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Nos quilombos, falta de médico à água potável, diz Conaq

Entidade cobra, no Supremo Tribunal Federal (STF), que governo crie plano de combate à pandemia entre quilombolas. Letalidade do vírus é maior nessa população

Rafael Ciscati

7 min

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Desde o começo da pandemia de Covid-19 no Brasil, em fevereiro deste ano, cerca de 160 quilombolas morreram vítimas da nova doença. A estimativa é da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que registra o avanço da pandemia entre essas populações em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). Os quilombolas não aparecem nas estatísticas divulgadas pelo ministério da Saúde. Os números revelam a gravidade do quadro: em meio a esse grupo, a taxa de letalidade do vírus é de 3,6%. Maior que na população geral, em que a letalidade é de 3,1%.

Para a advogada Vercilene Dias, assessora jurídica da Conaq e da Terra de Direitos, a letalidade alta é reflexo da desassistência do Estado. “Na maioria das comunidades quilombolas, não há unidades básicas de saúde. Quando há, elas não têm médicos”, afirma. As dificuldades não se restringem à área da saúde: como a maioria dos quilombos não passou pelo processo de regularização fundiária, são frequentes os conflitos por terra, que continuaram durante a pandemia. Em algumas regiões, conta Vercilene, as pessoas têm dificuldade para acessar água potável.

No último dia 09, a Conaq levou a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF). A entidade cobra que o governo desenhe um plano de enfrentamento da pandemia nos quilombos, e trace estratégias que garantam a segurança alimentar dessas populações.

Brasil de Direitos: O governo é negligente em relação às populações quilombolas?
Vercilene Dias: Desde 2016, a gente observa uma grande queda nos investimentos nas políticas públicas para as comunidades quilombolas. De 2019 para 2020, muitas foram, na prática, extintas. Em 2020, não foram feitos investimento na titulação de territórios quilombolas. E esse é o primeiro passo para que esses territórios tenham algumas segurança. Durante a pandemia, houve um grande índice de invasão a essa terras. Isso dificulta a defesa do território, e dificulta criar medidas para conter a propagação do vírus.

A pandemia agravou esse quadro de desassistência?
Ele ficou mais evidente. Na maioria das comunidades quilombolas, não há unidades básicas de saúde (UBS). Onde há, não  tem médico ou equipamento para o médico trabalhar. Os atendimento de saúde são feitos por agentes comunitários, que são moradores da região. E eles não receberam equipamentos de proteção individual para fazer esse trabalho. Há casos emblemáticos. Na comunidade Kalunga, em Goiás, moram mais de 900 famílias. Quase 5 mil pessoas vivendo na zona rural. Há uma única UBS, e não há médico. O médico aparece uma vez por semana, quando aparece. O mesmo acontecia em Moju, no Pará. Lá, o  governo passou a oferecer uma espécie de atendimento itinerante — passava um ônibus buscando pessoas que tinham apresentado sintomas da Covid-19. Elas iam todas juntas, ser atendidas na cidade. Juntas, estivessem infectadas ou não. Acaba que as pessoas se contaminavam no caminho para a consulta. Além disso, é preciso levar em conta que há muitos casos de diabetes, hipertensão ou outros problemas pré-existentes entre quilombolas. Isso tudo deixa essas populações vulneráveis. Para completar, muitas comunidades têm dificuldades de acesso à água potável. Como redobrar cuidados de higiene se não há água disponível?

Na ausência do Estado, os quilombos tiveram de criar estratégias próprias para se proteger?
Algumas comunidades se organizaram por conta própria. Há exemplos dessas ações autônomas no Vale do Ribeira, no sul do Estado de São Paulo. No quilombo Ivaporunduva, a comunidade criou protocolos de isolamento. Eles vivem do turismo comunitário. Mas ficou estabelecido que não seriam recebidos turistas. O mesmo se  fez no quilombo Kalunga, em Goiás. Mas, o resultado disso é que a renda das pessoas caiu. A população que vivia do turismo fica sem meios de sobreviver. Se isolar dentro dos quilombos foi a forma que essas comunidades encontraram de se proteger. No Pará, a gente teve problemas com esse tipo de isolamento. Como a maioria dos quilombos não é titulada, há muitos casos de fazendas de grileiros que existem dentro dessas terras. 

Aumentou o número de conflitos por terra?
Recebemos um número maior de reclamações relacionadas a conflitos com fazendeiros e grileiros. E de casos de queimadas dentro dos territórios. 

Por que a Conaq decidiu levar essa questão ao Supremo Tribunal Federal?
Logo no início da pandemia,  a Conaq recebeu muitas reclamações sobre dificuldades de acesso ao auxílio emergencial.  Havia, também,queixas relacionadas a falta de cestas básicas, que não chegavam às comunidades. O atendimento de saúde era falho e faltavam medicamentos — mesmo aqueles já usados pela população, para tratar doenças crônicas. Alguns relatos falavam, ainda, de negação de atendimento nas cidades. Tentamos estabelecer um diálogo com o governo, para buscar soluções. Mas nada se efetivou. Ao mesmo tempo, notamos que já havia ações civis públicas, movidas pela defensoria pública, relativas às dificuldades de acesso ao auxílio emergencial. Não é sempre que há internet ou telefone nos quilombos. E, para se cadastrar e receber o auxílio, é preciso ter tudo isso. As decisões judiciais, em resposta a essas ações, eram favoráveis aos quilombolas. Mas as soluções, ainda assim, não eram implementadas. A Conaq achou, diante disso, quer era preciso ir ao STF, para tentar garantir respeito mínimo aos direitos dos povos quilombolas. Foi mais ou menos na mesma época em que o STF emitiu decisão favorável em relação a ADPF indígena, protocolada pela Apib. Aquele resultado favorável nos deu fôlego novo para seguir na luta.

Quais são suas principais demandas?
Na ADPF, só incluímos demandas relacionadas à pandemia. São todos pedidos urgentes, portanto. Queremos garantia de atendimento de saúde e acesso a materiais de higiene. Precisamos, também, da implementação de uma política de segurança alimentar. E da construção de um plano de combate aos efeitos da pandemia nos territórios quilombolas. Um plano que contemple toda essa série de demandas e necessidades.

Quais os próximos passos?
Agora, a ação está nas mãos do ministro Marco Aurélio. Esperamos que ele tome uma decisão liminar, contemplando nossas demandas. 

Um levantamento elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) indicou que, apesar da pandemia, o governo não fez uso da maior parte da verba que tinha disponível para comprar e distribuir alimentos às populações tradicionais. Faltou alimento nos quilombos?
É preciso entender que há realidades diversas entre quilombos. Há aqueles que são titulados e têm acesso à crédito para produzir. O quilombo Ivaporunduva, em São Paulo, tem uma produção de alimentos enorme. Mas esse não é o caso da maioria. A maioria sofre ainda com disputa por terras, tem produção agrícola pequena e que varia conforme a época do ano. Logo no início da pandemia, a Conaq tentou dialogar com o governo a respeito dessa questão da segurança alimentar. Também agimos: com a ajuda de parceiros, conseguimos distribuir mais de 40 mil cestas básicas. Mas isso não é o bastante. A fome é uma questão que preocupa. O levantamento do Inesc dá a dimensão do descaso do governo em relação à saúde e à sobrevivência cultural e física dessas populações.  É preocupante. 

Foto de topo: a advogada Vercilene Dias (arquivo pessoal)

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