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Brenda e Hellayne: uma história de amor no Sertão de Pernambuco

Elas podem se tornar as primeiras mulheres casadas no cartório de Flores, onde vivem. No Brasil, o casamento homoafetivo é garantido pela Justiça, mas ainda não é assegurado em lei

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por Gessica Amorim, da Agência Diadorim
 

Brenda Ferreira e Hellayne Gomes foram criadas, respectivamente, em Sítio dos Nunes e Vila de Fátima, distritos de Flores, no Sertão do Pajeú, em Pernambuco. As duas se conheceram perto dali, ainda entre os limites do município, no forró do famoso Bar da Rejane, localizado no povoado Sítio Pereiros e frequentado por gente de toda aquela região.
 
Era 7 de maio de 2022, e elas foram apresentadas por uma amiga em comum. Cinco meses depois, começaram a namorar. No início, Hellayne não quis nada muito sério, mas para Brenda o primeiro contato entre elas já foi o bastante para que tudo começasse a se movimentar e a se transformar em sua vida. Tímida e desconcertada, diz: “Foi amor à primeira vista. Ali, eu já soube que era ela”. 

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Agora, pouco mais de um ano desde o encontro entre as duas, elas vivem juntas em Sítio dos Nunes e decidiram que vão se casar em dezembro. Se até lá nenhum outro casal formado por pessoas do mesmo gênero no município fizer o mesmo, os nomes de Brenda e Hellayne estarão no primeiro registro de um casamento homoafetivo realizado em um cartório de Flores.

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No Brasil, a garantia do casamento homoafetivo ainda não foi concedida por lei, mas é um direito assegurado pela Justiça. Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal declarou legal a união entre pessoas do mesmo gênero. Dois anos depois, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que permitiu aos cartórios registrarem casamentos homoafetivos.
 

Aceitação

 
Brenda, 22, é vaqueira conhecida nas redondezas do distrito onde mora. Nascida numa família de vaqueiros tradicional, ela participa de corridas de mourão – como também é chamada a atividade – nos parques de vaquejada desde os 16 anos. Em 2017, ao lado de um dos seus tios, já na sua primeira participação numa grande competição, garantiu o quarto lugar na categoria profissional de um dos eventos organizados no parque de vaquejada São João Batista, em Sítio dos Nunes. Ela compete como bate-esteira, ajudando o vaqueiro principal a alcançar o boi e a derrubá-lo na faixa. Hellayne, 19, concluiu o ensino médio no ano passado e trabalha como maquiadora e cabeleireira.
 
Quando decidiram contar sobre o namoro para as suas famílias, no início, as duas tiveram o apoio de alguns parentes, mas também precisaram enfrentar a homofobia de outros.
 
Filha de um casal de agricultores de Vila de Fátima, Hellayne conta que a conversa com o seu pai foi difícil, mas que já pôde contar com o apoio da sua mãe. “Quando eu comecei a namorar com Brenda, eu contei logo pra minha mãe, porque sempre pude conversar com ela sobre tudo o que me acontece”, lembra. “Ela me perguntou se era isso que eu queria pra minha vida. Teve medo da reação do meu pai, porque ele bebe muito e é preconceituoso, mas me apoiou. E eu tinha medo de falar pra ele também. Às vezes, brincando, eu falava pro meu pai que ia levar uma menina lá pra casa, pra ele conhecer, e ele me respondia que ia fazer vergonha a nós duas.”
 
Orientada pela mãe, ela decidiu que primeiro ia concluir o ensino médio para poder, então, conversar com o seu pai sobre sua sexualidade. “Quando eu concluí, ano passado, eu fui até ele e disse que estava namorando com uma menina de Sítio [dos Nunes]. Ele disse que eu não tinha vergonha na cara, que era pra eu arrumar um macho. Que não via futuro em uma mulher se juntar com outra.” 
 
O casal decidiu morar junto em 9 de dezembro de 2022. “Ajeitei minhas coisas e fiquei esperando ela vir me buscar. Quando o meu pai chegou da roça e viu as minhas coisas, saiu de cabeça baixa e não disse nada. Nem que era pra eu ir e nem que era pra ficar”, lembra. 
 
A aceitação, porém, veio gradualmente. “Quando já vivíamos juntas, Brenda costumava me levar até minha antiga casa. Eu normalmente seguia sozinha a partir de certo ponto, pensávamos que seria melhor assim. No entanto, um dia, fui surpreendida. Meu pai perguntou por Brenda, queria saber onde ela estava e por que não tinha vindo comigo”, conta. “Brenda já estava a caminho de Sítio, mas pedi que ela voltasse, e ela concordou. Foi um período de adaptação, difícil e estranho. Sabemos que nem todos têm a sorte de contar com o apoio familiar após enfrentar conflitos e sofrimentos. Mas, agradecidamente, hoje eles se dão bem.”
 
Para Brenda, as reações negativas de alguns familiares depois de assumir o seu namoro com Hellayne teve um fator a mais: a irmã gêmea dela, Beatriz, também já se relaciona com outra mulher, com quem foi morar em Mato Grosso.
 
“Nossa irmã mais velha aceitou Beatriz numa boa, mas não queria que eu fosse [lésbica]. Eu nunca entendi o porquê disso. Ela nunca quis que eu me relacionasse com mulheres. Dizia que eu tinha que ser diferente e ainda passou um tempo sem falar comigo”, diz Brenda. “Mas eu nunca liguei pra isso e nem pra opinião do povo com relação à minha vida pessoal. Enquanto ela estava nessa, eu estava vivendo.” 
 
O jornalista e sociólogo Ricardo Saboia, que pesquisa sobre mídia, gênero e sexualidade, comenta que esse estranhamento e intolerância familiar com relação a Brenda e Beatriz, por serem irmãs, faz parte de uma reação à quebra da norma sexual construída e determinada socialmente.
 
“Quando se tem um filho gay, a princípio, ele já não está dentro do que a gente costuma esperar da sua sexualidade, não atende à expectativa da heterossexualidade. Uma pessoa gay, na família, já costuma ser uma quebra  numa norma que foi socialmente construída. Quando são irmãos homossexuais, então, esse estranhamento se potencializa”, explica Ricardo, que é professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
 

O pedido

 
O casamento de Brenda e Hellayne vai acontecer no final deste ano e o pedido foi feito pela vaqueira numa surpresa organizada na casa de uma prima, com a presença e o apoio de parte das duas famílias. “Eu chamei Hellayne pra gente ir tomar um refrigerante na rua. Nesse dia, ela nem queria sair, mas foi comigo. Eu disse que precisava passar na casa da minha prima Edna e, quando a gente chegou, já estava tudo pronto, todo mundo lá”, lembra Brenda. “Graças a Deus, quem importa está com a gente.”
 
Segundo levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), cerca de 256 pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e travestis foram mortas violentamente no país, em 2022. O número equivale a uma morte a cada 34 horas. O GGB traz, ainda, dados que mostram a região Nordeste como a mais insegura para pessoas LBGTQIA+, com 43% das mortes violentas (111). Pernambuco aparece no ranking como segundo estado mais inseguro, com 20 mortes (7,81%), ficando atrás da Bahia, com 27 mortes (10,54%).

Esses números, alarmantes, são reforçados pela pesquisa realizada pelo Observatório de Mortes e Violência contra LGBTI+ no Brasil. Segundo o grupo  – uma coalizão de organizações – 273 pessoas LGBTQIA+  morreram de forma violenta, no Brasil, em 2022: aproximadamente uma a cada 32 horas. A imensa maioria, mais de 83%, foi vítima de assassinato. 

 
Brenda e Hellayne têm conseguido viver bem num Sertão que, há muito tempo, é cercado por estigmas e estereótipos que nutrem e ajudam a perpetuar posturas e ações danosas à vida de muitas pessoas. “No nosso imaginário, o Sertão é visto sempre como um lugar de cabra macho, de homem valente, forte e viril. De mulheres religiosas, resilientes, cuidadoras da casa e dos filhos. Essa é uma construção de imagem excludente, que assassina, ao seu modo, a diversidade existente no local”, pondera o professor de história e produtor cultural Lúcio Vinícius, integrante do grupo Filhes do Pajeú, de Afogados da Ingazeira (PE), que articula atividades voltadas ao alerta e à denúncia de violências físicas e simbólicas sofridas por muitos cidadãos LGBTQIA+ da região.
 
Lúcio também reforça a importância do surgimento e sustentação de grupos como aquele do qual ele faz parte. “É preciso reforçar a importância do surgimento e resistência desses grupos para buscarmos mecanismos eficientes para o combate à LGBTfobia e garantirmos mais espaços de fala e representatividade em nossos territórios”.

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