Para enfrentar milícias, é preciso combater violência policial, diz pesquisador
O sociólogo Daniel Hirata fala sobre o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, que, num período de 15 anos, analisou o crescimento de milicianos e traficantes
Fabio Leon
15 min
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Os bairros da Região Metropolitana do Rio, com alta presença da milícia, apresentam uma taxa de homicídios dolosos maior do que as áreas onde a milícia não é o grupo armado dominante. Na média, a taxa de homicídios em bairros com predominância das milícias, entre 2006 e 2021, foi de 218,3 mortos a cada 100 mil habitantes. Em bairros com predominância do tráfico, a taxa ficou em 210,5. Essa é uma das conclusões do levantamento inédito feito a partir do cruzamento de dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) com o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, relatório cartográfico produzido pelo Geni/UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), em parceria com o Instituto Fogo Cruzado.
Pela primeira vez, é possível ter a exata dimensão da distribuição geopolítica da criminalidade no Rio de Janeiro, onde as variáveis sobre quem (milícia ou tráfico) domina qual território, os impactos políticos e socioeconômicos nessas localidades, bem como as escalas de crescimento de cada grupo na Baixada Fluminense e Região Metropolitana do Rio são evidenciadas em detalhes.
Coordenador do Geni, o sociólogo Daniel Hirata estuda, há quase 20 anos, os mercados lícitos, formais, informais e as relações dessas atividades econômicas com grupos armados. Ao se criar o Grupo, Hirata diz que uma das intenções sempre foi fomentar o debate público e construir uma relação próxima com os atores e atrizes que atuam diretamente com o tema.
Já sobre os chamados “novos ilegalismos”, Hirata explica que se trata de um neologismo, criado a partir de estudos do filósofo francês Michel Foucault que buscou, a partir de um recuo histórico do início do século XIX, contrastar as diferenças entre legalidade e os diversos processos que se contrapõem ao sistema legal.
“Quando pegamos uma tipificação penal como a infração, por exemplo, a abordagem da linha de estudos de Foucault busca compreender a inserção dessa ilegalidade no sistema penal e os jogos políticos, econômicos e as relações de poder que estão por trás das diretrizes que a classificam como ato infracional. E esses ilegalismos vão variando historicamente e se sofisticando ao longo do tempo ”, explica o professor, que, por tabela, faz uma provocação, ainda segundo a abordagem teórica foucaultiana, sobre o conceito de gestão diferencial dos ilegalismos”.
“E se pensássemos, considerando esse jogo de leis e transgressões de leis, quais são os limites do que é tolerado e reprimido numa certa sociedade e num determinado contexto histórico? Se soubermos diferenciar uma coisa da outra, será fundamental para compreendermos o que acontece ao redor de determinadas práticas. Sobre o porquê do tráfico de drogas ser tão combatido nas favelas e tolerado nas camadas sociais mais privilegiadas da sociedade”, conclui Hirata.
Fórum Grita Baixada: O que é mais difícil em termos de planejamento de segurança pública hoje em dia do Rio de Janeiro? Evitar que o Estado se torne uma máquina de matar preto, pobre e favelado mais letal do que já é ou reduzir o avanço das milícias? Em tempo: já viramos um estado milicianesco?
Daniel Hirata: Essas duas coisas caminham juntas. Porque o uso desregulado ou ilimitado da força como sempre foi usado historicamente do Rio de Janeiro, mas de forma acentuada como nos últimos anos, acaba se tornando um motor de propulsão para a lógica de funcionamento das milícias. Quando você tem forças policiais que não respondem ou não compreendem que há limites legais são barreiras para o exercício de suas atividades, começamos a caminhar em direção a uma zona de penumbra que contribui para o aparecimento das milícias. Boa parte da justificativa de existência de grupos de extermínio, que são os “avôs das milícias”, se baseia no fato de que, na época do seu surgimento, a lei era um impedimento [à atuação da polícia] para deter o crime. Essa percepção não é necessariamente uma exclusividade fluminense ou brasileira, mas que aqui ganha contornos dramáticos. Me parece que o enfrentamento da brutalidade das forças policiais é o enfrentamento das milícias. Uma coisa está associada a outra. Falando de mercados ilegais que circulam de forma transnacional, está aí o arrego, um pagamento pecunário mediante uma certa quantidade de dinheiro, uma forma de extração e extorsão que as milícias generalizam de forma extra-legal. Uma coisa permite o funcionamento da outra.
Falando em arrego, até que ponto o poder público está corrompido pelos grupos criminais organizados?
Milícia não funciona sem conivência, tolerância, isso quando não há a participação direta dos agentes públicos responsáveis pela fiscalização de setores ligados às milícias. Vamos pensar em setores tradicionais de atuação das milícias, como o mercado imobiliário ou o mercado de transporte alternativo. Se a gente tivesse uma fiscalização ativa, uma mediação pública desses mercados, não teríamos atuação desses grupos organizados. Pra que essas autorizações extra-legais aconteçam, é necessária essa articulação com o poder público. Isso vai muito além dos policiais. Envolve órgãos não repressivos, representantes públicos nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal), pois são funcionários que vão atuar na máquina pública. Tem uma lógica de funcionamento convergente e articulada. Esse é um dos nós da questão.
A geografia que forma os 13 municípios da Baixada Fluminense contribuiu para a expansão das milícias de que forma quando se compara com a Zona Oeste por exemplo?
A Baixada foi um dos lugares em que as milícias mais cresceram. Cresceram na capital, particularmente na Zona Oeste, mas na Baixada cresceram muito em função da facção Terceiro Comando Puro (TCP). O Comando Vermelho cresceu muito, mas numa velocidade inferior ao TCP e às milícias. Esses dois grupos avançaram muito mais. Uma coisa interessante, quando observamos os resultados do mapa, é que a maior parte do crescimento das milícias se faz em áreas diferentes das adotadas pelo tráfico de drogas. O tráfico tem uma atuação predominantemente concentrada em favelas e conjuntos habitacionais e as milícias, no asfalto, nos sub-bairros. E a Baixada, como a Zona Oeste, tem muitos sub-bairros. Se a gente for pegar um modelo ou um padrão pelo peso territorial e populacional que as várias escalas geográficas têm, o Centro e a Zona Sul são muito pequenas em termos de expressão de domínio. Pra nós foi muito importante, em termos de base cartográfica, criar uma classificação de três categorias: favelas, conjuntos habitacionais e sub-bairros. Esses últimos são particularmente importantes em razão de serem áreas empobrecidas e como elas ajudaram na ampliação territorial das milícias. Na maior parte, elas estão posicionadas nesses sub-bairros. A nossa classificação sobre os controles territoriais é bastante flexível pra permitir justamente captar essas diferenças entre grupos armados, controle territorial e formas de urbanização.
A extinção da Secretaria de Segurança Pública, promovida pelo ex-governador Wilson Witzel, em 2019, foi um presente para a banda podre da polícia e as milícias, não?
Com certeza. Esse me parece ser um dos elementos fundamentais. É triste ver que não temos um candidato ao governo do Estado do Rio comprometido com o retorno da Secretaria de Segurança Pública. Temos alguns candidatos que estão propondo uma espécie de coordenadoria que articularia junto com as outras secretarias estaduais. A ideia de que algumas polícias poderiam ter autonomia administrativa e financeira foi colocada de forma comum a todos os candidatos, a Polícia Civil acabou de aprovar a sua própria Lei Orgânica que também reforça a ideia de uma autonomia administrativa e financeira e me parece que isso é algo muito ruim para a Segurança Pública porque o que estamos precisando no Rio de Janeiro não é autonomia dos policiais, mas um controle democrático da atividade policial. Elas, as polícias, já possuem autonomia em relação às instituições estatais. Basta ver o questionamento que as forças policiais fizeram ao Superior Tribunal Federal (STF), em relação a essas últimas grandes chacinas sob o âmbito da ADPF das Favelas, que proibiu operações policiais em favelas durante a pandemia. As polícias do Estado do Rio de Janeiro se arrogam o direito de questionar uma decisão da suprema corte do país. Se isso não é sinal de autonomização, eu não sei o que é. As forças policiais não respondem, como deveriam, aos comandos dos governadores. Isso resulta em polícias violentas, corruptas. Claro que não são todos os policiais que adotam esse comportamento, mas as instituições são, sim, violentas e corruptas. A única solução pra isso, que se conhece no mundo, é o controle democrático sobre a atuação das polícias. É organizar essas atuações através de protocolos bem definidos, monitorar o efetivo sobre o cumprimento desses protocolos, prestação de contas sobre o que se faz e a responsabilização sobre aqueles que agem fora dos limites determinados por lei. Uma vez que o Witzel abriu a caixa de Pandora, vai ser muito difícil isso tudo voltar pro seu interior.
Esse mapeamento mexe num vespeiro teórico-metodológico, detectado por Fórum Grita Baixada em conversas com outros especialistas em segurança pública, sobre se as UPP´s (Unidades de Polícia Pacificadora) teriam contribuído ou não para o fluxo migratório de grupos criminais organizados para a Baixada Fluminense. Qual a sua opinião sobre?
Nós do GENI sabíamos que havia, desde há muito tempo, e incluindo a época da implantação das UPP´s, denúncias, análises e comentários vindos de uma série de organizações de direitos humanos e movimentos sociais, enfim, um monte de gente estava percebendo, empiricamente, que as UPP´s estavam produzindo esse efeito, sobretudo, na Baixada Fluminense. Quando a gente observa o mapa dos grupos armados, a gente consegue detectar isso de maneira bastante objetiva, especialmente quando se percebe que o programa das UPP´s foi direcionado basicamente para as áreas do Comando Vermelho. Se não me engano, 40 UPP´s estavam em áreas dessa facção. Acreditava-se que a militarização desses territórios seria uma forma de enfrentamento ao tráfico de drogas. No mapa, há uma expansão do CV na Baixada Fluminense justamente durante esse período. O que era pra ser uma política de enfrentamento ao grupos armados em geral, mas ao CV em particular, acabou por proporcionar facilidade à sua expansão. Grupos armados se expandiram para áreas onde nunca havia domínio de ninguém. O problema foi amplificado. E sobre isso o Fórum Grita Baixada fala há muito tempo e bem melhor do que eu. Em termos de representatividade populacional e territorial, a Baixada é muito maior do que a Zona Sul do Rio. Fica a pergunta: as autoridades públicas dão a mesma importância e visibilidade ao que acontece na Baixada Fluminense? Temos que pensar em políticas públicas em geral, de modo metropolitano. Não dá pra imaginar que o que você vai planejar em uma cidade não vai gerar impactos imediatos no município vizinho, ainda mais quando a territorialidade da Baixada é muito dinâmica. Há pouca efetividade de instâncias que pensem a região metropolitana e é preciso acabar com esse tratamento “diferenciado” que acontece com a Baixada.
Um dado interessante sobre a pesquisa é que as milícias avançaram sobre sub-bairros, favelas e/ou conjuntos habitacionais sem controle territorial anterior. Se esta hipótese estiver realmente correta, há uma espécie de reviravolta, de acordo com o mapeamento, no que se refere à origem das milícias sob a perspectiva da territorialidade e o enfrentamento das facções do tráfico de drogas. Que reviravolta seria essa?
Se a gente pegar o período histórico do mapeamento, que compreende 2006 a 2021, nós pulamos de 8,7%, em seu início, para 20% da região metropolitana, no ano passado, sendo controlada por algum tipo de grupo armado. Mais que dobrou esse quantitativo. Com exceção da Amigos dos Amigos (ADA), que está praticamente em extinção, todos os grupos armados cresceram. O segundo ponto é quando as milícias surgem, pelo menos nesse formato mais recente, que data do final da década de 1990 e início da década de 2000, havia um enunciado ilegítimo de justificação, de que ela seria uma espécie de anteparo ao tráfico de drogas, pois, num lugar minimamente civilizado, você jamais imaginaria que um grupo paramilitar privado pudesse executar serviços que são do Estado. Isso vai contra as prerrogativas mais básicas do Estado de Direito. Nem os neoliberais mais radicais, com todo o seu desejo de privatizar quase que o Estado inteiro, tiveram a ousadia de propor um monopólio baseado na privatização da violência estatal. Mas houve essa defesa aqui no Rio de Janeiro. Políticos que se tornariam prefeitos, governadores, chamavam esses grupos de “autodefesas comunitárias”, como também eram chamados os paramilitares da Colômbia. Dependendo da escala geográfica que a gente trabalha, Baixada, Capital, Leste Metropolitano, enfim, a expansão das milícias se fez entre 80% a 90% em novas áreas, que não eram controladas por nenhum grupo armado. Então, nesse caso, as milícias não são uma interrupção visando frear o tráfico de drogas. Elas são o impulsionador da lógica de controle territorial armado em conjunto. Elas nunca poderiam ter sido vistas como uma solução para o tráfico de drogas. Então, ao verificar que, através de conflitos, as milícias conquistam territórios de outros grupos armados mediante essas porcentagens apresentadas no mapeamento, é realmente muito impressionante. Há, também, áreas com baixa densidade populacional que ficam entre o rural e o urbano em que as milícias avançaram.
Recentemente, o professor José Claudio Sousa Alves, autor do livro “Dos Barões ao Extermínio, uma história de violência na Baixada Fluminense” criou as expressões traficalização da milícia e milicialização do tráfico que diz muito sobre a circulação e obtenção de ganhos mercantilistas desses grupos armados em territórios dominados. O GENI espera algum tipo de “avanço” nessas relações de poder econômico da criminalidade?
Essa é uma questão muito importante porque joga a gente num horizonte de projeção no que se refere a tendências. Eu acho duas coisas. Primeiro: quando você tem um modelo de negócios que é mais lucrativo do que outro, há interesse de que ele seja replicado e copiado. A diversificação de atuação em mercados legais e ilegais das milícias é um sucesso. O tráfico de drogas atuava quase que exclusivamente no varejo. Um ou outro traficante conseguia acessar a escala atacadista do processo. As milícias começaram a explorar uma infinidade de mercados que têm a ver com o próprio urbano, com os aspectos da cidade, uma urbanização miliciana atrelada a várias modalidades de comércio como água, botijão de gás, gatonet, etc. E não me causaria espanto que o tráfico quisesse aprender a gerenciar e participar de mercados tão lucrativos. O caso mais emblemático é na Ilha do Governador, por exemplo, onde traficantes do Terceiro Comando Puro (TCP) implementaram um esquema de venda de botijão de gás igualzinho aos dos milicianos da Zona Oeste. É inevitável que isso aconteça. Por outro lado, é preciso que se faça uma análise das chamadas redes criminais. Você pode ter, por exemplo, policiais que pertencem ou não a determinadas organizações ou que simplesmente apoiam algumas dinâmicas de lucro ilegal. O que essas redes conectam? As redes milicianas possuem mais diversidade de mercados enquanto que as redes de facções ligadas ao tráfico ainda estão circunscritas a um encapsulamento. As milícias sabem como funciona o Estado, constroem relações e articulações. Eu diria que ainda temos diferenças entre esses dois grupos criminais organizados, mas não se tira o fato de que há uma diversificação de mercados bastante crescente no tráfico de drogas também
Publicado originalmente em “As forças policiais têm um poder de autonomia muito perigoso”
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