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O IBGE precisa falar sobre identidade de gênero, diz Keila Simpson

Presidente Antra, a ativista critica a ausência de perguntas sobre a população trans no Censo Demográfico, e comemora a proximidade com a terceira idade

Rafael Ciscati

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CORREÇÃO: versão anterior desse texto afirmava que a PNS fora conduzida por meio de entrevistas telefônicas. O texto foi corrigido.

Era ainda 2016 quando a Associação Brasileira de Travestis e Transexuais (Antra) entrou em contato com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por meio de um ofício, pediu que o instituto incluísse no questionario do censo demográfico — cuja realização estava então  programado para 2020 — perguntas relacionadas à identidade de gênero. A ideia era investigar, no conjunto da população brasileira, quantas pessoas se identificam como cisgenero, transgênero ou travestis. “Esse é um dado importante para que se construam políticas públicas bem desenhadas ” afirma a ativista Keila Simpson, presidente e uma das fundadoras da Antra. ” Precisamos saber qual o tamanho dessas populações, para pensar políticas específicas para cada grupo”. 

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A resposta do IBGE veio na forma de um sonoro não. ” Argumentaram que os questionários já estavam prontos e que não havia recursos financeiros para uma nova mudança “, conta Keila. Desde então, mais de cinco anos se passaram e, ora por falta de recursos, ora por força da pandemia de covid-19,  o Censo Demográfico foi adiado sucessivas vezes. Remarcado para 2022, deve continuar sem perguntas direcionadas à população trans. “Na nossa lógica, existe uma resistência institucional [ à inclusão dessas questões]. Os dados que temos estão aquém da realidade”, afirma Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra.

ATUALIZAÇÃO: na última sexta-feira (3) a Justiça Federal do Acre determinou que o IBGE inclua questões relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual no Censo de 2022. Nesta quinta-feira (9), o Instituto disse ao colunisra Lauro Jardim, de O Globo, que a alteração dos questionários forçaria o adiamento da pesquisa. 

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Keila Simpson durante evento da Abong em São Paulo (foto: Brasil de Direitos)

Keila aponta nessa ausência uma forma de invisibilização. Foi essa também a falha, na opinião dela, da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Realizada pelo IBGE em 2019 e divulgada no final do mês de maio, o levantamento apurou dados relativos à saúde da população. Pela primeira vez em uma pesquisa do Instituto, perguntou qual a orientação sexual dos entrevistados. Os resultados dão conta de que 2,9 milhões de brasileiros se entendem como homossexuais ou bissexuais — o equivalente a 1,8% da população. A metodologia de apuração levantou críticas de especialistas, segundo os quais, em pesquisas desse gênero, é preciso cuidado para garantir a privacidade das pessoas entrevistadas, de modo a não desencorajar respostas: houve quem preferisse não responder à pergunta, e quem dissesse não saber a resposta. Esses dois grupos somaram 3,4% dos entrevistados. Levantou críticas, também, de quem notou a ausência de perguntas relativas à identidade de gênero. “Não somos homossexuais ou bissexuais. Somos homens e mulheres trans e travestis”, ressalta Keila, para quem a pesquisa, ainda que importante, foi insuficiente.

Aos 57 anos, a baiana de Salvador se declara uma excessão: no país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo ( e em que pessoas trans e travestis negras e negros  são vítimas preferenciais da violência letal), Keila caminha para a terceira idade. “Quero ser uma travesti centenária ” disse durante evento promovido pela Associação Brasileira de ONGs ( Abong) em São Paulo no final de maio. Keila é uma das diretoras da organização que reúne 227 grupos de todo o país. Na ocasião, o debate envolveu uma violência recem-sofrida por ela: numa viagem de trabalho ao México, como representante da Abong no Fórum Social Mundial, Keila foi barrada na imigração e deportada, apesar de ter todos os documentos em ordem. “Havia 20 pessoas no grupo. Eu era a única travesti, só eu fui barrada”, afirma, ressaltando a transfobia que, segundo ela, motivou a deportação. Desde o incidente, ela mantém contato com ativistas mexicanos que tratam do caso lá. “Em breve, devo participar de uma sessão com parlamentares mexicanos”, conta. 

Brasil de Direitos: Você criticou a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que investigou quantas pessoas no Brasil se declaram homossexuais ou bissexuais. Onde a pesquisa erra?
Keila Simpson: A pesquisa concluiu que há 3 milhões de pessoas que se consideram homossexuais ou bissexuais no país, e esse é um dado importante. Claro que nós, que atuamos no movimento, sabemos que esse número é muito maior. A forma  como a pesquisa foi conduzida é questionável: a pessoa, por medo de ser ouvida, pode se recusar a responder, pode se omitir. A metodologia pode ser discutida. Mas, para nós, o grande prejuízo está no fato de que o IBGE não incluiu nenhuma pergunta relativa à identidade de gênero. 

Por que a inclusão dessas questões importa?
Porque não somos homossexuais ou bissexuais. Somos homens e mulheres trans e travestis. Reivindicamos que se fale em identidade de gênero. Essa é uma discussão que levantamentos desde que começou-se a pensar na Política Nacional de Saúde Integral para a população LGBTQIA+. Para a saúde, corremos o risco de ser vistas como homens que fazem sexo com homens (hah). Porque a saúde é muito generalizada, é muito biologizada. Mas é importante compreender a integralidade do ser-humano. E é importante compreender qual o tamanho do público que vai ser contemplado por uma política pública. Essa nova pesquisa não nos contempla. 

Essa é uma cobrança antiga da Antra. Existe uma resistência do IBGE?
Entramos em contato com o IBGE em 2016, pensando na inclusão dessas questões no Censo Demográfico de 2020. O Instituto respondeu que não era possível alterar o questionário àquela altura, faltavam recursos financeiros. Depois disso, entramos em contato com a Defensoria Pública da União, que entrou com um ação civil pública contra o IBGE. Entendemos que o IBGE precisa incluir questões que nos permitam dizer quantas pessoas são lésbicas, trans, gays, queer. Precisa incluir toda essa infinidade de identidades e orientações sexuais. Se você não tem dados específicos sobre cada população, você tem políticas piores. 

No começo de maio, você foi barrada no aeroporto da Cidade do México, a caminho do Fórum Social Mundial. Foi um caso de transfobia?
Havia 20 pessoas na delegação da Abong que foi ao Fórum. Só eu, a única pessoa trans, fui barrada. Comigo, foi um episódio pontual. Mas é algo corriqueiro na vivência de pessoas trans e travestis: por todo o mundo, elas são barradas ao tentar migrar. Para mim, foi difícil porque eu viajava para exercer um trabalho. Fui impedida de trabalhar. A repercussão na imprensa brasileira foi grande. Decidimos fazer algo positivo a partir disso.

Como?
Queremos traçar estratégias para tratar da migração de pessoas trans. Talvez elaborar recomendações a ser seguidas, de modo que a migração dessas pessoas receba um olhar específico. Reunimos diversas lideranças na Abong para pensar nesses próximos passos. Além disso, estamos atuando nas instâncias internacionais. O parlamento mexicano foi instado a se manifestar. 

Como está sendo essa conversa?
Há ações do movimento trans ocorrendo no México, motivadas por esse caso. É um país complicado: o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, o México vem em seguida.  Os movimentos mexicanos estão debatendo com parlamentares, e a expectativa é de que eu participe de uma sessão no parlamento para contar o que me aconteceu. Além disso, logo depois da minha deportação, a deputada Salma Luevano me convidou a voltar ao país. Eu não tinha condições físicas de fazer isso. Mas seguimos em contato desde então.

Você disse que pretende ser uma “travesti centenária”. Num país violento como o Brasil, chegar à terceira idade é já uma conquista para uma pessoa trans?
É uma conquista. Quero ser uma travesti centenária, e minha atuação política, hoje, envolve mostrar para as pessoas que, se eu cheguei, todo mundo pode chegar. Eu vim de uma situação de muita vulnerabilidade. Não fui expulsa de casa — saí de casa porque queria conhecer o mundo. Mas foi a rua me acolheu, a esquina me acolheu e me formou. Tenho 57 anos e tenho o maior orgulho de dizer que sou prostituta. A escola não me formou porque ela não me aceitou. A sociedade me rejeitava. Foi na esquina que me formei a pessoa que sou. 

 

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