Dário Kopenawa: Não quero que meu povo, os Yanomami, morra novamente
Para o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, a expansão do garimpo ilegal pode provocar um novo genocídio, como o ocorrido em Haximu em 1993
Rafael Ciscati
7 min
Navegue por tópicos
por Dário Kopenawa, em depoimento a Rafael Ciscati
ATUALIZAÇÃO (31/03/2023) – Desde que Dario Kopenawa deu este depoimento à Brasil de Direitos, em 2021, a crise na Terra Indígena Yanomami agudizou. Dados da Hutukara e do Instituto Socioambiental apontam que, atualmente, o garimpo ilegal na TI afeta uma área de 5 mil hectares – equivalente a 6 mil campos de futebol.
Com o avanço da atividade ilegal, recrudesceu a violência e aumentaram os casos de desnutrição e malária entre os Yanomami. Em 2022, os indígenas dessa etnia responderam por 10% de todos os casos de malária registrados no Brasil – um número desproporcional, visto que os Yanomami representam 0,013% da população brasileira. Dados obtidos pela agência Sumaúma indicaram que, entre 2019 e 2022, 570 crianças morreram na TI Yanomami, vítimas de problemas evitáveis. No final de janeiro de 2023, o governo federal decretou emergência de saúde pública na área.
Em audiência no Senado no dia 29 de março de 2023, a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana, declarou que as prioridades do governo são criar mecanismos de proteção territorial na TI, e remover os garimpeiros que ainda atuam na região.
Para saber mais sobre a crise na terra indígena Yanomami, leia: Quem são os Yanomami, o povo que segura o céu.
“A história do povo Yanomami é uma história de sangue. Eu ainda era criança, tinha 11 anos, quando meu pai — o líder indígena Davi Kopenawa — me alertou. Disse que vivíamos um momento de grande perigo. Garimpeiros haviam invadido a Terra Indígena Yanomami. Em 1993, eles nos massacraram. Mataram meus parentes, mataram crianças (um bebê foi morto a golpes de facão). Foram 16 Yanomami mortos no massacre do Haximu. Um genocídio.
Hoje, a violência cresce. E eu temo que a história se repita.
A presença de garimpeiros na terra indígena Yanomami, em Roraima, é antiga. Desde 2015, observamos o número de garimpeiros aumentar. De início, eram 7 mil pessoas, subindo e descendo o rio. Alertamos as autoridades, pedimos ajuda. Pedimos que eles fossem retirados da Terra Indígena. Nada foi feito. Eram 7 mil homens. Hoje, são mais de 20 mil.
Neste ano, o primeiro conflito aconteceu em janeiro, na comunidade de Kore-korema, às margens do Rio Uraicoera. Os garimpeiros ameaçaram nossos parentes. Foi um sinal. Denunciamos o ocorrido. No dia 30 de abril, a Hutukara Associação Yanomami (HAY), a associação que eu dirijo, recebeu relatos de um novo ataque. Dessa vez, o alvo foi a comunidade de Palimiú. Os garimpeiros atiraram em direção aos nossos parentes. Novamente, encaminhamos os relatos à Fundação Nacional do índio (Funai). Mas não tivemos nenhuma resposta dos órgãos fiscalizadores.
Foi assim até o dia 10 de maio. Naquele dia, sete barcos se aproximaram da comunidade Palimiú. Os homens carregavam armas pesadas. Atiraram. Os Yanomami não estavam preparados: fugiram, se esconderam, se espalharam pela mata. Os Yanomami também revidaram: quatro garimpeiros morreram. Mas eles voltaram. Na noite do domingo, dia 16, os invasores jogaram bombas de gás. Os parentes não conseguiam respirar.
Desde que os ataques começaram, pedimos ao governo federal que envie policiamento para a comunidade Palimiú. A polícia foi até lá. Conduziu uma investigação, colheu depoimentos. No dia 11, a própria Polícia Federal foi atacada por garimpeiros. Mas os policiais não permaneceram no território. A comunidade Palimiú continua vulnerável.
Isso nos preocupa muito. Porque eu não quero que meu povo morra novamente. Não quero que aconteça um novo genocídio. Não podemos permitir que se repita o que aconteceu aos Yanomami em 1993.
O meu povo já sofreu muito. Nossos avós e bisavós contavam como nossos parentes morreram nas epidemias de sarampo dos anos de 1970. Morremos de doença, de faca, de bala. O povo não indígena mata o povo da floresta. E eu cresci com isso. O homem branco não gosta dos indígenas. O povo da floresta não mata ninguém. Mas a palavra que vocês usam para falar de nós, “índios”, para nós significa morte. Vocês falam “índios”, e a gente entende que vocês querem matar os índios. Sua cosmologia, seus pensamentos e seus ritmos matam as pessoas. E isso também se aplica a você [diz, se dirigindo ao repórter]. Porque você é parte dessa sociedade. Você é da cidade. É não indígena. Você faz parte dessa violência contra o nosso sangue.
Digo isso porque estou revoltado, relembrando o histórico do massacre. E jogo a culpa em vocês: a sociedade não indígena, que destrói a terra e rouba as riquezas.
Na década de 1980, mais de 40 mil garimpeiros invadiram nosso território. Muitos de nós morreram: 20% dos Yanomami foram mortos. Hoje, há o risco de a história se repetir. Nas terras indígenas, o nível de violência é o mesmo que o daquela época. Mas há diferenças. Hoje, os garimpeiros têm tecnologia. No passado, eles se comunicavam por radiofonia. Hoje, usam pontos de wi-fi. Eles usam barcos, muitos aviões e helicópteros. Para os nossos territórios, trazem prostituição, violência e drogas. Usam cocaína e maconha. Atacam os indígenas, e também brigam entre si: os garimpeiros matam uns aos outros por ouro. Para os Yanomami, é isso o que faz o garimpo ilegal. Ele arranca a pele da mãe terra, mata as pessoas, traz violência e agressão.
Hoje, vivemos um momento muito problemático. Nossas terras são desmatadas, nossos direitos desrespeitados. O governo federal atual agravou bastante a situação. Ela não era boa nos governos anteriores. Mas piorou. Hoje, o governo apoia políticas que são contrárias à Constituição. Apoia o garimpo ilegal, e diz querer legalizar o garimpo em terra indígena. Querem autorizar mineradoras na Terra indígena Yanomami. Não queremos isso.
Nosso território foi homologado pelo governo brasileiro em 1992. É um direito nosso, está na Constituição Federal. Mas, no governo Bolsonaro, não temos segurança de que nossos direitos serão respeitados. Nosso território foi homologado, mas o governo não quer respeitar as leis. E, desse desrespeito, sofrem também os não indígenas. O povo não indígena passa fome, não tem recursos, não tem casa nem comida. O governo federal não respeita os direitos dos cidadãos brasileiros — indígenas ou não indígenas.
Por anos, meu pai lutou pelos direitos dos povos Yanomami e Ye’Kwana. Defendeu seu povo e a floresta. Hoje, ele continua a acompanhar os problemas políticos e as violações aos nossos direitos. Mas precisa descansar. Quer ficar na sua comunidade, cuidando de minha mãe. Ele já nos fez todos os relatos, e passou seus conhecimentos para as gerações mais jovens. Minha cabeça estava dormindo, mas ele falou comigo e eu acordei. Pensei, estudei, aprendi a falar a língua de vocês. Agora, sigo o raciocínio de meu pai. Como diretor da Hutukara, trabalho para ser porta-voz de meu povo. Não sou uma liderança. As lideranças são os mais velhos. Eu sou jovem. Mas sou um representante que defende os direitos de meu povo.
O que queremos é que nosso povo viva em paz. Quero que o garimpo saia imediatamente. Que seja feita a desintrusão das terras Yanomami. E não quero que meu povo derrame mais sangue.”
Foto de topo: Reprodução/Twitter
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisComo é ser refugiado no Brasil? Que bom que você perguntou!
4 min
Marielle: como a violência política contra a mulher cresceu desde o assassinato da vereadora
8 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min