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Candidaturas trans batem recorde em 2020, mas falta apoio de partidos, diz Antra

Levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais indica aumento de 209% no número de candidaturas em relação a 2016

Rafael Ciscati

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A maranhense Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), conta que tomou um pequeno susto ao fim das últimas eleições municipais, em 2016. Meses depois de divulgados os resultados da disputa, diversos candidatos e candidatas trans decidiram procurá-la em busca de orientação. “A maioria não tinha recebido recursos do partido. Por isso, ficaram surpresos quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cobrou a prestação de contas da campanha”. Sem orientação das siglas, não sabiam como proceder. “A Antra também não tinha experiência nessa área. Tivemos que estudar para ajudar essas pessoas”, conta ela.

Naquele ano , 89 pessoas trans tinham entrado na disputa. Dessas, oito foram eleitas. Passados quatro anos, houve mudanças sensíveis nesse cenário: o número de candidaturas deu um salto. Em 2020, o Mapeamento de Candidaturas de Travestis, Mulheres Transexuais, Homens Trans e Demais Pessoas Trans, organizado pela Antra, mostra que as candidatas e candidatos trans chegam a 281 — um aumento de mais de 200% em relação ao pleito anterior.

Lançado no final de outubro, o mapeamento indica que há pluralidade de visões políticas em meio ao grupo. A maioria das candidaturas é de mulheres trans: elas somam 255. Há 16 homens trans e 10 candidates (nesse caso, a Antra opta por usar o gênero neutro) com outras identidades trans. Das candidaturas mapeadas, 51% disputam o pleito por partidos de esquerda. Outros 38,5%, estão abrigadas em partidos de direita. Há duas candidaturas a prefeituras e uma candidata à vice-prefeita. A imensa maioria concorre, pela primeira vez, a um cargo eletivo: “E o faz por força de empenho individual”, afirma Simpson.

Na leitura da Antra, falta suporte das siglas para que essas candidatas e candidatos ganhem fôlego. “Faltou apoio dos partidos no passado. Falta apoio no presente. E faltará ainda por muito tempo”, diz Simpson. A questão, diz ela, remete à forma como os partidos são estruturados. “No caso das candidaturas trans, não há um empenho do partido em abraçar as causas dessa população, nem um desejo de apostar nesses novos nomes”, afirma. A falta de empenho se traduz, inclusive, na falta de recursos para financiamento de campanha: segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, 80% dos recursos do fundo eleitoral e do fundo partidário são concentrados, pelos partidos, nas campanhas de 0,8% dos candidatos. Aqueles que, na avaliação dos caciques, têm maiores chances de ganhar.

A disparada no número de nomes em 2020, diz Keila, representa uma tentativa de reação a tempos difíceis. Hoje, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. De acordo com pesquisa da própria Antra, foram 127 mortes em 2019. As candidaturas são também um sinal de maior interesse pela política institucional. “Cresceu o interesse por conhecer os mecanismos da política partidária”, opina a ativista.

Brasil de Direitos: O Mapeamento da Antra contabilizou aumento de 209% no número de candidaturas trans em relação às últimas eleições municipais. A que se deve esse crescimento?
Keila Simpson: O que mais nos surpreendeu nessas candidaturas é que boa parte delas é resultado de esforço individual. Isso, apesar de a politica ser construída coletivamente. São candidaturas marcadas pelo desejo de reagir a um cenário adverso, de recrudescimento da violência contra a população trans. Essa é uma população que sempre foi muito politizada. Eu costumo dizer que, para nos representar, não é preciso hastear aquela bandeira rosa, branca e azul — a bandeira do orgulho  trans. A bandeira somos nós mesmas. Mas eu noto que, nos últimos anos, cresceu o interesse por conhecer os mecanismos da política partidária. Motivada pelo momento politico, essa população entendeu que precisa disputar a política partidária, para cobrar direitos que ainda lhe são interditados. Entende que esse é o momento de se envolver na política institucional para trabalhar pela promoção de sua cidadania.

Nas redes de vocês, alguns comentários se mostraram surpresos quanto ao número de candidaturas em partidos de direita, associados a maior conservadorismo de valores. Há incoerência?
A Antra tem um caráter apartidário. Não damos destaque a candidaturas individuais e entendemos que todas são importantes, não importa qual sua localização no espectro político. Entendemos que alguns partidos não compartilham dos mesmos ideais que os nossos. Mas, como associação, achamos que é importante essas candidaturas existirem. Isso dito, é importante lembrar que a mecânica de política local tem muitas particularidades. No cenário local, os partidos e suas muitas coligações seguem um raciocínio diferente daquele que aplicam ao plano federal. Vimos isso no levantamento passado, feito durante as eleições de 2016. Havia candidatas filiadas a partidos de direita, mas que defendiam políticas tradicionalmente associadas aos ideais de esquerda. Mesmo em 2020, é importante mergulhar fundo nessas candidaturas para compreender suas especificidades. Costumo dizer que se candidatar é um primeiro passo. Uma vez dentro dos partidos, essas pessoas terão de aproveitar esse espaço para disputar ideias e aprender a fazer politica lá dentro.

Em 2016, das 89 candidaturas mapeadas, 8 se elegeram. Quais os obstáculos?
Faltava apoio em 2016, falta apoio em 2020, faltará apoio em 2024. As candidaturas trans, como eu disse, devem muito ao empenho individual das candidatas e candidatos. Não são resultado do interesse dos partidos por apoiar as causas que importam para essas populações. Mesmo hoje — na TV, durante o horário eleitoral, raramente eu vejo as pessoas trans que saíram candidatas. Além de não haver dinheiro para campanha, falta acesso.  E falta suporte formativo. Nas eleições de 2016, diversas e candidatos trans procuraram a Antra, logo depois de terminada a disputa. Elas não tinham recebido doações para fazer campanha, nem tinham recebido dinheiro do partido. Não sabiam que era preciso prestar contas para a justiça eleitoral. Terminada a campanha, foram viver suas vidas. Quando chegou a cobrança do TSE, ficaram sem saber o que fazer e vieram nos pedir orientação. Os partidos não ofereceram formação mínima. Entendo que isso pode ter acontecido, também, com candidatos cisgênero. Mas, para mim, é um sintoma de que falta empenho das legendas. Hoje, a Antra estuda organizar, para depois das eleições, algumas oficinas de formação política.

Como vai funcionar essa formação política?
Ainda estamos desenhando. O ideal seria que essas oficinas acontecessem presencialmente. Nossa ideia envolve convidar pessoas trans eleitas para conversar sobre política. Falar sobre o espectro politico, e fazer uma formação básica, que os partidos deveriam organizar mas não o fazem. E se o partido não forma e  a escola não educa, quem ocupa esse espaço são as igrejas neopentecostais. Pode ser muito negativo ter essa formação politica informada pelo viés religioso. É uma inversão muito grande dentro de um Estado laico.

As administrações municipais, hoje, conhecem as necessidades dessa população?
A realidade não é uniforme. Há municípios com legislação própria voltada à proteção e promoção de direitos da população LGBTI+. Aqui em Salvador, semanas atrás, foi sancionada uma lei que proíbe a discriminação por orientação sexual e de gênero em lugares públicos. Essa era uma demanda antiga do movimento social e é importante que tenha sido conquistada. Outras cidades pelo Brasil têm medidas similares. Mas o Brasil é imenso, há cidades ainda muito carentes de ações como essa.

Foto de topo: reprodução Instagram

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