“O Carandiru se repete diariamente”, diz coordenadora da Pastoral Carcerária
Na avaliação de Petra Pfaller, sistema prisional brasileiro naturalizou a tortura. Massacre em presídio paulista completa 29 anos sem punição a culpados.
Rafael Ciscati
7 min
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No dia 02 de outubro de 1992, a polícia militar foi acionada para deter uma rebelião que começara no pavilhão 9 da Casa de Detenção São Paulo, no bairro do Carandiru. A operação foi violenta: aos menos 111 detentos foram assassinados, segundo dados oficiais. Anos depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA), classificaria a operação como um “massacre”. “Mas o Carandiru não foi o último. Ele se repete diariamente”, afirma a irmã Petra Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária.
Há 26 anos, irmã Petra visita penitenciárias em todo o país, denunciando casos de violação de direitos básicos. Na avaliação dela, o quadro se deteriora ano a ano. No começo da década de 1990, quando aconteceu o massacre do Carandiru, o ministério da Justiça contabilizava pouco mais de 100 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil. Hoje, há cerca de 770 mil — a terceira maior população prisional do mundo. A explosão da população carcerária foi acompanhada pela precarização contínua da vida nos presídios. “Há 20, 30 pessoas em celas projetadas para acomodar até oito detentos. As condições de vida são de tortura, física e psíquica”.
Segundo ela, a morosidade do julgamento e o fato de que ninguém foi punido pelo massacre do Carandiru dão mostras de como o judiciário brasileiro enxerga a população prisional. “Não há interesse dos governos, nenhuma preocupação em apurar os casos de tortura e violações de direitos de maneira geral”, afirma. “No sistema prisional, a tortura é estrutural.”
Foto de topo: os escombros do presídio do Carandiru (Agência Brasil)
Já se passaram quase três décadas desde o massacre do Carandiru, e não houve punições. Quais as consequências disso?
Trabalho há 26 anos na Pastoral Carcerária. Nesse tempo, a situação só piorou. Não houve punição para os responsáveis pelo massacre do Carandiru como não houve punição para os demais casos de tortura que já denunciamos. Não há interesse dos governos, nenhuma preocupação em apurar os casos de tortura e violações de direitos de maneira geral. No Carandiru, 111 pessoas foram mortas, de acordo com os números oficiais. Mas um número muito maior de pessoas foram torturadas. Pessoas que foram feridas, espancadas, e que carregam as marcas disso até hoje. O Carandiru é um marco histórico. Pelas dimensões do massacre e pela forma como o Estado, os governos e, especialmente, o poder judiciário trataram os casos de tortura e morte no cárcere. Mas isso persiste até hoje. No sistema prisional, a tortura é estrutural.
Como assim? Há uma naturalização da tortura no sistema prisional?
Sem dúvida. Há celas projetadas para oito pessoas mas que abrigam 20, 30. Enquanto conversamos, há pessoas sobrevivendo em situação torturante. Tortura física e psíquica. A pessoa que passa por um presídio brasileiro é empurrada para as facções. O sistema prisional não separa as pessoas segundo o delito de que são acusadas, separa segunda a facção de que a pessoa faz parte. Há muitas pessoas não faccionadas e que são empurradas para isso. Essa decisão tem consequências muito graves, inclusive para a vida dos egressos. As condições dentro do sistema prisional são terríveis. Em todos os presídios por que passamos, os problemas se repetem. Não há comida decente, não há roupa.
Em 1992, havia cerca de 100 mil pessoas presas no Brasil. Hoje, esse número chega a 770 mil, a terceira maior população carcerária do mundo. A situação se agravou?
O encarceramento em massa aumentou muito. Especialmente para a pessoa negra, pobre, periférica, e para as mulheres. A polícia prende muito, e prende muito mal. Não há investigação, as prisões em flagrante aumentam, mas aumentam somente nas periferias e favelas. Desde 1992, aconteceram massacres em Pará, Alagoas, no Rio Grande do Norte, no Amazonas. O Carandiru não foi p último. Mas, o mais importante a saber é que os massacres continuam no dia-a-dia. A cada dia, as torturas acontecem. Acontecem agora, nos presídios superlotados. Isso é também um massacre. De norte a sul, de leste a oeste do Brasil o Carandiru se repete, diariamente. Isto porque a ordem de matar, que sempre parte dos poderosos, nunca deixou de existir. Antes ainda tentavam escondê-la, sob os mitos da “democracia racial” e do “Estado Democrático de Direito”. Agora, com o “CPF cancelado” e o “e daí?”, está escancarado o modus operandi do sistema penal de docilizar e matar corpos.
A pandemia de covid-19 piorou esse quadro?
A pandemia deu contornos ainda mais doloridos a esse massacre constante. O fechamento do cárcere aos agentes pastorais e às familiares das pessoas presas deu o tom que há muito já se observa do sistema prisional brasileiro: um verdadeiro apartheid. É ali que se trancafiou a população preta e pobre e é ali que se ecoava o “deixar morrer”. É ali também, que se fazia morrer, pois foram inúmeras denúncias de agentes prisionais que não utilizavam máscara, de fornecimento precário de materiais de higiene, de proibição do banho de sol, de recusa em prestar atendimento médico aos enfermos e de demora na aplicação de vacinas. Sem contar as inúmeras agressões físicas que continuaram acontecendo nesse período. Hoje, o atendimento de saúde é um instrumento de tortura dentro do cárcere. Em geral, os presos passaram muita fome e falta de assistência, médica e jurídica.
Ainda em relação ao Carandiru, em agosto o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que deveriam ser mantidas as condenações de 74 dos policiais que participaram do massacre. Vocês tem expectativas de que alguma punição seja efetivada?
Tenho a esperança de que o poder judiciário acorde e faça a devida justiça. Mas a minha expectativa não é das melhores. Cerca de 80% das denúncias que enviamos hoje a corregedorias, ouvidorias ou ao poder judiciário ficam sem resposta. Dos massacres que aconteceram nos últimos anos — no Pará, Alagoas, no Rio Grande do Norte, Amazonas — nenhum caso foi julgado.
Como superar esse quadro em que a tortura é estrutural no sistema prisional?
A única solução possível é a do desencarceramento. E são necessários outros avanços, como a abertura do cárcere à fiscalização da sociedade civil e descriminalização das drogas. No Brasil, entre 40 e 60% dos presos e presas são provisórios, variando conforme a cidade. É uma grande injustiça. Em vários casos, depois de um ou dois anos esperando a sentença, essas pessoas são declaradas inocentes. Mas cumpriram pena antecipadamente. O desejo da sociedade por vingança é muito grande. Entende-se a prisão como a solução, a resposta para os delitos. Não há propostas de alternativas a essa justiça vingativa. Como Pastoral Carcerária, a nossa proposta é a da justiça restaurativa. Uma justiça capaz de restabelecer essas relações que foram quebradas.
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