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Partidos políticos não discutem o combate ao racismo, diz pesquisador

Segundo o cientista político Carlos Machado, siglas de grande porte não veem candidaturas negras como viáveis eleitoralmente

Rafael Ciscati

9 min

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As câmaras municipais de algumas das maiores cidades brasileiras saíram mais diversas das eleições deste ano: nas 10 cidades com maior número de eleitores, cresceu o número de vereadores e vereadoras negros e negras. O avanço é importante mas, numericamente, tímido: nesses municípios, vereadores negros passaram de 149 em 2016 para 155 em 2020. Nos legislativos dessas 10 maiores cidades, a população negra — que compreende 56% da população brasileira — continuará subprepresentada: vereadores negros ocuparão 37% das cadeiras.

Para mudar esse quadro, argumenta o cientista político Carlos Machado, da Universidade de Brasília (UNB), é preciso repensar a lógica que organiza os partidos políticos. Há quase uma década, Machado e o colega Luiz Augusto Campos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) , tentam entender os mecanismos que dificultam — ou mesmo  impedem — a eleição de candidatos e candidatas negros e negras. O conjunto dessas pesquisas foi condensado no volume Raça e Eleições no Brasil, lançado no final deste mês.

>>Número de veradores negros cresce 4% nas 10 cidades com mais eleitores

Os achados da dupla sugerem que há uma distribuição desigual de candidaturas negras entre os partidos. De maneira geral, elas tendem a se concentrar nas legendas de pequeno porte: justamente aqueles que têm menos acesso a recursos e que oferecem a esses candidatos piores condições para a disputa. “Não basta ter vários candidatos negros concorrendo. É importante que esses candidatos estejam em posições que lhes permita ter acesso a recursos”, explica Machado. Já nos partidos de grande porte, o mais comum é que os caciques prefiram apostar em candidatos que, segundo seus critérios, reúnam os atributos de um político típico, com maiores chances de se eleger: tradicionalmente, homens brancos e de classe social mais abastada. “Candidaturas negras não são vistas como eleitoralmente viáveis. Mas isso acontece porque elas não puderam ser testadas no passado”, afirma Machado. “Os eleitores não tiveram a chance de votar nelas”.

Há pressão, dentro das legendas, para que isso mude: “Ainda assim, não identifico um partido que de fato mobilize essa discussão de combate ao racismo”.

Brasil de Direitos – Os partidos políticos impõem entraves à eleição de candidatos negros?
Carlos Machado –
Há disparidade na maneira como as candidaturas negras são distribuídas. Partidos de menor porte costumam ter uma proporção maior de candidaturas não brancas. Já os partidos de maior porte tendem a apresentar uma quantidade maior de candidaturas brancas. E isso não varia, necessariamente, de acordo com a visão ideológica da sigla — acontece em partidos de direita e de esquerda. Por partidos de pequeno porte eu me refiro a siglas como PSTU, PCO, PCB à esquerda; . E PSC, PRB ou próprio PSL anteriormente — hoje em dia ele já tem outra caracterização— à direita. Essa distribuição, que concentra candidaturas negras em pequenos partidos, importa porque, até as eleições de 2016, era necessário que o partido ou coligação ultrapassasse o coeficiente eleitoral para se eleger. Fazer parte de um partido de grande porte era  algo central e necessário para a eleição dos candidatos. Nisso, já há um entrave à viabilização desses nomes, que diminui suas chances de serem eleitos. Por isso, não basta ter vários candidatos negros disputando uma eleição. É importante que esses candidatos negros também estejam em posições estrategicamente importantes, de modo a ter chances reais de eleição.

Mas o que acontece nos grandes partidos? Eles resistem a essas candidaturas?
Trata-se de  uma questão histórica. A sociedade brasileira é organizada por uma estrutura racista e racializante. Hoje, essa estrutura é mais frontalmente enfrentada. Mas a formação e socialização dos atuais caciques ocorreu em um contexto histórico diferente. São lideranças que têm mais de 50 anos, e que foram socializadas num momento em que predominava a ideia de que não existiam desigualdades raciais no país. Não se percebia, por isso, a importância de eleger representantes negros. Nesse contexto, os líderes partidários olham para os seus quadros e avaliam quem, segundo seus critérios, tem maiores chances de se eleger. A história política indica que, predominantemente, são eleitos homens que reúnem uma série de atributos: são brancos e nasceram em uma classe social mais alta. É nesse perfil que os partidos investem seus recursos. São candidaturas vistas como de eleição mais fácil. Esse raciocínio reduz, ao longo do tempo, as chances de que candidaturas negras venham a surgir. Essas candidaturas acabam nunca sendo testadas. O quadro que temos hoje decorre desse preconceito dos líderes políticos.

Vira uma profecia autorealizada.
Exatamente. Para desafiar isso, é preciso existir uma força externa que gere mudanças. O movimento negro tem uma importância central tem ativar essas candidaturas em diferentes partidos, tanto à direita quanto à esquerda.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal determinou que os recursos do fundo eleitoral deveriam ser distribuídos de maneira proporcional nos partidos, entre candidatos negros e não negros. Os resultados do primeiro turno das eleições já permitem avaliar os reflexos dessa decisão? Houve avanços? (o entrevistado conversou com a Brasil de Direitos no dia 16/11)
É preciso tomar cuidado com essa discussão. Primeiro, historicamente, acesso a recursos de campanha é um aspecto central para a gente explicar o sucesso de uma candidatura. a candidaturas bem votadas são as que têm acesso a financiamento mais elevado. E somente o ápice, as mais competitivas, é que conseguem de eleger. A maior parte das candidaturas não tem a mínima chance de concorrer. Num universo de 560 mil candidatos, 100 mil candidatos estão de fato concorrendo, têm chances de vitória. A maior parte das pessoas só está compondo a lista. E o acesso a recurso de campanha é um aspecto fundamental para diferenciar essas pessoas. É importante a medida de reservar recursos públicos para garantir um processo mais igualitário. Ou, para pelo menos, reduzir  as desigualdades de oportunidade de entrada no processo político. A questão é como isso é implementado, e quais as condições de fiscalização.

Como assim?
Hoje, os partidos têm muita autonomia para utilizar esse recurso. É assim que funciona o próprio sistema de financiamento. Pelas normas do TSE, o partido pode pegar 30% do valor de seu fundo de campanha e alocar em um candidato a vice-prefeito negro. Isso aconteceu em relação à destinação de fundo de campanha para mulheres nas eleições de 2018. Houve casos de mulheres que tinham cargo de vice-governadoras, e que receberam recursos, utilizados para eleger seu cabeça de chapa. Outra questão é o fato de que várias candidaturas para vereador, no Brasil todo, possivelmente não receberam 1 centavo do fundo de campanha. Porque o fundo partidário é razoavelmente restrito, e costuma ser alocado em poucos candidatos. Geralmente, o dinheiro vai para o candidato que disputa uma eleição majoritária (no caso de 2020, candidatos a prefeito), ou para aqueles que disputam eleições nos municípios mais importantes do ponto de vista populacional. Se a gente olhar para um município com 5 mil eleitores, não vai ser de se estranhar que nenhum dos candidatos ali tenha recebido dinheiro do Fundo Eleitoral. Para avaliar os efeitos dessa decisão, o mais importante é analisar as mudanças nos municípios de maior porte. Possivelmente, nas maiores cidades, houve ganho sim para as candidaturas de homens e mulheres negros, que de outra forma não teriam condições de competir com seus pares homens brancos.

Ao longo de 2020, manifestações de caráter antirracista eclodiram em grandes cidades brasileiras. Elas influenciaram os resultados das eleições?
Se a gente falar dos protestos antirracistas que ocorreram durante a pandemia, os efeitos podem ter sido bastante específicos. Acho cedo para afirmar com certeza, mas pode ter havido um efeito das manifestações nas capitais e nas cidades de maior porte. Dificilmente esses efeitos alcançam as cidades de menor porte. Por outro lado, é preciso pensar o seguinte: as eleições municipais, e o jogo da política, não são um jogo principista. Elas são um processo. As candidaturas que surgem hoje não são candidaturas que começaram a ser gestadas nesse ano. São candidaturas que estão sendo organizadas ao longo dos anos. seja com militância partidária, seja com a auto-organização desses candidatos.

Em um vídeo, disponível na internet, o senhor se diz surpreso que nenhum partido brasileiro tenha assumido a bandeira do antirracismo. Na sua avaliação, falta comprometimento das siglas?
Sendo o racismo um fator estruturante na sociedade brasileira, que profundamente afeta a maior parte da população, me chama bastante atenção que até hoje não surgiu um partido que capitalizasse essa discussão, até mesmo para obter ganhos políticos. Nas eleições de 2020, existe certa percepção de que há um avanço de setores antirracistas na representação política.  Ainda assim, não identifico um partido que de fato mobilize essa discussão de combate ao racismo. Quero tomar por exemplo o PSOL. Há uma série de mulheres negras que foram eleitas pelo partido. Sobretudo nas capitais. São nomes bastante identificáveis, até mesmo pelo baixíssimo número que elas representam, o que facilita essa identificação. Mas muitas dessas candidaturas aconteceram a despeito do PSOL. Esse é um caso interessante porque o PSOL tem uma característica muito forte e que se acentua desde 2018, que é a de lançar candidaturas que não são orgânicas ao partido. Elas surgem e se organizam a partir de movimentos que utilizam o partido de forma instrumental. Trata-se de um movimento externo ao partido, e que pressiona por mudanças. Em eleições passadas, o PSOL era um partido composto principalmente de candidaturas brancas. Mas isso vai se modificando. Uma mudança nesse sentido acontece também no PT. Era um partido com uma quantidade muito grande de candidatos brancos. Em 2018, já começou a mudar isso, e a tendência se confirmou em 2020. Ainda assim, em nenhum dos dois casos há um encampamento mais firme do enfrentamento às desigualdades raciais. Esse é um processo de longo prazo. É necessária pressão interna para o partido mudar. Isso ainda não aconteceu.

Foto de topo: o cientista político Carlos Machado (reprodução Facebook)

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