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Mangue, mar e Elza Soares: marisqueira pernambucanas regravam clipe de cantora

Filme retrata dia a dia de pescadoras tradicionais. Categoria sofre com falta de visibilidade e com os impactos ambientais provocados pelo porto de Suape

Rafael Ciscati

7 min

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Ana Paula Alves sorriu quando viu a equipe de filmagem atrás de si. O sol já ia alto, naquele dia de novembro, e o grupo tentava chegar ao lugar de trabalho habitual de Ana — as pedras limosas banhadas pelo mar de Cabo de Santo Agostinho, no litoral pernambucano. É ali que ela se dedica à pesca do aratu, um crustáceo de costas acinzentadas que, vendido aos restaurantes da região, faz sucesso entre turistas. “É longe, mas vai valer a pena. A paisagem é maravilhosa”, ela lembra de ter dito aos companheiros de jornada — os cineastas Cecília da Fonte e Thiago das Mercês — que se equilibravam entre pedras, câmeras e tripés. Ana estava bem à vontade com o terreno, que conhece desde criança. A novidade, para ela, era a tarefa do dia: a regravação do clipe da música Banho, que ela estrela junto de outras 40 colegas, todas pescadoras.

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A música foi composta pela cantora Tulipa Ruiz e ganhou o mundo da voz de Elza Soares. Mas parece contar parte da história de vida de Ana. “Embaixo sou doce, em cima salgada; Meu músculo musgo, me enche de areia”, narra a letra, evocando uma imagem que remete a um manguezal — lugar de água salobra, onde rio e mar se encontram, e que Ana frequenta desde pequena em busca dos caranguejos que vende. Diante das câmeras, ela queria mostrar um pouco do seu dia a dia. “Tem gente que sente vergonha de ser pescadora”, afirma. “Eu não. Eu sinto orgulho”. 


Lançado no início de fevereiro, o clipe faz parte das atividades do projeto Mangue Mulher. Ao longo de quase dois anos, a iniciativa promoveu oficinas de formação política e profissionalizante a pescadoras das cidades de Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, municípios próximos no litoral de Pernambuco.  O trabalho foi desenvolvido pelo Fórum Suape — uma organização da sociedade civil que defende os direitos de pescadores e outras populações tradicionais cujo cotidiano foi afetado pela criação do Porto de Suape, no final da década de 1970.  O complexo industrial reúne mais de 100 empresas, como a Univeler, a Coca Cola e a Pepsico. Sua construção destruiu recifes e forçou o deslocamento de mais de 20 mil pessoas que viviam na região. “Desde que surgiu, o porto viola direitos e degrada o meio ambiente”, afirma Simone Lourenço, coordenadora de projetos do Fórum Suape. 

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Mas, em 2019, quando o Mangue Mulher surgiu, as famílias de pescadores da região estavam às voltas com um novo problema. Naquele ano, todo o litoral do nordeste brasileiro foi afetado por um derramamento de óleo que tingiu as praias de negro, matou peixes e aves. E que afetou, severamente, a renda de quem vivia da pesca. “Aquele incidente ameaçou a sobrevivência de muitas famílias, que não podiam mais pescar — ou que não conseguiam vender o que já tinham pescado, porque os consumidores tinham medo de contaminação”, lembra Simone. 

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A situação parecia pior para as famílias chefiadas por mulheres. Embora sejam as principais responsáveis pela pesca dos crustáceos, comuns na culinária nordestina, o trabalho de marisqueiras e pescadoras costuma ser desprestigiado. Elas têm dificuldade, por exemplo, para se registrar nas associações de pescadores — muito masculinas, e que, segundo Simone, encaram a pesca de mariscos como uma atividade menor. A tarefa é contraposta à pesca em alto mar que, no mundo da pesca artesanal, é tradicionalmente feita por homens. Esse preconceito tem efeitos práticos. Sem registro nas colônias de pescadores, as marisqueiras encontram entraves para acessar direitos que protegem a categoria, como à aposentadoria especial. 

“Foi nesse momento que, por ocasião do derramemento de óleo, passamos a olhar com mais cuidado para o trabalho dessas mulheres”, diz Simone. Para embasar atividades futuras, o Fórum Suape organizou uma pesquisa socioeconômica focada no grupo. O levantamento revelou que a maioria das marisqueiras da região sutentava suas famílias a partir da pesca. Algumas relatavam casos de violência doméstica. Nos meses que se seguiram ao derramamento de petróleo, conta Simone, as pescadoras se lançaram com afinco ao trabalho de limpeza das praias e manguezais. Para elas, além de ganha-pão, o mangue representava um aspecto fundamental de sua identidade. “Ao defender o mangue contra o óleo, as pescadoras estavam defendendo seu território, sua história”, diz Simone.

Se perguntam a Helena do Nascimento o que é o mangue, ela responde de pronto, sem titubear. “O mangue é minha segunda casa. É onde eu me sinto mais à vontade” afirma, com a serenidade de quem diz uma verdade óbvia. Nascida em Ipojuca, Helena é filha e neta de pescadores. Ela própria pesca desde os 12 anos. É assim que veste e alimenta, sozinha, os quatro filhos. O trabalho é árduo — começa às 4h, antes de o dia clarear. “A gente passa pelo menos quatro horas dentro do mangue”, explica. Dali, o caranguejo capturado é levado para casa, cozido e preparado para venda. A tarefa soma pelo menos outras sete horas de trabalho. Nos restaurantes da região, o crustáceo é vendido por valores que variam entre R$20 e R$50 por quilo. É pouco por um trabalho invisibilizado. “Quando você pede um prato de caranguejo em um restaurante, você logo pensa que foi um homem quem pescou. Mas não: foi uma mulher”, diz Helena.

Nas oficinas do Mangue Mulher, as 47 pescadoras que participaram do projeto discutiram maneiras de incrementar a própria renda. Aprenderam a cozinhar novas receitas e a fazer adornos a partir das conchas de marisco. Noutros momentos, as oficinas discutiram temas sensíveis, como violência doméstica e de gênero. E trataram dos direitos a que elas, enquanto pescadoras, poderiam ter acesso. “O objetivo do projeto era visibilizar o trabalho dessas mulheres, e fortalecê-las do ponto de vista político e produtivo”, diz Simone. 

A ideia de transformar a experiência em clipe surgiu já no início do trabalho, e ganhou corpo aos poucos. Fazer um clipe a partir da música Banho era uma ambição antiga da advogada Mariana Maia, que trabalha na assistência jurídica do Fórum Suape. “A primeira vez que eu escutei a música de Elza, eu fiquei muito impactada”, lembra ela. “Na hora eu vi um filme em que apareciam essas mulheres pescadoras”. Entre a ideia e o clipe pronto, passaram-se pelo menos quatro anos. Mariana lembra que a resposta da Alta Fonte, a produtora da música, veio por email . “E veio logo com um ‘sim’”, autorizando o uso da música no clipe. Na época, no final de 2021, Elza ainda era viva. Morta no final de janeiro, os produtores contam que ela gostou da ideia do filme, mas não chegou a ve-lo pronto. 

Mesmo sem familiaridade com telas e câmeras, as pescadoras toparam participar das gravações. Em alguns casos, com certo receio. “Para ser sincera, eu achava que esse clipe não ia acontecer” revela Helena, rindo. “Mas eu aceitei participar. Pensei — se a ideia veio do pessoal do Fórum, então ela veio para somar”. 

Foram elas as primeiras a assistir ao clipe finalizado, numa sessão no começo deste ano. Todas aplaudiram — mais de uma vez. As reações foram registradas em vídeo.


Simone, a coordenadora do projeto, conta que o mérito do clipe está em dar a devida visibilidade a essas trabalhadoras. “Os produtos que elas vendem têm mais destaque que elas mesmas”, conta. “Queríamos mostrar que há beleza, e que elas sentem orgulho de ser pescadoras”.

Enquanto estava encarapitada nas pedras onde pesca, Ana Paula Alves lembra que sentiu certa vergonha ao encarar a câmera. O acanhamento passou depressa. Hoje, ela envia o clipe por whatsapp a quem quiser ver. “O povo ficou todo doido. Achou lindo, maravilhoso”.

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