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Na Corte Interamericana, quilombolas de Alcântara enfrentam o Estado brasileiro

Tribunal internacional julga, nos dias 25 e 26 de abril, violações praticadas pelo Estado durante operação de base de lançamento de foguetes no Maranhão

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Por Yuri Costa e Marco Adriano Fonseca*, para a Agência Tambor. 
 

Nos dias 26 e 27 de abril, a capital do Chile sediará sessão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Quilombolas de Alcântara vs. Brasil. O julgamento é paradigmático. Pela primeira vez um tribunal internacional analisará violações de direitos da população quilombola tendo o Brasil como denunciado. Também é o primeiro caso em que as Forças Armadas são confrontadas num tribunal dessa estatura.

A Corte IDH é um tribunal internacional que integra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Ela determina se o país ali denunciado violou direitos reconhecidos pela Convenção Americana, de 1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. No caso do Brasil, as decisões da Corte têm caráter vinculante, já que nosso país aderiu ao Pacto formalmente em 1992. A Corte realiza reuniões itinerantes, sendo que a atual sessão ocorrerá na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago.

O que está em debate no caso é a sistemática violação contra direitos dos quilombolas, praticadas pelo Estado brasileiro no contexto de construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na região metropolitana de São Luís/MA.  O projeto do CLA é da Força Aérea Brasileira e foi construído na década de 1980, antes da redemocratização do país.

As violações denunciadas são decorrentes da instalação da base de lançamentos, bem como pela omissão do Estado brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para os quilombolas. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, saneamento básico e transporte de uma centena de comunidades tradicionais no Maranhão, consistindo em descumprimento aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

O caso Quilombolas de Alcântara vs. Brasil foi proposto a partir de denúncia apresentada originalmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ainda em 2001. Atuam como denunciantes (peticionários) no caso o Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU).

A denúncia tramitou por aproximadamente duas décadas na CIDH, com a realização de duas audiências. A Comissão Interamericana recomendou ao Brasil a regularização do território quilombola, a consulta prévia às comunidades em relação a acordos de expansão da base espacial, a reparação financeira das famílias forçadamente removidas e um pedido público de desculpas. Nada disso foi cumprido até agora. Em janeiro de 2022, a Comissão entendeu necessário que a questão fosse levada à Corte, que recebeu a denúncia e acolheu o pedido de realização de audiência sobre o tema.

O projeto do CLA começou a ser elaborado ainda na década de 1970. Durante sua construção, já nos anos 1980, foram desapropriadas de suas terras 312 famílias de 32 povoados de Alcântara. Essas comunidades foram reassentadas em sete agrovilas e enfrentam até hoje os impactos desastrosos do projeto.

Já os grupos que permaneceram em seus territórios tradicionais estão desde então sob constante ameaça de novas expulsões para expansão da base. Os projetos de ampliação são planejados e executados pelo Estado, sendo repetidamente alheios à população local. A situação gera uma enorme insegurança sobre o futuro das comunidades.

Entre as violações e ameaças mais recentes, destacam-se o Projeto Alcântara Cyclone Space, de 2008, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas firmado em 2019 com os Estados Unidos e, em 2020, em plena pandemia de Covid-19, o anúncio do plano de remoções que afetaria ao menos 800 famílias quilombolas.

Apesar de focar nas violações à população de Alcântara, o caso submetido à Corte Interamericana coloca em julgamento aspectos bem mais amplos. O Tribunal apreciará, pioneiramente, a capacidade do Brasil respeitar ou não normas e decisões internacionais e brasileiras que há muito consolidaram os povos e comunidades tradicionais como sujeitos de direitos próprios, cujo respeito deve ser permanentemente garantido.

O julgamento é um marco para a afirmação de direitos étnico-raciais no Brasil e nas Américas. Contribui substancialmente para a reparação histórica de violações a direitos da população negra e para o combate ao racismo. Leva ainda o tema para uma perspectiva internacional, já que possibilita a avaliação da conduta e das omissões do Brasil a partir de outros casos enfrentados pela Corte.

Nesse sentido, Alcântara é bastante representativa da luta histórica da população negra no continente americano. São mais de quatro décadas resistindo a um projeto de Estado militarizado, que envolve ações e omissões dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e abrange atos das esferas federal, estadual e municipal.

As sessões desta semana se constituem num momento de grande relevância para o caso, pois será o principal contexto de reunião dos envolvidos. Presidirá o evento o secretário da Corte e estarão presentes, além de representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as instituições peticionárias, as testemunhas e o Estado brasileiro, além dos peritos e os comissionados.

A audiência do caso Quilombolas de Alcântara vs. Brasil ocorre nos dias 26 e 27 de abril e começa às 14h30 do horário do Chile (15h30 no horário de Brasília) na quarta-feira, e a partir das 9h (10h) na quinta-feira. Será transmitida ao vivo nas mídias sociais da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

*Yuri é Defensor Público Federal e Professor UEMA e Marco Adriano Fonseca é Juiz de Direito TJMA e Professor ENFAM

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