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Como Nívea Sabino usa poesia para discutir direitos humanos

A poeta mineira descobriu na arte — e nas apresentações em saraus e slams — uma maneira de aproximar as pessoas para falar sobre temas espinhosos

Rafael Ciscati

7 min

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Em dias comuns, o bar do Bozó pouco ou nada diferia dos demais botecos espalhados pela periferia de Belo Horizonte. Meio improvisado numa antiga garagem, seu salão era dominado por uma mesa de sinuca. No balcão, eram servidas as bebidas.  O cenário, no entanto, se transformava toda quarta-feira à noite. Eram os dias em que o proprietário Bozó — então um rapaz jovem, na casa dos seus 30 anos — cobria a mesa de sinuca de livros e abria o espaço ao sarau do Coletivoz, um evento que reunia jovens para declamar e ouvir poesia. Tímida, a poeta Nívea Sabino acompanhava aquela movimentação com cautela, mais ouvindo que falando: “Eu frequentava os saraus para descobrir poesia”, conta ela, intercalando as palavras a risos curtos. “Levou um tempo até eu tomar coragem para me apresentar”. 

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Quem hoje vê Nívea recitar seus versos, de cor e sem cola, duvida da reminiscência. Aos 39 anos, Nivea é uma mineira de gestos calmos e voz firme. Usa os cabelos encaracolados curtos , com mechas grisalhas sobre as têmporas. Negra e lésbica, Nívea ganhou projeção justamente ao se apresentar em saraus e slams — competições de poesia falada, com direito a júri e plateia. Fez fama com poesia declamada muito antes de publicar seu primeiro livro de poemas escritos. “Interiorana” foi lançado em 2016 e reeditado no final de 2018. Na obra, mescla lembranças da infância — passada no interior de Minas — a reflexões sobre sexualidade e racismo. O sucesso lhe garantiu reconhecimento e o posto de co-curadora do último Festival Literário Internacional de Belo Horizonte.


Mas foi ouvindo versos em saraus que ela se descobriu poeta. Os encontros semanais no bar do Bozó, de que Nívea participou, aconteciam em meados de 2010, e acabaram interrompidos quando o estabelecimento fechou. Foi ali, entre amigos e bebidas, que ela reuniu coragem para expor os textos que escrevia desde há muito tempo em casa, em silêncio, ou em cartas enviadas para amigos: “Descobri, com o tempo, que nunca fui tímida”, afirma. “A timidez que eu sentia era, na verdade, reflexo do racismo em mim”.

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Nascido em 2008, o Sarau do Coletivoz foi um dos primeiros a surgir na periferia de Belo Horizonte. Criado por um grupo de poetas e estudantes da região, se inspirou em movimento semelhante que já se espraiava por outras capitais do Brasil. O modelo, segundo seus criadores, foi o sarau da Cooperifa, famoso na zona sul de São Paulo. A orientação a quem quisesse participar era das mais simples: bastava aparecer e, sentindo-se confortável, pedir a palavra e o microfone.

Com o tempo, outros encontros do gênero surgiram pela região metropolitana de BH. Hoje, os saraus integram uma espécie de ecossistema cultural que escapa ao circuito comercial, e que envolve os slams e as competições de passinho — as coreografias rápidas do funk. São espaços onde artistas e poetas diletantes encontram a chance de mostrar — e desenvolver — seu talento. No caso de Nívea, os saraus e slams se converteram também em espaço para falar sobre política. Mas à moda mineira: com jeitinho e alguma doçura.

“Ainda persiste o olhar
que a mim difere
que profundo fere
que segregar prefere
por questão de tom
de cor
de pele”

Trecho de “Sob os solos ferteis de Igualdade”, de Interiorana

A quem pergunta, Nívea Sabino diz com orgulho que se considera uma ” ativista da palavra “. A alcunha lhe ocorreu depois de um comentário da deputada federal Aurea Carolina. Ao vê-la declamar um poema, Carolina elogiou o engajamento da poeta: ” Ela disse que eu fazia ativismo com as palavras “, relembra. A metáfora pegou. 

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Desde 2013, a poeta faz parte do Fórum das Juventudes da Grande BH. A organização discute temas caros às juventudes das periferias urbanas, como direito à educação, combate a violência policial e ao racismo. Organiza slams e competições de passinho. O evento, batizado de Okupa, pretende estimular a população da cidade a usufruir, por meio da arte, do espaço público. A aposta é a de que, tal qual Nívea, os jovens que participam dos eventos encontrem na  música, na poesia e na dança, canais para reivindicar direitos e discutir temas espinhosos:  “A  oralidade e a arte são manifestações muito fortes nessa fase da vida” diz ela. “O  que a gente vem percebendo é que os slams, os saraus, as batalhas de passinho, são as maneiras da juventude de fazer política.”

“O muro imaginário
que Berlim não viu
passa por aqui
faz curva
no
Brasil”
Trecho de “De concreto, hipocrisia”

Nívea nasceu em 1980 no município de Nova Lima, uma cidade encravada entre morros a pouco mais de 20 quilômetros de Belo Horizonte. Conta que descobriu a  literatura quando começou a ler as letras de música nos vinis que os pais tinham em casa: “Era uma galera que cantava a realidade brasileira. Chico Buarque, Gonzaguinha, Cartola”, lembra.  Foi também por influência dos pais que se interessou por política. Ativista de esquerda, o pai de Nívea foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade. “Cresci acompanhando as reuniões do partido e lendo as atas de assembleia das associações de bairro”. 

Em Interiorana, reflexões sobre política dividem espaço com a elaboração poética da vida no interior. No livro, há todo um capítulo dedicado à Nova Lima. A cidade, onde Nívea vive ainda hoje, é retratada como um lugar que desperta reações ambíguas: “Nova Lima é uma cidade do interior como tantas outras, em que todo mundo se conhece e onde há certo conservadorismo de valores”, explica. 

Estão lá o pipoqueiro que trabalha aos domingos na praça em frente a igreja; o coreto no centro da cidade; e as montanhas que contornam o município, como que o isolando do mundo externo: “Acho que quem nasce no interior tem uma forma diferente de vivenciar o tempo” diz Nívea. A poeta conversou com a Brasil de Direitos no começo de janeiro, por telefone, enquanto espiava pela janela de casa: “Agora mesmo, enquanto eu falo com você, eu vejo as montanhas”. 

“Eis a Nova Lima
De pé no progresso
Nascidos e criados emigram
Para vez ou outra vir nos visitar”
Trecho de “Nova Lima Nova”

Mas estão lá, também, críticas a uma cidade que não foi capaz de garantir qualidade de vida a toda a população. Nova Lima foi fundada em meados do século XVIII, e cresceu em torno da atividade mineradora, dominada por companhia inglesas.  O trabalho nas minas deixou marcas no imaginário e no físico da população: “É comum que os homens mais velhos morram de asbestose”, conta Nívea. A doença, que prejudica o funcionamento dos pulmões, é provocada pela inalação de poeira de amianto. “A gente fala que toda pessoa nascida em Nova Lima é dona de uma herança que nunca vai receber. A herança do ouro que foi explorado e levado daqui”. 

Interiorana termina ainda com um conto — uma conversa imaginada entre a poeta e uma idosa faladeira que, sem aviso, decide lhe contar detalhes da própria vida. O texto celebra, em prosa, aquilo que Nívea tenta fazer com versos: aproximar as pessoas para conversar. “Através da poesia, é possível dialogar, sensibilizar o outro para questões que importam”, afirma. “Porque a arte nos mostra o poder da transformação. O poder de imaginar outros mundos possíveis”. 

Foto de abertura: (Júlio César Almeida/ Fundo Brasil)

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