Barreiras impostas pelo Estado dificultam punição à LGBTIfobia, avalia estudo
Levantamento do Instituto Matizes e da All Out identificou obstáculos que desencorajam denúncias e punição de agressores. É preciso mudar cultura institucional, diz pesquisador
Rafael Ciscati
8 min
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Passados dois anos desde que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votaram pela criminalização da LGBTIfobia, uma sequência de barreiras e lacunas institucionais parece impedir que a decisão seja efetivamente aplicada. Um levantamento recém-publicado pelo Instituto Matizes e pela organização All Out identificou 34 obstáculos impostos por instituições do Estado que dificultam a realização de denúncias e a punição de agressores. As dificuldades variam: vão desde juízes que discordam da decisão do STF; até as formas discriminatórias como vítimas de LGBTIfobia são atendidas em delegacias de polícia. “Os obstáculos são tantos que, na prática, muitos crimes não são denunciados”, afirma o antropólogo Arthur Fontgaland, diretor de pesquisas do Instituto Matizes e um dos autores do estudo. “Para muita gente, a impressão que fica é de que a denúncia é inócua”.
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Criado em finais de 2020, o Instituto Matizes se dedica a atividades de pesquisa e ensino relacionadas à equidade de gênero e diversidade nas instituições. Para o novo trabalho, a equipe entrevistou, longamente, ativistas, pesquisadores, operadores do sistema de justiça e do sistema de segurança pública. O quadro que emerge das conversas sugere que a decisão do STF, embora comemorada por setores do movimento LGBTQIA+, não foi acompanhada por mudanças institucionais importantes para a sua aplicação. Tais como a criação de protocolos para atendimento à população LGBTQIA+ nas delegacias de polícia: “Houve uma falta de interesse das instituições. Pouco se mobilizou, nos estados para garantir que a decisão saísse de fato do papel”, afirma Fontgaland.
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A criminalização da LGBTIfobia esbarra, ainda, na cultura dos tribunais. Em 2019, o STF decidiu pela equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo. Fez isso ao julgar que o poder legislativo se omitira ao não tratar do assunto. Por definição, explica o relatório do Matizes, racismo é um crime que afeta uma coletividade, cujos impactos não se restringem à dimensão individual. A definição gera desencontros no tribunal porque muitos operadores do sistema de justiça não entendem a LGBTIfobia da mesma forma. O estudo constatou que, na avaliação de juizes e promotores, muitas agressões LGBTIfóbicas têm alcance menor — ficam na esfera da ofensa, por exemplo — e que, por isso, não podem ser equiparadas ao crime de racismo.
Na avaliação de Fontgaland, para que a decisão da Corte tenha impactos reais, é preciso que sua aplicação fique menos refém de opiniões individuais. Avanços mais profundos, ele alerta, vão exigir mudanças culturais. “Vamos avançar quando as pessoas, dentro e fora do Estado, entenderem que essas violências existem, têm alvos particulares, e amplificam desigualdades”.
O trabalho de vocês fala sobre violências institucionais contra a população LGBTQIA+. Dá para dizer que o Estado impõe obstáculos à punição da LGBTIfobia?
Arthur Fontgaland: Sim. Do momento em que uma pessoa LGBTQIA+ busca ajuda em uma delegacia, até que a denúncia avance para chegar aos tribunais, há um imenso número de barreiras. Obstáculos que não só impedem que a denúncia vá adiante, como impedem que a violência sofrida seja reconhecida. Há casos em que a violência é minimizada, entendida pelos operadores do sistema de segurança como uma ofensa, uma agressão menor. Essas barreiras geram violência institucional. Há variações nesse tipo de experiência, a depender da cidade de que estamos falando. Mas, de maneira geral, identificamos impeditivos que se repetem em todo o país. O que a gente percebe é que as instituições não visualizam o combate aos crimes de ódio contra pessoas LGBTQIA+ como uma missão institucional.
De que barreiras estamos falando?
Para essa decisão ter efeitos práticos, era preciso que ela fosse amparada por mudanças institucionais. O que a gente percebe é que a decisão de punir ou não a LGBTIfobia varia conforme a vontade de juízes ou de outros agentes públicos. No caso do atendimento em delegacias, por exemplo, há casos em que a pessoa agredida é desencorajada a seguir com a denúncia. Tem quem diga que a LGBTifobia não existe. Em muitos estados, não foram modernizados procedimentos e documentos importantes. Caso dos boletins de ocorrência: muitos não contam com campos de preenchimento sobre orientação sexual e identidade de gênero.
A decisão do STF sozinha foi insuficiente para garantir a denuncia e a punição da LGBTifobia? Deveria ter havido medidas posteriores, que dessem suporte a essa decisão?
Faltou adequar mecanismos institucionais já defasados. E faltou, também, uma campanha que mobilizasse diferentes órgãos públicos, para além do Supremo. O que aconteceu é que, desde que a Ação Direta de Omissão (ADO) que culminou na criminalização da LGBTIfobia começou a ser votada, agentes e órgãos do Estado se manifestaram no sentido de desacreditá-la. Foi essa a postura da Advocacia Geral da União (AGU) durante o julgamento, por exemplo. Em 2020, o órgão disse temer que a criminalização da LGBTIfobia restringisse a liberdade de manifestação religiosa.
Um ponto interessante do trabalho de vocês é o que fala sobre as controvérsias no meio jurídico sobre a decisão do STF. Passados dois anos, a decisão da Corte ainda é mal aceita pelos operadores do direito?
Existem muitas instâncias do judiciário que acreditam que a decisão não deveria ocorrer porque não cabia ao STF legislar. A decisão já nasce desacreditada, em parte por esbarrar nos juízos de valor dos operadores do judiciário. Além disso, ela é uma interpretação da lei do racismo. Desde que foi promulgada, em 1989, a lei de racismo se tornou um guarda-chuva para a punição de vários crimes de ódio. Pesquisas anteriores, da [professora da FGV] Marta Machado, da [socióloga e professora da USP] Márcia Lima e da pesquisadora Natália Neris mostram que já existia certa resistência do judiciário em entender como racismo vários crimes racistas. Muitas vezes, nesses processos, crimes de racismos são entendidos pela justiça como delitos mais leves: injúria , injúria racial e lesão corporal. Isso demonstra que o judiciário tem dificuldade em reconhecer o racismo como algo que estrutura a nossa sociedade. A lei de que dispomos não dá conta de combater o racismo. O mesmo acontece com a LGBTIfobia.
Como reverter esse quadro?
É fundamental que a gente não dependa do juízo de valor das pessoas que ocupam os órgãos públicos para que decisões pró-LGBTQIA+ sejam efetivadas. Nesse sentido, algumas mudanças são prioritárias. Uma delas é modificar a cultura organizacional dos sistemas de Justiça e de Segurança pública. Uma das primeiras coisas é a implementação de protocolos policiais, sobre preenchimento de boletins de ocorrência e de atendimentos adequados ao público LGBTQIA+. Ainda que a decisão não existisse, é necessário que as pessoas sejam bem tratadas ao ir às delegacias. É necessário trabalhar a formação de toda a polícia. Existem protocolos já criados pela clínica de diversidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e por outros instituições. Vários materiais que os estados podem utilizar para que as policias sejam formadas. Além disso, é importante repensar as formas de captação dos registros de ocorrência nos boletins de ocorrência. É importante que a pessoa responsável por essa captação entenda o que é nome social, e compreenda que é importante colocar a orientação sexual e de gênero ao fazer os registros. De modo que esses boletins sirvam como registro de dados de modo que a população LGBTQIA+ não fique invizibilizada dentro dos dados de segurança pública. É fundamental, ainda, que os movimentos sociais se apropriem e discutam ainda mais os rumos da segurança pública.
Apesar dos problemas relacionados à sua aplicação, a criminalização da LGBTIfobia trouxe benefícios?
Um mérito da decisão foi mostrar que a LGBTIfobia existe e é crime. Quando você nomeia uma violência, você joga luz para o que há em volta dela, e consegue mostrar que existe uma estrutura que promove essa violência. Mas uma lei que combate crimes de ódio não é suficiente se os agentes que vão aplicá-la não entenderem que essas violências precisam ser combatidas. Vamos avançar quando as pessoas, dentro e fora do Estado, entenderem que essas violências existem, têm alvos particulares, e amplificam desigualdades. Hoje, até mesmo quando grupos minorizados procuram utilizar o sistema penal, ele não os serve. Porque esses grupos não fazem parte dos setores que pensaram esse sistema. O sistema de segurança pública é feito para o combate à drogas. Segue outra lógica. Violências que não decorrem disso não são prioridade para o Estado. Só vamos modificar essa lógica com mudanças culturais que transformam a sociedade para além da norma.
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