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“Constatei que somente tratava do negro. Precisava tratar do branco”

Estudioso da branquitude, Lourenço Cardoso defende uma universidade que amplie o olhar para além do conhecimento eurocêntrico

Fabio Leon

25 min

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O sociólogo Lourenço Cardoso propôs uma inovação que, em termos de produção de conhecimento, poderia soar ousada. Professor do Instituto de Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Cardoso elegeu, como objeto de pesquisa, a branquitude. Cardoso é autor do livro “O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre o pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional” (Editora Appris, 2020) já no segundo volume. 

Seu trabalho utiliza conceitos das análises de discurso e de conteúdo para colaborar com a interpretação dos dados. Além disso, reflete com base no pressuposto de que o conhecimento científico possui características subjetivas, além de estudar aspectos culturais e psicológicas da branquitude contemporânea. “Constatei que somente tratava do negro, portanto, precisava tratar do branco”, afirma. 

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Professor, eu queria que, primeiramente, o senhor contasse uma breve história sobre sua militância acadêmica. Como ela se iniciou? E por que o senhor resolveu se debruçar sobre as pesquisas em relação à branquitude?
Lourenço: Eu não diria que faço militância acadêmica, faço trabalho acadêmico. Eu sou professor e pesquisador, não tenho feito ativismo no momento. Tenho feito meu trabalho na universidade. Ela é uma instituição que possui a obrigação de atuar para um mundo melhor, o compromisso de agir contra a desigualdade social também é uma tarefa da universidade. Não se trata apenas de atividades do ambiente da militância dentro ou fora da universidade. Eu já fiz militância, todavia, no momento, não estou fazendo. Esta é minha opção, por enquanto. Contudo, pode ser que em algum outro momento volte a militar. No entanto, neste instante, trabalho como professor, pesquisador e com as atividades de extensão.

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A extensão colabora para popularizar o conhecimento acadêmico. A universidade, em todas suas expressões, deve (ou deveria) colaborar para que o conhecimento se amplie. Isto é, o conhecimento do mundo é maior do que o conhecimento eurocêntrico do mundoO conhecimento do mundo é maior do que o conhecimento brancocêntrico do mundo (sic). O brancocentrismo é um conceito que criei na minha tese de doutorado em 2014. Trabalhar para um mundo melhor é obrigação da universidade. Uma tarefa que a universidade pode deixar a desejar. Assim a incumbência fica a cargo para militância, muitas vezes, de forma solitária.

Como o senhor passou a ter interesse em estudar a branquitude?
Lourenço: Em meados de 1998 ouvi falar sobre branquitude na casa do Cuti, fundador dos Cadernos Negros. Nós íamos lá na casa dele para comentar o livro que tínhamos lidos, um deles foi o Frente Negra Brasileira escrito pelo Márcio Barbosa. Nesses encontros estava Maria Aparecida da Silva Bento (Cida Bento). Ela já falava sobre branquitude. Então a primeira vez que ouvi falar a respeito de branquitude foi em meados de 1998, 1999.

No ano de 2002, Cida Bento defendeu a tese de doutorado sobre branquitude no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, dessa tese ela organizou um livro sobre branquitude. Eu estava dando um curso sobre a História negra no Brasil, tratando somente sobre o negro. Um amigo Edmar Silva, que participava da Coordenadoria do Negro da prefeitura de São Paulo, me presenteou como o livro da Cida Bento, a partir dessa leitura enxerguei o óbvio. Constatei que somente tratava do negro, portanto, precisava tratar do branco. Desde então comecei a pesquisar e a escrever artigos de opinião referente a branquitude. Enfim, passei a me interessar sobre o branco enquanto tema de pesquisa.  

Foi difícil conseguir apoio para o desenvolvimento das suas pesquisas críticas sobre a branquitude justamente na academia que é conhecida por ser um universo majoritariamente branco, elitista e até em determinado momento opressor?
Lourenço: Para o pesquisador de agora, neste governo da branquitude acrítica, branquitude acrítica seria essa da ultradireita, branquitude da Ku Klux Klan, branquitude neonazista, podemos dizer o seguinte: nesse momento o cientista que está realizando pesquisa encontra muita dificuldade. Sabemos que a administração atual é contra as universidades, contra a Educação como um todo. Por isso, os pesquisadores praticamente não conseguem bolsas de estudos para viabilizarem suas produções cientificas. Então a dificuldade que encontramos neste período é incomparável com qualquer outro momento da história.

Na minha época da pesquisa de mestrado existia a possibilidade de conseguir bolsas de estudos. Eu consegui bolsa de estudos, então em termos de financiamento, que é fundamental, consegui sustentação para pesquisa. Em termos econômicos, tive até facilidade comparadas a dificuldade que os pesquisadores enfrentam no cenário atual, fruto desse governo que é kakistocracia da kakistocracia. O que é isso? A kakistocracia significa o governo dos piores. Então o governo que estamos vivendo é o pior do pior. O governo anterior, a administração Temer, foi muito ruim para os pobres, a administração deste instante consegue ser ainda pior.

Pontuar essa comparação é fundamental porque o Estado precisa financiar as pesquisas. Isto é, importante para proporcionar o desenvolvimento do país. Então na época que realizei a investigação, vivíamos uma situação muito melhor. Quando comecei os estudos, a branquitude era um tema totalmente desconhecido. As pessoas falavam de forma unânime: você não tem que estudar o branco, você tem que estudar o negro! Eu era desestimulado, não encontrava orientador que se interessasse pelo tema realmente. A perspectiva de estudar o negro estava na mentalidade dos intelectuais e ativistas negros, não somente na cabeça dos brancos que investigavam o negro.

Enfim, era desestimulado. Hoje tenho conversado com alguns pesquisadores, eles ainda são desencorajados. Todavia, agora o tema é mais conhecido. E a mentalidade não se encontra tão fechada. Uma das pessoas a romper com a mentalidade restrita é a intelectual Cida Bento. Ela é uma das primeiras a tratar do tema, o grande pioneiro mundial é o Guerreiro Ramos. Ele propõe o tema em meados de 1957 e depois a proposta fica adormecida e esquecida no Brasil. O livro, publicado pela Cida e Bento e Iray Carone Psicologia social do racismo, incentivou a minha pesquisa e outras. Portanto, sou da terceira geração. Primeira geração Guerreiro Ramos, segunda geração Cida Bento, eu terceira geração. Os negros são os pioneiros nesses estudos. Não me cabe dizer onde me encontro, mas posso supor que minha produção científica tem colaborado. Não nos cabe falar a respeito de nós mesmos, isso cabe ao futuro, o futuro dirá, a história dirá.

Como é que o senhor avalia as lutas antirracistas no Brasil e no mundo com a participação mais efetiva de brancos nestas ações? Nós estamos nos aproximando da concretização do conceito de branquitude critica de sua autoria, ou ainda há muito a ser feito?
Lourenço: A participação dos brancos ainda não é tão efetiva. O que escutamos é mais especulação do que efetividade. Realmente, existem mais brancos repetindo discursos sobre sua participação na luta antirracista. A comunidade negra trata do tema da participação branca há anos. Porém, a luta contra o racismo ainda possui como grande protagonista o movimento negro, o feminismo negro, a negra e o negro em suas ações individuais e coletivas. Todavia, pelo menos, já temos algumas palavras e outras ações mais concretas dos brancos nessa direção.

De fato, o ativismo negro é o grande protagonista da luta contra o racismo, seja numa perspectiva de promoção da igualdade racial, perspectiva liberal, seja na perspectiva revolucionária. Isto é, na construção de uma nova sociedade que não seja capitalista, não seja racista, não seja homofóbica, etc. Uma sociedade que seja de fato a superação desta.

Sua pergunta remete a trágica história do assassinato do George Floyd. Seu homicídio nos Estados Unidos mobilizou seu país. Era época da campanha para Presidência da República estadunidense, Joe Biden ganhou e Donald Trump perdeu. Biden apoiou a família de Floyd e os protestos oriundos desse crime horrível. A violência contra George Floyd foi filmada, teve grande repercussão instantânea em várias partes do mundo, inclusive, no Brasil. Nos Estados Unidos, os brancos participaram de várias manifestações, em algumas ocasiões, colocando-se como escudo para proteger os negros da violência policial. Foi uma ação concreta antirracista elogiável, uma prática concreta de luta conjunta com os negros. Tal atitude impressionou, os vídeos circularam pela Internet, negros e brancos lutando contra as práticas racistas nos Estados Unidos.

No Brasil, os brancos ficaram estimulados a participarem de passeatas antirracistas. Todavia, parece ser mais uma atitude, por parte do branco brasileiro, de imitação do que considerarem realmente a luta antirracista como igualmente sua. Digo que se assemelha a cópia dos gringos, na medida em que, o branco daqui ignora, fecha os olhos, não se importa com o assassinato de crianças negras, jovens negras e negros em nossa sociedade. Isto tem acontecido muito. Logo, encontramos mais discursos antirracistas feitos por brancos, não necessariamente outras ações além de palavras. Os discursos são produtos, inclusive, de algumas leituras que alguns brancos têm feito. Contudo, a negra e o negro ainda são protagonistas e os brancos se encontram aquém. Pontuo o assunto em termos de regra não de exceção.  

Uma maneira efetiva dos brancos participarem é com o voto? Brancos votem nos negros. Nas últimas eleições, parece que houve mais candidatos negros, contudo, é visível que os negros tiveram mais votos. Entretanto, ainda é necessário muito mais. Se uma contribuição branca seria votar nos negros? Quais negros? Negros de esquerda, obviamente, porque os negros de direita defendem uma pauta que vão contra si. Digo mais, não se trata de votar no negro por ser negro. Trata-se de votar no negro que luta contra o racismo.

Votar no negro é colaborar para que, pela estrada da política, os negros estejam no STF. Colaborar através de projetos políticos para que os negros possam alcançar o cargo de juiz, vamos insistir nisso. Trata-se de ação efetiva que os brancos poderiam fazer. Enfim, considero necessário ir além das palavras, das expressões que muitas vezes são slogans. Os brancos estão repetindo slogans, todavia, é preciso ir além de slogans, mesmo esses que se tornaram títulos de livros. O ano que vem teremos eleições, vamos tirar esse governo da branquitude acrítica. Vamos eleger um governo de esquerda, não vejo possibilidade de eleger um presidente negro por enquanto, nem uma presidente negra. Porém, temos a possibilidade realista de eleger para Câmara Federal maior quantidade de negros e de negras, de povos originais. Em suma, é preciso ir além da repetição de slogans antirracistas. 

Brancos que se dizem antirracistas podem cometer algum deslize, verbalizar algo considerado inapropriado do ponto de vista racial e apresentar como argumento o fato de estar “aprendendo a não ser mais racista”? Qual a análise que o senhor faz em relação a esse aprendizado, “entre aspas”?
Lourenço: O aprendizado? Aprender é uma das delícias da vida. Uma das coisas importantes de aprender é mudar o mundo para melhor. O racismo, o machismo, a homofobia são monstruosidades. Somos monstros. Quando não quero ser horrível, ao praticar monstruosidade num deslize, passo a autocrítica. Uma atitude individual que não basta. Há trabalhos sobre a branquitude que caminham para o racismo individual (pessoal).

Contudo, não basta a autocrítica. Temos realmente que aprender a mudar a sociedade. Temos que para aprender também com a contribuição da epistemologia negra na perspectiva revolucionária de Clóvis Moura e Ângela Davis. Temos que aprender a mudar o mundo capitalista. Pois, nele quando desaprendo a ser monstro, quando vou desaprendendo a ser racista, machista, etc. O mundo horrível me ensina de novo. Mal terminou o dia e desaprendi. No mesmo dia, ou no outro, volto a ser o que optei em não ser, um ser abominável.

A questão colocada é a pauta revolução. Não temos tratado tanto essa perspectiva, como no passado, não temos feito propostas de um outro mundo como antes. Ao tratar disso, nos restringiremos ao Brasil? Evidente que não. Nosso país é parte do mundo. Ao propor novas sociabilidades mundiais, requer pensarmos o contexto das relações internacionais e o poderio estadunidense. Considero válido resgatar e atualizar o conceito de Lênin, imperialismo. Se queremos mudar o mundo para melhor para maioria, entraremos em choque com o principal país contra tal perspectiva de mudança. Por outras palavras, os Estados Unidos da América atrapalham a transformação da sociedade global a caminho da solidariedade. Portanto, defendo a proposta de um mundo que caminha mais para a solidariedade do que para a competição.

Para concluir, as questões são mais complexas do que as soluções individuais, são mais complicadas do que uma pedagogia, história, psicologia, sociologia que nos ensina a desaprender o racismo, numa prática pós-moderna, neoliberal descolada do mundo. Existe uma visão antiga psicológica-sociológica, nela você passa de uma fase para outra fase até chegar à etapa seguinte, digamos, fase antirracista. Vamos supor que tal branco chegou ao patamar antirracista. Nos cabe perguntar: e o mundo? A nossa tarefa é mais complexa do que algumas soluções que aparecem em produções acadêmicas sobre branquitude. Alguns trabalhos têm exercido a função de ser manual para a salvação individual dos brancos. O branco se encontra na fase tal, ele para resolver isso ler o manual (a produção acadêmica) e chega na fase antirracista (fase psicológica, pedagógica, histórica, sociológica). Diante disso, o branco se salva individualmente.

Ou seja, haveria uma diminuição da culpa, talvez, pela interpretação que percebo em suas palavras. Ser antirracista seria trabalhar um pouco essa hipótese de ser menos culpado, por ser o opressor, digamos assim.
Lourenço: Culpa também é um conceito que algumas analises psicológicas, sociológicas utilizam, praticamente não faço uso desse conceito. Todavia, é evidente que a culpa opera na subjetividade latino-americana, age na subjetividade brasileira. Afinal, fomos colonizados pelos cristãos católicos, a culpa opera na cultura ocidental. Contudo, a culpa pode ser uma armadilha.

Digamos, eu branco pratiquei uma atitude racista, depois me senti culpado. A partir do instante que me senti culpado, isso também serve como a minha sentença, como a minha punição. Logo, já estou salvo (purificado). Já estou apto para praticar outra atitude racista. A culpa é um conceito que pode se tornar complicado. Essa é uma das razões que não utilizo, o conceito de culpa em minha abordagem sociológica e histórica. Obviamente, que outros cientistas podem fazer uso desse conceito de maneira exitosa.

Ano que vem teremos mais uma eleição, como é que o senhor analisa as performances e estratégias dos partidos políticos, ditos progressistas, em relação ao desenvolvimento de pautas raciais? O senhor está esperançoso ou está pessimista em relação a isso?
Lourenço: A principal eleição do ano que vem é a presidência, nós temos que tirar esse presidente. As estratégias das eleições têm sido guiadas, principalmente, pelo marketing. Antigamente os marqueteiros políticos com as propagandas de televisão tinham muito prestígio. Duda Mendonça, Nizan Guanaes se destacaram nas campanhas dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Agora o marketing das redes sociais, realizado pela ultradireita, parece mais eficaz. Foi muito eficiente para eleição de Donald Trump e na última campanha eleitoral presidencial no Brasil. Marketing feito na Internet que usa as mentiras de forma muito mais solta, podemos dizer, sem comparação com as campanhas televisas tradicionais. Portanto, o comando fundamental da estratégia para campanha eleitoral é ditada pela área de comunicação.

Quanto a questão negra e a política? Se couber o negro, em termos de estratégia de marketing, entrarão na campanha presidencial, caso contrário, não. Historicamente nunca entramos, é provável, que ainda não entraremos. Uma das razões, as práticas de racismo institucional e estrutural da sociedade brasileira. Portanto, o que nos cabe? Nós negras, negros, nós LGBTQUIA+, nós povos originais, nós MST, etc. cabe entrar em maior número no Parlamento. Temos que continuar e aperfeiçoar as estratégias que fez com que entrassem mais negros nas últimas eleições para as prefeituras no Brasil. Todavia, no caso da disputa presidencial, a ultradireita mostra ser mais eficiente em utilizar as redes sociais do que a esquerda. Não necessariamente porque utilizam de fake news, e sim, porque sempre viveram nos subterrâneos que no passado significa Internet como repercussão de comunicação. Diante disso, aprenderam mais a respeito desse veículo. A esquerda tem igualmente que aprender a lidar melhor com a Internet. Com o princípio legal e moral, seria possível disputar na Internet? Uma resposta que ainda não temos, porém, tal concorrência, em princípio, favorece os políticos da ultradireita.

A direita sabe se comunicar melhor, inclusive, com a própria base?
Lourenço: Sim, porque é muito fácil. A direita é uma coisa, a ultradireita é outra. A ultradireita extremista diz meia dúzia de dogmas e funciona perfeitamente. A direta pronuncia as palavras, liberal e neoliberal e não vão além disso praticamente. Discurso neoliberal que a própria esquerda repete. Mesmo porque esses discursos encontram espaço único na mídia grande, a perspectiva neoliberal não encontra qualquer empecilho, a menor contestação. Trata-se de um discurso único repetido há anos, por exemplo, na televisão e pela maioria dos políticos desde 1990.

Falando em comunicação, em relação ao discurso do rapper Mano Brown criticando a branquitude majoritária do PT ou a falta de comunicação do partido com as bases. O senhor considera um divisor de águas ou um breve, porém, necessário constrangimento?
Lourenço: Ele foi perfeito, o Mano Brown falou o que tinha que dizer. Recentemente, ele entrevistou o ex-presidente e conversaram sobre esse episódio. De fato, concordo com o Brown. O Partido dos Trabalhadores tem que se aproximar das bases, tomara que já esteja acontecendo. Nesse momento, nossa principal opção para tirar o atual presidente é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. De minha parte, iremos elegê-lo, depois vamos cobrá-lo. Nós temos que pressionar para que o ex-presidente aprenda mais sobre a questão racial. No diálogo dele com o Brown, ficou evidente que o ex-presidente está aquém nessa discussão. Se realmente ele não conhece pontos centrais sobre relação racial, isso ocorreu porque algumas pessoas que lhe são próximas não lhe dizem algumas verdades. Ao meu ver, o ex-presidente Lula ignora aspectos importantes referente a questão negra. Assim como todos os outros candidatos à presidente que pontuam nas pesquisas. Contudo, Luís Inácio já aprendeu algumas coisas nesse bate-papo com o Mano Brown e vice-versa. O ex-presidente, talvez, futuro presidente novamente, possui uma capacidade de aprendizado impressionante. Ele é brilhante, tomara que as pessoas que lhe são próximas não deixem de lhe dizer algumas verdades sobre a questão negra no Brasil.

O ex-presidente é uma boa opção para o Brasil, já que nesse momento, em termos práticos, não temos a possibilidade, por enquanto, de eleger uma candidata negra que seja de esquerda, que seria algo que gostaria muito.

Tem alguma aposta para uma boa candidatura negra de esquerda? Em quem o senhor apostaria?
Lourenço: Silvio de Almeida é uma boa candidatura. Existem muitas pessoas, Laura Astrolábio, Érika Malunguinho. Não esqueçamos de Leci Brandão e Benedita da Silva. A ex-governadora Benedita já teve uma importante experiência administrativa. O Paulo Paim é nome ótimo, temos quadros.

Vamos falar um pouquinho de segurança pública. Que tipo de branquitude norteia as políticas de segurança pública na sua avaliação?
Lourenço: Norteia prisão e assassinato, significa insegurança pública para negros e negras, principalmente, os jovens negros. A violência também atinge as mulheres negras. Portanto, a política pública para a comunidade negra é a insegurança pública. Os rappers, o movimento hip hop, possuem muitas produções a respeito. Infelizmente, muita coisa não mudou, até piorou. Para o negro a sua opção é a prisão ou morte. O que seria melhorar a gestão nessa área? Significa prender com menor gasto, isto é, matar utilizando menos bala. Deixar que o pobre morra ao parar de investir nele, ou ao destinar parte ínfima do orçamento nele. É triste.

O senhor acredita que as sociedades possam existir com uma reforma estrutural das polícias?
Lourenço: Não considero exequível uma reforma estrutural da polícia. Nesta sociedade racista, capitalista, liberal não é possível uma mudança significativa nessa instituição. Ela vai defender os interesses burgueses. Geralmente, a polícia possui uma atitude cidadã nos bairros de classe alta e média. A polícia enquanto servidor público que porta arma deveria ser mais responsável. Ela deveria possuir uma sólida formação cultural e educacional. Uma base pedagógica de excelência que os mais pobres da sociedade não possuem em regra. O policial é um funcionário público que ganha pouco, pode morrer no seu ofício, um cargo muito complicado. Por isso, a necessidade de forte bagagem humanista e cultural. Contudo, obviamente, o conhecimento também pode levar a contestação da sociedade, jamais aplicarão uma pedagogia para liberdade ou de democracia de fato numa instituição policial.  

Existe a questão da polícia militar? Para que servem os militares? Entre outros pontos, os militares deveriam servir para nos proteger do imperialismo estadunidense. Não há a mínima hipótese disto. “A América Latina é o quintal dos Estados Unidos” (sic). Esta é a atitude da Presidência da República neste instante. Para eles, somos (e seremos) capachos para sempre.

Logo, os militares não servem para nos proteger contra a nossa maior ameaça. Não nos defendem porque não possuem força, não em razão de não quererem. Os Estados Unidos jamais permitiriam uma força bélica poderosa perto, nem longe, diga-se de passagem. A lógica militar é para deter, anular, no último caso, matar o inimigo. O brasileiro não é inimigo, o negro não é inimigo, os povos originais não são inimigos, os movimentos sociais não são inimigos. Eles que constantemente entram em choque com as polícias militares em todos os estados brasileiros.

Não sou otimista com esta ideia de reforma da polícia. Ela faz muito bem o seu papel de proteger quem ela tem que proteger. Os brancos da classe média e alta e, talvez, de certa forma, os brancos pobres. Paradoxalmente, os brancos pobres podem morrer nas periferias. São assassinados porque são pobres, enquanto os negros qualquer negro (mesmo rico e “famoso”) pode morrer na mão de um policial racista em razão de ser negro.

Vamos retomar um pouco o conceito de branquitude acrítica utilizando como exemplo, os grupos de supremacistas brancos que inflamam os seus discursos utilizando as mídias sociais para disseminar essa supremacia branca. Como é que o senhor reage a essa sistematização e organização do ódio racial?  Como é que chegamos a esse ponto?
Lourenço: Chegamos a esse ponto por ignorarmos. Nós de fato ignoramos a branquitude acrítica. Em 2008, em minha dissertação de mestrado, ao tratar do tema branquitude acrítica falei que a branquitude de ultradireita estava conquistando o poder na Europa pelo jogo democrático. Eles estavam se fortalecendo dia-a-dia e não estávamos atentos, nós latino-americanos, nós de todas as partes do globo. Quem tinha informações era a polícia, praticamente somente a polícia. Os movimentos sociais e a academia ignoraram. Chegaram ao poder primeiro na Europa e agora na América. Eles sempre existiram nas redes sociais, eles se tornaram experts no mundo da Internet. Além disso, vivemos a presidência de Donald Trump, branquitude acrítica, durante a sua gestão foi a pessoa mais poderosa do mundo.

Ele fortaleceu a branquitude acrítica no seu território e nos outros. Trump fez uso das redes sociais para se comunicar, fortalecendo-as ainda mais. A ultradireita faz uso muito mais eficiente da Internet do que a esquerda. Logo, uma maneira prática de se contrapor a branquitude acrítica no Brasil é realmente tirar o último Presidente da República eleito do poder. Estamos cientes que não haverá impeachment, embora tenhamos um elevado número de mortes evitáveis por causa da pandemia. Pessoas que faleceram por ação e omissão do governo federal. Mesmo assim, é evidente que não poderemos contar com a Câmara dos Deputados para conter o presidente. Portanto, não poderemos perder a oportunidade de trocá-lo nas próximas eleições.

Em função de uma suposta derrota de Bolsonaro nas eleições do ano que vem, como é que fica o bolsonarismo? Mesmo na hipótese do atual presidente da República não governar mais, como é que o senhor avalia que vão funcionar as células bolsonaristas no país inteiro?
Lourenço: Essa tendência de ultradireita vai existir durante mais algum tempo com menor força, porque o líder principal não estaria na Presidência da República. Todavia, essa manifestação política de ultradireita vai permanecer depois, tomara que se torne irrelevante. As forças de ultradireita existem na maioria das sociedades ocidentais em torno de 10%, 5%. O problema é quando crescem e tomam (ou conquistam) o poder. Quando eles estão no topo quebram a dinâmica do ordenamento social, minimamente, razoável. Levando-se em conta que são contra a existência de pessoas.

Quem são elas? Pessoas como eu, você, a maioria da sociedade global. Eles são contra nossa existência porque somos não-brancos ocidentais. Logo, nos consideram inimigos. Não deveríamos ter nascido. Portanto, deveríamos morrer imediatamente. A branquitude acrítica é um grupo pequeno da sociedade que deve permanecer como é uma ralé social, deve permanecer desimportante para não ameaçar o convívio social minimamente aceitável. Jamais poderemos aceitar o princípio que a pessoa deva ser agredida ou assassinada, por exemplo, por não ser cristã. Isto tem acontecido com moradores de favelas são do candomblé em bairros no Rio de Janeiro, por exemplo.  

Uma última pergunta. Houve uma grande discussão aqui na Baixada Fluminense sobre a não exibição do filme Marighella que muitos apontam como sendo uma parte desse processo de perseguição política que já vem desde 2018. Algumas pouquíssimas salas em shopping centers e centros culturais, graças ao esforço de coletivos locais, garantiram a exibição do filme, mas, infelizmente, as classes populares, de forma mais abrangente, não tiveram acesso a exibição do filme. O senhor acha que a perseguição ao filme é um medo da direita pela volta de um poder mais democrático, mais plural ao país?
Lourenço: A ultradireita inventa o discurso de ódio. Marighella foi um líder revolucionário que optou pela luta armada em determinado momento da sua vida, em outra parte da sua vivência optou pela luta no Parlamento. Portanto, ele é um símbolo de um negro revolucionário que escolheu luta armada contra a ditadura militar do Brasil (anos 1964-1985). Marighella foi um personagem marcante em nossa história, um personagem real que tentaram apagar. O movimento de ultradireita não queria que saibamos de sua existência. Wagner Moura, com seu prestigio merecido, neste filme que dirigiu, resgatou a memória de Marighella e de outros guerrilheiros que foram fundamentais para nossa história recente.

Wagner Moura, que também é um artista de esquerda, foi impedido de exibir seu filme no Brasil durante mais de dois anos. Felizmente, agora ele está conseguindo lança-lo em nosso país. Isto é um bom indicativo. Mostra que o poder deste governo de ultradireita eleito diminuiu. Evidentemente, ainda é muito forte, porém, está em queda neste instante, não sabemos como será na época das eleições? Enfim, vamos assistir ao filme, tenhamos nossa própria opinião sobre essa obra de arte. Depois vamos procurar ler o livro, a biografia dele e todos outros livros sobre os líderes revolucionários negros e brancos, e líderes revolucionários não-negros e não-brancos. Será um aprendizado importante.

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