Fome: políticas de segurança alimentar foram desmontadas, diz pesquisador
Durante a pandemia de covid-19, mais da metade das famílias brasileiras não teve acesso pleno à comida. Para o economista Walter Belik, fome é resultado de inação de governos
Rafael Ciscati
7 min
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Mais da metade das famílias brasileiras não soube, em algum momento de 2020, se teria comida para colocar na mesa. O número consta em estudo divulgado nesta semana pela Rede Brasileira de Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssam). De acordo com o grupo, a insegurança alimentar grave — quando as pessoas passam fome — afetou 9% da população brasileira no ano passado. Foram mais de 19 milhões de brasileiros, o maior número dos últimos 17 anos. No mesmo período, mais de 55% dos domicílios enfrentaram algum grau de insegurança alimentar — quando não há acesso pleno e permanente a alimentos. De acordo com a rede, em meio à pandemia de covid-19, o Brasil vive “ um pico epidêmico de fome”. Na avaliação do economista Walter Belik, a crise social só pode ser parcialmente atribuída ao novo vírus. O problema essencial, afirma, é politico: “O governo atual é despreparado para pensar políticas de segurança alimentar”.
Professor da Universidade Estadual de Campinas, Belik fez parte do grupo que desenhou, em 2003, o programa Fome Zero, carro chefe do governo Lula no combate à insegurança alimetar. Elogiado internacionalmente, o programa foi importante, em conjunto com políticas de combate à pobreza, para garantir que o Brasil saísse do Mapa da Fome. O documento, elaborado pela ONU, relaciona aqueles países em que a insegurança alimentar grave afeta pelo menos 5% da população. A conquista, alcançada em 2013, representou o sucesso de esforços empreendidos desde os anos 1990. Desde 2017, no entanto, Belik diz observar um rápido desmonte das políticas públicas para o setor: “Ganhou destaque uma ideologia neoliberal, que diminuiu espaço para políticas sociais”.
Desde 2017, destaca ele, caem os investimento federais em iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PPA), que compra artigos de pequenos produtores e distribui para populações vulneráveis. De R$1,2 bi investido em 2013, o orçamento do programa caiu para R$253 milhões em 2018. Nesse meio tempo, o governo também abandou a política de criação de estoques reguladores, importantes para evitar a disparada nos preços dos alimentos.
A crise agudizou a partir de 2018. Os dados da Rede Penssan mostram que o número de pessoas com fome passou a crescer aceleradamente a partir daquele ano: um crescimento anual de cerca de 27%. O problema é nacional, mas há diferenças regionais importantes: a insegurança alimentar grave afetou 18,1% da população da região norte (o dobro da média nacional) e 13,8% dos lares do nordeste. Sofrem mais, também, as pessoas que vivem no campo, as pessoas negras e as mulheres. “Quando você desdobra os dados, o cenário é chocante”, diz Belik
Brasil de Direitos: Os dados da pesquisa mostram que a fome avança acelederamente no Brasil desde 2018. O problema já era grave mesmo antes da pandemia?
Walter Belik: Eu diria que o problema é até um pouco anterior a isso. No final de 2017, início de 2018, foi feita uma pesquisa suplementar à Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. É essa pesquisa que diz qual a parcela da população que vive em situação de insegurança alimentar. A pesquisa concluiu que essa parcela equivalia a 4,6% dos brasileiros. Dizia-se, na época, que o Brasil corria o risco de voltar ao Mapa da Fome. O trabalho da Rede PENSSAN mostrou dois dados que precisam ser destacado. Um deles diz que, no ano passado, a insegurança alimentar grave bateu os 9%. Há outra novidade: eles recalcularam os dados da POF 2017-2018. Fizeram ajustes na conta anterior. Concluíram que, já naquela época, em 2017, a insegurança alimentar grave afetava 5,8% da população. Então já ali, está mais ou menos claro que o Brasil havia retornado ao Mapa da Fome.
O que explica esse avanço da fome a partir de 2018?
Houve um desmonte das políticas de segurança alimentar e nutricional que vinham se consolidando e se formando desde os anos 1990. A partir de 2016, 2017, ganhou destaque no governo essa perspectiva neoliberal, que diz buscar eficiência, e que fez as políticas sociais perderem espaço. A partir de 2019, a situação se agrava quando assume esse novo governo, que é despreparado para lidar com questões de segurança alimentar.
Que políticas foram desfeitas?
O Brasil conta com um leque grande de políticas de segurança alimentar que foram implementadas ao longo dos anos, e abandonadas mais recentemente. Elas vão da produção de alimentos à distribuição e consumo nas casas das famílias e nos locais de trabalho. Do ponto de vista do consumo, há políticas que permitiam que as pessoas consumissem alimento sem ter renda, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Pelo programa, o governo compra de pequenos agricultores e distribui os alimentos a populações vulneráveis. Ele era muito utilizado para alimentação escolar e para programas de assistência social. Foi praticamente desarticulado entre 2017 e 2018. O investimento no programa chegou a R$1,2 bi em 2012. Em 2018, o valor caiu para R$253 milhões. Outro dado vem da própria alimentação escolar. O valor do repasse feito pelo governo federal para as prefeituras e governos estaduais ficou congelado — hoje, o repasse médio é de 36 centavos por criança por dia. Fica complicado gerir um programa que atende 42 milhões de pessoas por ano com 36 centavos. São crianças que passam a viver numa situação de insegurança. Por lei, os estados e municípios devem complementar esse valor. Mas muitos não têm recursos e não complementam.
A disparada no preço dos alimentos, no ano passado, é apontada como uma da razões para o avanço da fome no país. Em algumas capitais, a cesta básica ficou 30% mais cara, segundo dados do Dieese. Houve problemas na produção?
Houve todo um imbroglio relacionado a formação de preços. Em parte, ele aconteceu porque o governo não investiu na formação de estoques reguladores. Eles permitem que o governo possa intervir, de modo a evitar que os preços disparem. Quando sobem demais, o governo desova os estoques no mercado, de modo a forçar uma queda. Mas isso foi desmontado. O governo não mantem estoques reguladores. É importante deixar claro que não se trata, aqui, de estoque físicos: de alimentos guardados em armazém. São papéis negociados no mercado, chamados opções. O governo atua no mercado comprando e vendendo opções. Trata-se de uma questão de soberania nacional. Veja o caso dos EUA: lá, o preço do óleo de soja, ou de outros artigos alimentícios, não dispara. E não dá pra acusar os EUA de ser uma economia planificada, socialista.
Foi isso o que aconteceu com o arroz, por exemplo? O preço chegou a dobrar no fim do ano passado.
Houve aí ainda outro problema, que é a ausência de regulação estatal que impeça a formação de arranjos não competitivos. De empresas que dominem o mercado e possam, por isso, ditar preços. O Brasil consome entre 10 e 11 milhões de toneladas de arroz por ano. Produz, internamente, cerca de 8 milhões de toneladas. Os outros 3 mi são importados do Uruguai.Mas nossos estoque reguladores são ínfimos: equivalem a menos de 1% dessa demanda. Esse é um dado conhecido, e esse conhecimento permite que as pessoas que especulam com a compra e venda de arroz dominem a situação. Quando o preço do arroz disparou, o governo decidiu baixar a alíquota de importação. Não adiantou, porque o arroz vem do Uruguai, que é parte do Mercosul e, por isso, já paga impostos muito baixos. Demorou até o arroz importado chegar no mercado. Nesse meio tempo, as beneficiadoras de arroz que atuam no Brasil puderam lucrar. É um mercado concentrado, basta ver as mascas no supermercados: duas ou três marcas dominam. Isso é sinal de uma ausência completa de política agrícola. Faltou produto? Não faltou. Mas faltou ação do governo, que esperou a crise se desdobrar.
Foto de topo: FAO/ ONU
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