Como um movimento de mulheres trabalha para preservar sementes crioulas
Com a campanha Sementes de Resistência, Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do Norte quer valorizar sementes intocadas pelo agronegócio
Maria Edhuarda Gonzaga *
7 min
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Itamara Almeida se identifica como uma mulher do campo. Integrante do Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do Norte (MMC), ela nasceu no interior do estado, mas logo cedo se mudou para a cidade, para estudar. Apesar disso, manteve contato com as várias vertentes do campesinato presentes no seu núcleo familiar e afirma, categórica, que “a cidade invadiu o campo e não o contrário”. Dentre essas tradições camponesas, resiste nela a convicção de preservar as sementes crioulas.
Sementes crioulas, ou landraces (termo abrasileirado do inglês que significa “raças da terra”) são grãos cultivados e selecionados ao longo de gerações por famílias de agricultores. A técnica consiste em armazenar os melhores grãos para que sejam utilizados nas safras seguintes. Essa forma de melhoramento, realizada artesanalmente por anos, resultou em uma grande variedade de sementes com traços genéticos específicos e adaptadas ao meio em que foram cultivadas.
Essa tradição pode estar perto de desaparecer. Desde a década de 1960, a modernização do trabalho no campo — que em vários países recebeu o nome de Revolução Verde — substitui os cultivos tradicionais por variantes desenvolvidas por empresas. Sementes geneticamente modificadas e patenteadas. O avanço desse processo arrisca extinguir as sementes crioulas, e ameaça a segurança alimentar das populações do campo. Percebendo o assédio crescente do agronegócio, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) decidiu reagir.
Há mais de dois anos, o grupo desenvolve a campanha Sementes de Resistência. O trabalho, que começou no auge da pandemia de Covid-19, defende a produção de alimentos sem veneno através das sementes crioulas, seguindo princípios da não-violência ou exploração, e valorizando a autonomia dos agricultores.
Na avaliação de Itamara, esse trabalho é urgente para preservar um “patrimônio dos povos a serviço da humanidade”. A intenção é manter vivo um conhecimento tradicional: além de garantir a diversidade e a abundância de grãos produzidos sem insumos químicos, as sementes crioulas são o resultado de anos de aperfeiçoamento natural feito pelos agricultores. “Isso sim é tecnologia”, afirma a ativista.
Passeata do Movimento de Mulheres Camponsesas em Brasília (Divulgação)
Ao longo dos últimos 60 anos, as sementes crioulas não perderam espaço somente nas lavouras — elas foram abandonando o imaginário popular. A mudança foi gradativa, e fez parte de um processo que a professora Regina Bruno, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) chamou de “dominação simbólica narrativa”.
Ela conta que, por séculos, o trabalho no campo foi visto como improdutivo e como sinônimo de atraso. Essa imagem mudaria a partir de meados do século passado, quando ganhou espaço uma nova face do agronegócio, considerada mais moderna. Novos investidores foram atraídos para o campo, interessados em plantar para exportar. Junto deles, vieram maquinário sofisticado e sementes geneticamente modificadas.
Quem saiu perdendo foi o agricultor familiar. Muitos abandonaram suas terras. Outros aderiram à “parceria modernizadora”: adquiriram máquinas novas, sementes comerciais e fertilizantes químicos destinados a aumentar sua produção. Com isso, perderam autonomia. Katianny Estival, doutora em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, conta que a adoção desses pacotes tecnológicos resultou na redução da variedade das sementes cultivadas, o que gera empobrecimento dos solos, redução das riquezas dos ecossistemas e riscos ecológicos, como a escassez de água.
O discurso empreendedor que invadiu o campo, propagado pelo agronegócio, também separou os agricultores em dois grupos – de um lado, o agricultor moderno; de outro, o camponês. “De um lado, [observa-se] o profundo desprezo pelo agricultor familiar pobre, que produz para sobrevivência. De outro, a subordinação e dependância da agricultura familiar integrada aos ditames dos proprietário/ empresários”, escreve Regina Bruno, da UFRRJ.
Esse afastamento entre os camponeses logo foi notado pela militância agroecológica, da qual Itamara, do MMC, faz parte. O movimento defende a produção de alimentos sem utilizar veneno. O assunto é importante para o Brasil. A maior parte dos alimentos consumidos nos lares dos brasileiros vêm da agricultura familiar. Segundo o censo do IBGE de 2017, 76,8% dos estabelecimentos que produzem a nível nacional pertencem a esses pequenos agricultores.
Mesmo assim, o Brasil é um dos países que mais utiliza pesticidas e agrotóxicos. “A agricultura familiar está dentro de um molde que ainda abre espaço para essa produção com veneno. Então por isso que nos diferenciamos: o que fazemos é agricultura familiar camponesa”, explica Itamara.
A utilização de sementes transgênicas criou, ainda, outro problema para o agricultor camponês. A aproximação das terras produtivas de agricultores familiares aos monocultivos do agronegócio, que utilizam sementes transgênicas, faz com que o pólen da planta modificada geneticamente seja transportado pelos ventos. Essa ação provoca a fecundação da flor de uma planta crioula e destrói anos de esforços para melhorar naturalmente as landraces. Há alguns anos o site de notícias Brasil de Fato expôs esse processo com casos concretos no Paraná e na Paraíba.
Para valorizar a cultura das sementes crioulas, o Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do Norte (MMC) desenvolve atividades variadas. A Semente de Resistências começou nos piores momentos da pandemia de covid-19. Por isso, as primeiras movimentações se concentraram em garantir cestas básicas para as famílias camponesas potiguares em situação de insegurança alimentar através da arrecadação de alimentos a nível nacional.
Diversos encontros virtuais também foram ministrados para ensinar os agricultores a utilizar os aplicativos governamentais a fim de que conseguissem resgatar o auxílio emergencial e o auxílio específico para as comunidades agricultoras.
Formações educativas on-line – e, posteriormente, semipresenciais – sobre o movimento feminista camponês popular e a importância do protagonismo das mulheres camponesas na luta pela agroecologia foram outros projetos desenvolvidos pelo movimento. Os debates procuram ser intergeracionais, de forma a propagar a ancestralidade das sementes crioulas a lideranças mais jovens
“Carregamos em nossa história a missão da mística revolucionária em defesa das sementes, da agroecologia, da mãe terra, das águas, de nossos corpos e de nossos territórios!”, é como elas definem seu ativismo, que resgatou uma concepção há muito esquecida de relação com a fertilidade da terra. Profundamente atrelada à constituição das identidades comunitárias femininas do campesinato, Itamara conta que o “ser camponesa” não é, necessariamente, a produção de alimentos. Há também no estado mulheres pescadoras, marisqueiras e ribeirinhas, por exemplo. Longe de serem excluídas da campanha, a militante explica que existem outras conexões traduzidas na existência das sementes crioulas. “Temos a diversidade de um campesinato não uniforme. A semente tem uma simbologia do alimento plantado e comido, mas também tem a simbologia da mulher enquanto essa pessoa que produz e que preserva. Somos nós, também, as sementes.”
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