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O Brasil não acredita que gente negra faça história, diz pesquisadora

Segundo Ana Flávia Magalhães, da Unb, em fins do século XIX mulheres e homens negros se organizaram para conquistar direitos que não tinham sido assegurados pela abolição

Rafael Ciscati

10 min

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No dia 8 de abril de 1888, um grupo de 5 homens — todos negros — se reuniu na cidade do Rio de Janeiro para formar a primeira diretoria da Sociedade Cooperativa da Raça Negra. Às vésperas da abolição, que seria efetivada no dia 13 do mês seguinte,  a Sociedade se propunha alguns objetivos: qualificar a população negra para integrar o mercado de trabalho e promover a conquista de direitos trabalhistas.

Nos anos que se seguiram à abolição, outros grupos semelhantes surgiram no Brasil — muitos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Esquecidas por muito tempo pela historiografia, essas organizações davam continuidade às lutas travadas por lideranças negras antes do 13 de maio. “No pós-abolição, esses grupos lutavam para recolocar esses sujeitos negros em espaços de liberdade”, explica a historiadora Ana Flávia Magalhães, professora da Universidade de Brasília (Unb)

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Segundo Ana Flávia, o olhar para o protagonismo negro no período que se segue ao 13 de maio é ainda recente. Tradicionalmente, a historiografia compreendeu esse como um momento de arrefecimento das disputas raciais: “Criou-se um mito de que, passada a abolição, criou-se no Brasil uma sociedade racialmente harmônica”, conta a professora. Criou-se, igualmente, a falsa impressão de que lideranças negras, ativas na luta por liberdade, teriam saído de cena.

A existência de grupos como a Sociedade Cooperativa da Raça Negra, ou a Liga dos Homens de Cor — fundada ainda um pouco antes —  demonstra que não, conta a historiadora. Sua existência mostra como, em fins do século XIX, sujeitos negros se organizavam para cobrar direitos que a abolição não assegurara. Na perspectiva dessas organizações, o exercício pleno da cidadania estava vinculado ao estabelecimento de direitos trabalhistas, capazes de afastá-los da ordem escravista. Segunda Ana, o fato de esse protagonismo negro ter sido esquecido dá pistas de como o Brasil de hoje enxerga questões raciais: “O Brasil não acredita que gente negra faça história”, afirma.

Brasil de Direitos: A senhora destaca que, às vésperas da abolição, a população negra era heterogênea. A maior parte dela, livre ou liberta. O que a abolição representou para essa população negra livre?
Ana Flávia Magalhães: No momento do 13 de maio,a maioria  da população negra brasileira estava na condição de livre ou liberto. Isso,porém,  precisa ser observado não como uma prova de que o Brasil vivera uma escravidão branda. Houve ampla participação de homens e mulheres negros na luta pela abolição. Essa participação serve como uma pista importante para a gente entender a historicidade do racismo no Brasil. Apesar de livres, a todo momento essas pessoas tinham sua cidadania posta à prova e cerceada. Ao longo do século XIX, foram vários os casos no Brasil de reescravização de libertos e de escravização de gente nascida livre. Isso foi pauta de denuncia nos jornais abolicionistas. O 13 de maio, então,  resolve institucionalmente uma fragilidade que impactava a vida não so dos escravizados, mas dos livres e libertos. Com a abolição, deixa de existir um dispositivo legal que justificasse a permanência de pessoas na condição de escravizados. Essa universalização da liberdade entre os habitantes do brasil cria, legalmente, um dispositivo de luta. Porque muitdas das violências  praticadas contra a população negra eram legitimadas pela vigencia da escravidão. A escravidão  àquela altura, já era vista como algo que envergonhava a nação perante o mundo. A abolição representou uma esperança de garantia de que essas interdições às populações negras livres teriam fim.

Nos seus trabalhos, a senhora conta como, passado o 13 de maio, lideranças negras que participaram da abolição continuaram a lutar por direitos. Como isso aconteceu?
O 13 de maio foi uma demanda vivenciada e elaborada por diferentes segmentos. Não é por acaso que, pouco depois, a data vai ser trabalhada e discutida por clubes sociais, irmandades religiosas e associações de trabalhadores. Muitas dessas organizações são formadas, majoritariamente, por pessoas negras — ainda que algumas não digam isso no nome. Membros dessas organizações participaram da luta pela abolição. No pós-abolição, se envolvem com as lutas trabalhistas do 1 de maio.

Quais eram as demandas dessas associações?
Grande parte delas tinha a preocupação de promover a alfabetização e, em alguns casos , qualificar profissionalmente os seus integrantes. Essa é uma experiência que começa ainda da década de 1880. Mas a gente tem uma lacuna na historiografia . Nos ultimos anos da abolição e do pós-abolição, houve um apagamento. O protagonismo dessas organizações foi esquecido.  Entre as organizações esquecidas está a Sociedade  Cooperativa da Raça Negra. Nascida nas vésperas da abolição, no Rio de Janeiro, ela pretendia combater o desemprego dessa população liberta, ou negra livre, quando a escravidão terminasse. É preciso entender que havia um cenário complexo: para algumas pessoas, o fim  da escravidão era também o fim do espaço da população negra no mercado de trabalho. O governo empreendeu um esforço de reeoanização da composição racial da massa trabalhadora, ao promover a vinda ao Brasil de trabalhadores imigrantes europeus. A Sociedade Cooperativa da Raça Negra  tinha o objetivo de demonstrar a aptidão dos trabalhadores negros, de modo a garantir sua inserção no mercado de trabalho.

Na visão dessas associações, o caminho para a cidadania passava pela integração ao mundo do trabalho?
Isso era algo muito nítido, muito visível. Esses grupos adotam estratégias como o estabelecimento de escolas noturnas de primeiras letras, e promoviam leituras de textos literários. Buscavam formar uma espécie de erudição operária. Isso era feito por organizações que reafirmavam a identidade negra, e também por associações em que negros eram maioria — embora essa questão identitária não estivesse explícita no nome.

Essas associações tiveram lideranças célebres?
Um nome que precisa ser reconhecido  é o de  Vicente de Souza. Souza é um homem negro nascido livre na Bahia, que se muda para o Rio de Janeiro na companhia de uma espécie de de tutor. Ali, faz o curso de medicina. Nesse processo, se afirma como republicano e abolicionista.  Ele passa a ser uma  dessas figuras envolvidas, durante a luta abolicionaita, com uma série de clubes operários, nesse processo de difusão das expectativas do fim da abolição. Segue trabalhando  pela superação dos estigmas da escravidão no pós-abolição. É uma figura que, durante os debates abolicionistas, fala  abertamente sobre o problema do racismo. Mas, passado o 13 de maio, entendendo o quanto a pessoa negra era associada a escravidão, Souza passa a falar sobre a  valorização do que ele chamava de “trabalhador universal”. Ele deixa de falar sobre a composição racial da classe trabalhadora. Isso era uma estratégia: falar de características raciais era correr o risco de alimentar a discriminação contra essas figuras.  Buscava-seo entendimento de que todo trabalhador brasileiro era digno dos direitos que a classe trabalhadora conquistava. Houve um silenciamento do debate racial entre esses clubes,  mas isso não se deu por causa do fim das práticas de discriminação e racismo. Esses grupos lutavam para recolocar esses sujeitos negros em espaços de liberdade.

Essas associações foram esquecidas pelos historiadores?
Isso aconteceu por mais de uma razão. No final do século XIX surgiu uma associação chamada Guarda Negra da Redentora. Era uma associação monarquista, que defendia um terceiro reinado, da princesa Isabel. Na época, monarquistas e republicanos estavam longe de ser comedidos. Numa dada ocasião, houve um confronto entre esses grupos em que a Guarda Negra se envolveu. Criou-se, a partir disso, a narrativa de que as pessoas negras que participaram desse conflito, disputando o jogo político, eram meros capangas dos monarquista brancos. Como se essas pessoas negras não tivessem experiência política, capacidade de organização. Criminaliza-se a Guarda Negra, e acaba-se por apagar outras experiências políticas nascidas no período, como a do Clube Republicano dos Homens de Cor.

Há um protagonismo negro que foi apagado?
Sem dúvida. Por anos, a história do Basil foi explicada da seguinte maneira: o país viveu um período escravista. Finda a escravidão, é posta em prática uma política de imigração de viés racista. Segundo essa concepção da história, é só com a chegada do imigrante italiano que a gente consegue ter uma dinâmica mínima de relações de trabalho e de organizações sindicais. A partir daí, a gente segue falando sobre lutas por direitos trabalhistas. Os sujeitos negros, quando aparecem nessa história, surgem em meio a uma massa de anônimos. Nunca como sujeitos da história do Brasil. A gente não consegue pensar a ação histórica desses sujeitos sociais. No Brasil hoje, muita gente não consegue ainda apontar os nomes dos ativistas que desmontaram o mito da democracia racial. A gente sabe muito pouco sobre quem foi Lelia Gonzales, sobre quem foi Abdias Nascimento, sobre quem é Edson Cardoso, Sueli Carneiro. Sobre quem foi Luiza Bairros — que foi ministra do governo Dilma mas que, antes disso, foi uma dessas figuras centrais na luta pela redemocratização. Porque a gente não acredita que gente negra faz história.

Hoje, há um número crescente de trabalhos a respeito do protagonismo negro na luta abolicionista. Esse olhar começa a ser lançado, também, para o período que se segue ao 13 de maio?
Essa é a grande questão. Em termos de historiografia, um dos campos que mais cresce são os estudos do pós-abolição. Essas pesquisas estão interessadas em entender os caminhos da liberdade antes da abolição, e o que aconteceu com a população negra após o 13 de maio. Em especial no imediato pós-abolição, que vai até a década de 1930.  Porque a narrativa que o brasil criou para si foi a seguinte — passados mais de três séculos de escravidão, foi feita a abolição e com ela se gerou uma sociedade racialmente harmônica. Tão harmônica que as lutas da população negra perderam relevância. Em termos de pesquisa histórica, a população  negra foi apresentada como uma espécie de resíduo do período escravista, e não como parte central da população brasileira. Isso  acontece também com as população indígenas, que são vistas como residuais do período colonial. A gente tem um déficit muito grande de pesquisas sobre a população indígena no século XIX. Essas novas pesquisas promovem uma reviravolta. Porque essas não batem com o que a gente se acostumou a pensar. Vinha-se de uma narrativa que falava de anomia, de não capacidade, da condição de não sujeito histórico.

Foto de topo: a professora Ana Flávia Magalhães (Webert da Cruz / arquivo pessoal)

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