 2020, “mesmo com tanta invisibilização, a violência contra pessoas trans se fez ainda mais perceptível pela sociedade em geral, no mesmo momento em que discursos de ódio contra essas pessoas passou a também ocupar as redes sociais de forma mais incisiva, o ambiente político e o próprio estado através de mobilizações de grupos antitrans que de alguma forma se sentem ameaçados pelo avanço e conquista de direitos por parte da população de travestis e demais pessoas trans, organizando um levante contra a humanização dessas pessoas”.
Em muitos casos, essa violência é sustentada e catalisada pelo próprio discurso pseudo-religioso fundamentalista, que ignora o Evangelho de Jesus para atacar cada vez mais os direitos das pessoas trans. Em sua exortação apostólica Christus vivit, Papa Francisco reforça que “por esta e outras razões, a moral sexual é frequentemente causa de incompreensão e alheamento da Igreja, pois é sentida como um espaço de julgamento e condenação”.
Há, também, por trás dessa violência uma tentativa da elite cisheteronormativa de exercer controle social e de manter as pessoas trans excluídas dos espaços de poder, inibindo insurgências revolucionárias e emancipatórias. Por isso, a burguesia lança mão do extermínio miliciano e da face penal do Estado para agredir e torturar as pessoas trans.
Em 2020, os fragilizados dados do DEPEN revelaram que havia 10.161 pessoas LGBTIAP+ presas – entre elas, 1.027 travestis, 611 mulheres trans e 353 homens trans. A sobrevivência no cárcere para as pessoas trans é extremamente cruel e torturante. Para além das violências que já torturam estruturalmente a população prisional, as pessoas trans encarceradas são atravessadas pela tortura interseccional transfóbica, que agrava ainda mais as possibilidades de vida digna nesses espaços.
São múltiplos os relatos que recebemos sobre tortura sofrida pelas pessoas trans nas unidades prisionais brasileiras. Exemplifica esse arsenal de violências as agressões físicas e verbais, os abusos sexuais, a ausência de tratamento médico especializado – principalmente a falta de continuidade no tratamento hormonal, a falta de tratamento para infecções sexualmente transmissíveis, a falta de atenção médica para a mamoplastia e a vaginoplastia, todos garantidos pelo SUS no artigo 2º da Portaria nº 2.803 do Ministério da Saúde – dentre outros.
Há também ausência de respeito ao nome social, ausência de respeito à identidade corporal – corte de cabelo das mulheres trans; destruição de unhas pintadas; obrigatoriedade de uso de roupas lidas socialmente como masculinas ou femininas para mulheres trans, travestis e homens trans, respectivamente; dentre outras. Direitos básicos como a visita familiar e a visita íntima, por exemplo, são majoritariamente negados pelo Estado penal.
A transfobia presente no imaginário social alimenta e reforça o estigma de “bandida” ou “perigosa” de mulheres trans e travestis dentro do cárcere, fator que interfere diretamente no abandono e distanciamento familiar. Muitas vezes essa violência é sofrida no momento em que elas decidem anunciar para seus familiares sobre suas identidades de gênero.
E cumpre ressaltar que todas essas violências contrariam diversas leis e tratados internacionais. Em 2006, por exemplo, foi realizada uma conferência internacional na Indonésia, que produziu um documento para guiar os Estados na aplicação de legislações que protegem os direitos das pessoas trans. Os Princípios de Yogyakarta estabelecem que “toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa”.
No mesmo caminho, a Resolução nº 348/2020 do CNJ estabeleceu que é direito das pessoas trans a autodeterminação de gênero e sexualidade; o pleno respeito aos seus direitos e garantias individuais, notadamente à intimidade, privacidade, honra e imagem; a ser tratadas pelo nome social; a retificação da documentação civil para inclusão do nome social; a escolha do local de prisão pela própria pessoa presa, podendo alterá-lo quando necessário; o esclarecimento sobre a estrutura dos estabelecimentos prisionais disponíveis; a preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver; a tratamento hormonal e medicamentoso específico; a utilizar vestimentas socialmente lidas conforme sua identidade de gênero; a assistência religiosa; dentre outros.
Apesar dos avanços, o ato normativo ainda segue a lógica do encarceramento e do punitivismo. Ele ainda mantém pessoas trans privadas de liberdade dentro de celas que engrenam e movimentam a tortura. Além disso, a redução de danos originada pelo eventual cumprimento de pena das pessoas trans em prisão específica a essa população está condicionada, ainda, à existência de arquitetura prisional para tanto. Não houve a criação de obrigação para que o Estado, por exemplo, livre as pessoas trans da prisão, atue na porta de entrada e saída, forneça políticas públicas específicas, dentre outras possibilidades.
Desse modo, diante dos repertórios normativos existentes e das inúmeras violências transfóbicas que presenciamos nas nossas visitas pastorais em unidades prisionais, precisamos ficar atentos e atentas à luta de mulheres transexuais, homens trans e travestis, juntes, contra a transfobia e por um mundo sem cárceres.
Caso você perceba ou receba alguma informação sobre violação de direito contra as pessoas trans e travestis em unidades prisionais, faça uma denúncia em nosso site: https://carceraria.org.br/denuncia-de-tortura.
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