Projeto leva moda afro-indígena sustentável às escolas de Belém
Jovens travam debates sobre mudanças climáticas a partir da reutilização criativa de roupas com identidade paraense
Maria Edhuarda Gonzaga *
7 min
Navegue por tópicos
Fazia uma – raríssima – noite fria no bairro Terra Firme, em Belém (PA), quando as amigas Vitória Gonçalves e Analu Benchimol decidiram se encontrar para comer uma pizza. Àquela altura, Vitória andava intrigada: já há algum tempo, via despontar nas redes sociais vídeos de europeus e americanos que tinham aderido à moda “Brazilcore”. O nome, em inglês, faz referência a um estilo de vestir bem brasileiro: combinações de amarelo, verde, azul e branco, chinelos de dedo, acessórios chamativos e até o nome “Brazil” estampado nas blusas que, hoje, ocupam os guarda-roupas ( e as cabeças ) dos jovens estrangeiros.
A educadora social de 21 anos percebeu que o que sempre viu nas ruas do seu bairro estava recebendo o devido reconhecimento como manifestação artística. “Muita gente começou a usar como algo inovador, sendo que sempre vestimos isso aqui”, disse. Entre um pedaço de pizza e outro, Vitória lançou a ideia de produzirem um ensaio fotográfico mostrando o melhor do brazilcore made in Pará. “Queríamos valorizar nossos costumes, não só por meio da roupa, mas também do nosso próprio território. Mostrar que onde moramos é bonito e que aqui dá para trabalhar a moda”.
>>LEIA TAMBÉM: Moda avança no combate a violações, mas falta transparência, diz ativista
Analu ouviu e gostou da ideia. Àquela altura, estava antenada nas preparações para a Semana de Moda europeia, evento internacional em que estilistas e a indústria fashion lançam suas últimas coleções. Percebendo o gancho certeiro, sugeriu que ampliassem a proposta para um desfile, que mostraria o estilo paraense com roupas confeccionadas por elas. De conversa em conversa, o projeto ganhou um formato ainda maior quando as meninas decidiram fazer parcerias com afroempreendedores locais, de forma que eles também pudessem expor suas criações.
O resultado de todas essas ideias foi o Perifa na Moda. O evento, que acabou sendo maior do que a dupla esperava, aconteceu no dia 26 de agosto, na Usina da Paz Terra Firme. Nas contas das organizadoras, quase duzentas pessoas e mais de dez estandes de afroempreendedores se reuniram na quadra esportiva do lugar para ver 23 jovens da comunidade desfilarem. “Foi emocionante fazer um evento que nós estávamos à frente em praticamente um mês, apesar de alguns estresses. Aprendemos muito”, conta Vitória.
Além de discutir moda – e valorizar o estilo local – o Perifa na Moda levou para a passarela discussões sobre sustentabilidade ambiental. Pôs em pauta como os moradores das periferias da Amazônia trabalham para preservar o meio ambiente a partir de soluções populares desenvolvidas na região. Passado o desfile, o desafio da equipe é expandir essa conversa, e levar as reflexões sobre moda e meio ambiente a mais gente. Começando pelas escolas da capital Paraense.
Vitória e Analu são articuladoras do Cine Clube TF, organização criada pela professora Lília Melo em parceria com alunos do bairro de mesmo nome. O grupo tem o objetivo de estimular produções artísticas e culturais da juventude paraense negra e periférica.
A ideia de que dava para falar sobre sustentabilidade e moda, tudo ao mesmo tempo, surgiu durante uma conversa que a dupla teve com Lília. A professora as instigou a refletir sobre como o desfile poderia, de alguma forma, conectar-se aos Diálogos Amazônicos, evento que acontecia em Belém naquele momento, e que reuniu representantes da sociedade civil organizada para pensar o futuro da região. Em 2025, a cidade será sede da Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas, a COP 23. No contexto amazônico, uma das grandes discussões será como gerar renda e qualidade de vida para a população local mantendo a floresta em pé. Qual o papel da moda nessa equação?, provocou Lílian.
Ao conversar com profissionais e professores especializados no tema, Analu e Vitória começaram a pensar na moda ligada às mudanças climáticas, problemática que tem afetado a população do Pará, em especial os ribeirinhos. Foi nesse momento que elas descobriram uma nova palavra: upcycling. Numa tradução livre, o conceito significa reutilização “para cima”. Ao contrário da customização e da reciclagem, o upcycle valoriza a vida útil das roupas. Na prática, isso significa dar novas formas e utilizações ao produto sem que ele precise passar por processos industriais que o desintegrem ou gerem lixo.
“Apesar de não saber o que significava, já fazíamos isso na prática. Então ele se tornou o foco principal do desfile”, explica Vitória. A descoberta do termo abriu um leque de oportunidades para serem trabalhadas no evento, até mesmo o próprio conceito de moda. Analu comenta que jamais tinha considerado que a reinvenção e reutilização de suas roupas, algo a que sempre se dedicou, poderia ser moda. “É uma coisa culturalmente nossa. Surge com a gente antes de ter um nome americanizado”.
A vontade de realizar novas edições, com temas que conversem com outras questões da sociedade, é grande. No entanto, as mulheres sentem que a ideia de um desfile de moda como maneira de empoderar a juventude precisa, antes de tudo, se popularizar. Muitas pessoas da comunidade receberam o evento com desconfiança, uma vez que não é comum esse tipo de manifestação no bairro. Depois, ao saber maiores detalhes de como tinha sido, interessaram-se em participar. Vitória diz que “isso mostra para nós que as pessoas precisam ouvir mais sobre o que estamos fazendo.”
Por isso, agora, o Perifa na Moda vai às escolas.
A maneira que as educadoras populares encontraram para ampliar esse conhecimento foi através de eventos que elas batizaram de “vivências formativas”. O Cine Clube TF, organização da qual fazem parte, já tinha um projeto de fazer dos jovens “agentes de cultura”. Para isso, oferecia, em algumas escolas públicas de Terra Firme, oficinas artísticas de aprendizado, como dança de rua, teatro e cinema. Vitória e Analu criaram a primeira vivência voltada para moda, inspiradas na produção que fizeram. Com o objetivo de enaltecer a identidade afroindígena ribeirinha e sustentável, os adolescentes potencializam seus modos de ver a si mesmos. “Tentamos resgatar essa identidade e o reconhecimento de que a moda está aqui também”, explica Vitória.
A primeira vivência aconteceu no território indígena dos jurunas. Quando inauguraram a vivência, esperavam o interesse de no máximo três pessoas. No entanto, a quantidade de jovens dispostos a pensar sobre novas formas de se relacionar com as roupas superou a expectativa das educadoras. Vitória conta que os debates costumam evoluir para um lugar de pertencimento e baixa autoestima. “Nunca é só sobre roupa. A questão da identidade e de firmar seu espaço sempre aparece. Desde o início do projeto, nosso grupo teve discussões sobre esses impedimentos culturais que vão além de moda e estilo.”
O entendimento de que “a periferia sempre fez moda”, como diz Analu, vem acompanhado da necessidade de pensar em roupas que se encaixem na realidade paraense de emergência climática. Segundo levantamento realizado pela ONG Global Fashion Agenda, a indústria da moda é a segunda mais poluente do mundo. Seu modelo de produção, cada vez mais predatório e descartável, é responsável por destinar mais de cem mil toneladas de lixo têxtil no planeta por ano.
Por isso, Analu defende que é urgente pensar em novas formas de se relacionar com a roupa. A compreensão de que sustentabilidade e auto expressão precisam andar juntas é algo que ela procura suscitar nos participantes das vivências formativas. “Eu tento passar para eles que a roupa mais ecológica que podemos ter já existe, então porque não transformar o que eu já tenho naquilo que eu quero ter.”
*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisMarielle: como a violência política contra a mulher cresceu desde o assassinato da vereadora
8 min
Com acordo em Alcântara, Estado se antecipa à condenação internacional, diz ativista
9 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min