Afrofuturismo coloca pessoas negras como protagonistas, diz autora
Para Luciene Marcelino Ernesto, ou Lu Ain-Zaila, movimento pretende rever discursos ( e imaginar futuros) a partir da perspectiva negra
Fabio Leon
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por Fabio Leon, do Fórum Grita Baixada
O Afrofuturismo é um gênero da cultura que tomou fôlego nos últimos anos. Em filmes ou livros, seus protagonistas sofrem algum tipo de marginalização e mudanças radicais para sobreviver. São minorias, cujos antecedentes históricos já os tornam íntimos da violação brutal e da exploração de sociedades opressoras. O termo foi cunhado pelo crítico literário estadunidense Mark Dery numa entrevista com os autores afroamericanos Tricia Rose, Samuel Delany e Greg Tate para descrever “a ficção especulativa que trata de temas afro-americanos e lida com preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX”.
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Ao perceber que havia espaço para uma literatura de ficção especulativa assentada no contexto negro, que falasse sobre a África e diáspora africana, Luciene Marcelino Ernesto decidiu lançar-se no gênero. Formada em pedagogia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), assumiu o pseudônimo Lu Ain-Zaila, com o qual assina a série de livros “Brasil 2408”. A duologia é formada pelos livros “(In)Verdades” e “(R)Evolução”, ambos frutos de autopublicação. A obra, que se passa num Brasil futurista, conta a história de Ena, uma jovem negra que sonha se tornar oficial das Forças Distritais do Brasil.
Luciene, ou Lu, também escreveu “Sankofia”, uma coletânea de contos que tomou forma via financiamento coletivo. Sua terceira publicação, a novela cyberfunk “Ìségún”, é fruto de uma parceria com a Monomito Editorial.
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Sobre o Afrofuturismo, assim ela o descreve em seu blog: “Essa pequena palavrinha esconde uma complexidade enorme, mas vamos simplificar por ora. Tem a ver com a presença de pessoas negras em lugar de protagonismo, não apenas fisicamente, mas cultural e musicalmente. Esse é um movimento artístico e estético que se expande por vários níveis, indo da pintura e arte experimental ao cinema, e na literatura. Nós queremos que nossas faces também salvem o dia, a humanidade, o universo, ou que apenas vivam um romance ou contêm uma história engraçada. Mas sempre com um viés consciente de seu lugar no mundo, em algum nível.”
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Nascida e criada em Nova Iguaçu, Lu acredita que a literatura ainda é tratada como algo menor. Por causa disso, tem pouco impacto nas vidas dos jovens: “São livros que os jovens leem por obrigação, e que não estão de acordo com sua faixa etária. Não espelham sua realidade nem falam como eles”, afirma. “Mas há um vento de mudança vindo, dia após dia”.
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Lu é cria dos pré-vestibulares comunitários, onde teve seus primeiros contatos com literatura marginalizada. Acabou virando professora de Geografia Política e História nos municípios da Baixada Fluminense. Na época, estavam em discussão as políticas de ações afirmativas para a inclusão de negros nas universidades, e Lu participou de reuniões sobre o assunto. Foi como conheceu a entidade de mulheres negras Criola, que a estimulou a acompanhar as movimentações sociais e pensar o que é entrar para a universidade em meio a esse embate.
A história de como Lu foi aprovada no vestibular na UERJ é digna das mais fantásticas narrativas ficcionais. Em 2004, por falhas de informação no texto do edital de seleção, ela acabou sendo impedida de ingressar na universidade. Segundo o documento, não havia qualquer possibilidade de recurso.
Justo em uma instituição que diz se orgulhar da diversidade de seus alunos, ela enfrentaria desafios para ter acesso à educação pública de qualidade: “A ALERJ e o Ministério Público do Estado do Rio foram acionados, mas nada se resolveu”, lembra ela. Vários processos se amontoaram na Defensoria Pública. Ao menos outros 100 candidatos enfrentavam problema semelhante. De desistência em desistência, longos meses se passaram e sobraram na fila apenas três pessoas. Foram necessários um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Ministério Público, uma audiência pública com a Comissão de Direitos Humanos da Alerj e a participação de instituições negras para a universidade liberar a matrícula dos três estudantes.
Durante a graduação, qualquer tema virava um embate. Alguns professores eram contra o sistema de cotas, que trazia um público diferente para os bancos universitários: negros e pobres, gente disposta a contestar parte do que era ensinado dentro daquelas paredes. Os “objetificados”, antes tema de estudo, agora falavam e produziam conhecimento.
Seu desejo de ser escritora ganhou fôlego quando, ainda na faculdade, tornou-se bolsista do Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro-americanos (PROAFRO) da UERJ. Lá, teve contato com pensadores negros atuantes: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Abdias Nascimento, Milton Santos, Alberto Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez. “Nós da Baixada precisamos naturalizar a presença dessas pessoas no ensino, fazem parte da História do Brasil e não apenas do 20 de novembro. Luis Gama foi um abolicionista negro ímpar e onde está na aula de História? Literatura? Mudança exige informação, leitura, educação que não feche olhos e ouvidos, que não cale alunos”.
Como a literatura entra na sua vida?
Tarde. Em 2007, escrevi um conto para a revista Eparrei, da Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos/SP. “O caminho de Nande” fala sobre uma mãe e sua filha que visitam a avó numa área que tinha sido de quilombo, e conta a história desse lugar. O conto foi publicado, mas não levei essa aventura adiante. Entre 2011 e 2014, escrevi essencialmente poesia. Continuei militando, fiz parte do movimento hip-hop da baixada, e escrevendo sobre consciência social. Consumia pouco material de ficção, e a maior parte vinha pela televisão: sou da geração Arquivo X. Os livros mais acessíveis eram “1984”, do George Orwell, e o “Fahrenheit 451”, do Ray Bradbury. Ficções com forte conotação política. O Fahrenheit, inclusive, me chama muito a atenção, porque conta uma história em que a TV substitui quase todas as fontes de informação, numa sociedade narcotizada e sem livros. Nessa época ainda não existiam movimentos de literaturas independentes na baixada, a internet ainda não era um espaço complicado de acessar.
E como você decidiu escrever ficção?
Em 2015, fui à Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Rodei o dia inteiro pelos pavilhões e não achei protagonistas negros. Foi frustrante. Não sei porque, mas resolvi que ia escrever. Naquele ano, passei a escrever todos os dias de madrugada. A Duologia Brasil 2408 “(In)Verdades” e “(R)Evolução” nasceu, e retornei à Bienal seguinte como autora. Em 2017, que surpresa, havia mais autores da Baixada com o mesmo ímpeto — o de mostrar a nossa escrita.
Nas obras de ficção científica, há componentes dramáticos e éticos em que a tecnologia é o pano de fundo. Como a temática antirracista entra nesse tipo de narrativa?
O afrofuturismo lida com a ficção especulativa, que é uma dimensão sem fronteiras bem definidas entre a ficção científica, fantasia, mistério, distopia, cyberfunk e outros formatos. E raça é a tecnologia, pensando num sentido mais amplo. A ideia do afrofuturismo é rever lugares e discursos. Não apenas sobre pessoas negras, mas todos os discursos. E fazer isso da nossa perspectiva negra. Isso está presente em todos os meus escritos, livros e conteúdo gratuito. Na minha escrita, ainda incorporo várias outras problemáticas que me interessam, como as questões de gênero. Tenho um conto que mescla ficção científica e a realidade das empregadas domésticas, “Ode à Laudelina”. O título faz referência a Laudelina de Campos Melo, fundadora do primeiro sindicato de empregadas domésticas do Brasil. A Ena, protagonista da Duologia Brasil 2048, é uma voz negra que causa a revolução em um país e enxerga a corrupção que afeta os “fora do sistema”. Em Ìségún, outro de meus livros, falo de racismo ambiental e zonas de sacrifício, das empresas poluidoras, extrativismo urbano, humano, das divisórias entre espaço periférico e urbano, e ainda, de como a mitologia africana parece ser a “modernidade” negra que se vive na obra. Já “Conexão” fala da “humanidade negra” , numa história que envolve contato extraterrestre. Para quem não entendeu, lembre Elza Soares e a carne mais barata. Tenho um micro-conto sobre colonização, situação quilombola e a terra onde vivem, seu lar coletivo. Fiz um conto sobre os primórdios da Astronomia nos países africanos, calendários em forma de círculo de pedra marcando um ano de 354 dias guiado por constelações e a lua sete mil anos atrás, relógios solares de 3 mil anos. É isso! Mostro que podemos contar histórias com as vozes e lugares que nos cercam.
Você tem autores que lhe sirvam de referência?
Um bom exemplo é Octavia Butler com a série Xenogenesis e o aclamado Kindred, que chegou ao Brasil em 2017. Imagine o impacto que essa mistura de viagem no tempo com o debate sobre escravidão e suas dores teve na década de 1970, nos EUA, quando o livro foi lançado? Os povos negros desde a Antiguidade têm uma história de vida e tecnologias, vários campos que foram apagados ou de que outras sociedades se apropriaram. Por exemplo, a penicilina. Pensam em Alexander Fleming quando falam da criação desse antibiótico. Mas pinturas antigas no Egito mostram o seu uso inicial[ há registros de que os antigos egípcios aplicavam pão embolorado sobre as feridas]. As universidades de Timbuktu no Mali são do século XI, mal conhecemos, mas o mundo conhece e é patrimônio da UNESCO faz mais de uma década, com revelações extraordinárias sobre astronomia, filosofia, etc. O papiro matemático de Ahmes é outro exemplo, mas melhor que citar é ler. Escrevi um conto chamado “A Era Afrofuturista”. É a história de um menino visitando o Museu do Afrofuturismo e nele vou explicando a ideia do movimento, que é apresentar a voz e a história negra de um modo interessante e que acolhe, faz pensar. Nele abordo as ideias de abduzido, telepata, atravesso anos de história negra, personalidades, heróis e heroínas reais e construo pontes para o futuro via passado e presente. Está disponível online, abrange todas as disciplinas, até química. É assim que produzo literatura antirracista, uma mistura de consciência, contestação, esperança e bom-humor
E como a temática de raça é recebida pelo público?
Sempre existiu resistência, mas prefiro prestar atenção às vozes que se veem finalmente protagonistas. Quando eu comecei em 2015, estava desenvolvendo a literatura periférica que queria ler, porque queria me ver representada também. Fora do Brasil, é diferente. Há mercados para essa literatura. No Brasil, o mito da democracia racial e o recorte econômico vão atrasar e muito nosso olhar sobre isso. Mesmo fora do Brasil, há um embate acalorado. Em 2019, as escritoras Nnedi Okorafor e N. K. Jemisin saíram vencedoras do Hugo Awards, a principal premiação de literatura de ficção científica do mundo. Nesse momento o racismo surge forte, tenta comprar categorias, um escândalo. Em “Racismo e Ficção Científica” de 1988, o autor negro Samuel Delany fala da ocupação dos espaços e do confronto por poder na literatur. Busco sempre não só escrever, mas falar sobre essas questões, pensar sobre elas, conceituar: sou escritora, pedagoga e uma intelectual negra. São espaços de poder que devemos ocupar ou criar para enfim promover mudanças de fato.
Como você analisa a atual leva de autores negras e negros na literatura brasileira?
É um momento bom e o é porque trabalhamos com afinco para isso, para conseguir mostrar o que fazemos, embora ainda haja muitos desafios. Publiquei Sankofia através de financiamento coletivo e saber que tem público, mudança social. é relevante. Receber retorno de atividades feitas em aula, da escola ao espaço acadêmico, é tudo o que essa literatura afrofuturista almeja. Queremos mudar consciências. E é importante demais citar o movimento de literatura que vem ocorrendo nas periferias de um lado ao outro do estado, com suas bibliotecas e encontros literários. O LiteraCaxias é um exemplo cravado no centro de Duque de Caxias, na biblioteca municipal Leonel Brizola. Tem página e grupo no facebook, recomendo ao interessados. A periferia está, aos poucos, consumindo mais literatura feita pelos seus. E isso é ótimo.
Na mídia jornalística, na propaganda e em algumas produções audiovisuais em canais de streaming há, ainda que de forma tímida, a presença de representações sobre as questões raciais. Quer seja pela presença de mais atores e atrizes negras e negros nesses espaços, ou pelos conteúdos específicos nessas plataformas. O que você acha dessa representatividade e como ela se manifesta nesses conteúdos?
Tenho percebido algumas mudanças nesse sentido. Tem uma série num desses canais de streaming em que a protagonista é uma advogada negra. Também há uma série de terror, outra de super-heróis. Tudo isso é muito importante. Precisamos estar nas mesas onde são decididas essas grades de programação. Onde é decidido para quais produções vai o dinheiro. Só assim, novos temas surgirão. Quando você vê o cineasta Jordan Peele produzindo e lançando “Corra!”, por exemplo, você diz, “É isso, eu quero ver mais!”. Mais histórias como essas. Mais atores e produtores negros precisam atuar, ter narrativas de qualidade disponíveis para trabalhar. Uma série de questões que estavam mais restritas aos movimentos negros, de uns tempos pra cá, ganharam espaço no debate público. Já era hora, sobretudo em uma sociedade como a nossa, com tanto racismo direto e indireto.
Foto: A escritora Lu Ain Zaila (Reprodução)
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