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Moda avança no combate a violações, mas falta transparência, diz ativista

Para Isabella Luglio, do Instituto Fashion Revolution Brasil, marcas devem prestar contas à sociedade. Em abril, semana de eventos discutirá potência e responsabilidade do setor

Rafael Ciscati

11 min

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Mais de mil pessoas morreram quando o edifício Rana Plaza desabou em Bangladesh, em abril de 2013. No prédio, trabalhavam cerca de 3 mil funcionários que costuravam peças para marcas conhecidas do mundo todo.  “Mas, no momento em que o Rana Plaza ruiu, ninguém sabia que marcas produziam ali”, lembra Isabella Luglio, coordenadora educacional do Instituto Fashion Revolution Brasil. A tragédia pôs em relevo as práticas – e violações  – trabalhistas da indústria da moda. E serviu de estopim para um movimento que cobra, dessa indústria, padrões mais elevados de responsabilidade socioambiental.

Uma década depois, a queda do Rana Plaza será tema de uma série de eventos e discussões sobre a indústria da moda no mundo. Com encontros marcados em mais de 90 países, a Semana Fashion Revolution acontece entre os dias 22 e 29 de abril. Segundo Isabella, vai lembrar as vítimas do Rana Plaza, e celebrar a importância cultural da moda.

No país, o evento é organizado pelo Instituto Fashion Revolution Brasil  – o capítulo nacional de um movimento global nascido em Londres em reação à tragédia de Bangladesh. À época em que o Fashion Revolution foi criado, num momento de rápida ascenção das redes sociais, o movimento pedia que consumidores usassem uma hashtag para pressionar a indústria a dizer #Quemfezminhasroupas. Desde então, o escopo de atuação (e o rol de hashtags) se ampliou. “Hoje, atuamos em três vertentes: social-trabalhista; ambiental e racial”, afirma Isabella.

Na avaliação dela, nos últimos dez anos amadureceu a discussão sobre os impactos socioambientais da indústria da moda. A mudança foi positiva, dado o tamanho e a relevância do setor:  estima-se que, em 2022, o mercado mundial de vestuário faturou mais de US$1,5 trilhão. Também há acúmulo de violações: segundo dados do projeto Escravo nem Pensar, o setor têxtil empregou, em condições análogas à escrava, 657 pessoas no Brasil entre 1995 e 2021. São frequentes os casos de trabalho precário e informalidade. Na  maioria da vezes, as violações são flagradas em algum ponto da cadeia de fornecimento. “A frequência aumenta conforme nos afastamos da atividade central da empresa. Falo das terceirizações, das quarteirizações”, diz Isabella.

Isabella conta que, sob as vistas de consumidores mais exigentes, a indústria vem buscando atacar esses problemas. Houve progresso, por exemplo, na área de rastreabilidade: mais empresas divulgam quem são seus fornecedores, onde trabalham e quem empregam. Mas ainda é necessário avançar. Anualmente, o Fashion Revolution produz o Índice de Transparência da Moda. A pesquisa avalia quais informações as empresas do setor divulgam a respeito de suas práticas. Em 2022, 60 marcas participaram do levantamento. “Somente 18 delas descrevem seu processo de devida diligência em direitos humanos ou meio ambiente”, afirma Isabella.

Brasil de Direitos: O desabamento do Rana Plaza aconteceu em 2013. Desde então, a indústria mudou?

Isabella Luglio: Esse desastre lançou um holofote sobre a indústria da moda. Trata-se de uma indústria gigantesca, presente na vida cotidiana de todas as pessoas, e que emprega muitos trabalhadores. Em especial, mulheres racializadas.  Mas, no momento em que o Rana Plaza  ruiu, não se sabia quem eram as marcas que produziam ali. Durante os trabalhos de resgate, bombeiros iam encontrando etiquetas em meio aos escombros. Frente a isso, alguns líderes da indústria se uniram, e decidiram que era preciso falar sobre os problemas do setor. O movimento Fashion Revolution surgiu a partir disso. A proposta, de saída, era levar as pessoas a pensar: “quem fez minhas roupas”? Dez anos atrás, vivíamos um boom das redes sociais, e essa questão assumiu a forma de uma hashtag. Queríamos que as pessoas refletissem como, por trás de cada peça, existem muitas vidas. Os consumidores começaram a questionar as marcas sobre isso. Desde então, avançamos na questão da rastreabilidade: conseguimos saber onde as roupas foram feitas. Mas ainda há muito casos em que não sabemos como a peça foi produzida. Isso é fundamental. Vivemos uma emergência climática, e a moda é uma indústria que emite grandes quantidades de gases de efeito estufa e de resíduos. Por isso, ampliamos o escopo de trabalho. Hoje, atuamos em três vertentes: social-trabalhista; ambiental e racial. Nos últimos dez anos, esses questionamentos ganharam corpo: deixaram de ser uma conversa reservada a pesquisadores e a círculos restritos. A conversa se disseminou

Quem mudou foi a indústria, ou os consumidores se tornaram mais exigentes e questionadores?

Foi um movimento conjunto. Nessa mudança, governos também desempenharam papel importante. Nos últimos anos, surgiram legislações relacionadas à crise climática que fizeram a indústria se adaptar. Sobretudo na Europa e nos EUA. No Reino Unido, por exemplo, as empresas precisam reportar a quantidade de mulheres e homens que empregam em cada cargo. Isso gera mudanças. Os investidores também estão mais atentos a critérios relacionados a sustentabilidade ambiental, social e governança (ESG, na sigla em inglês), o que obriga as marcas a mudar inclusive para assegurar lugar no mercado.

Violações trabalhistas ainda são comuns na indústria?

O trabalho análogo ao escravo ainda é comum na indústria de confecção de moda. E a frequências dessas ocorrências aumenta conforme nos afastamos da atividade central da empresa. Falo das terceirizações, das quarteirizações. Nessas ocasiões, a empresa diz que não sabia, diz que a auditoria não chegou até o fornecedor. É importante ressaltar que elas têm a responsabilidade de olhar para as suas cadeias de fornecimento e realizar o que chamamos de “devida diligência”. Trata-se de mapear os riscos da cadeia. As empresas estão cientes de que, ao quarteirizar a produção, os riscos de violações aumentam. As marcas estão mais atentas. Ainda assim, são poucas as que divulgam fazer uma devida diligência de direitos humanos. Nos últimos anos, tivemos alguns flagras de trabalho escravo contemporâneo no Brasil que chamaram a atenção para o problema. Quando recebemos denúncias, sempre direcionamos para o Ministério Público do Trabalho (MPT). E temos um bom respaldo. Nesse campo, Brasil é bom exemplo. Mas, nos últimos anos, tivemos falta de investimento na fiscalização.

Muitas violações trabalhistas e impactos ambientais acontecem ao longo da cadeia de fornecimento. Como controlar uma indústria com fornecedores tão pulverizados?

Um primeiro passo é que as marcas divulguem quem são seus fornecedores. No passado, isso provocada calafrios na indústria: as empresas tinham medo de perder fornecedores para a concorrência. Com o tempo, perceberam que suas peças eram produzidas pelos mesmos fornecedores. E que o diferencial, muitas vezes, estava no tipo de peça produzida e em todo o trabalho feito em torno da marca. A diferenciação não estava tanto no fornecedor em si. É preciso que as marcas divulguem o nome do fornecedor, endereço, a divisão por cor e raça dos funcionários desses fornecedor. Verifiquem sem o fornecedor está associado a algum sindicato. Isso é positivo para a marca, que pode ser notificada caso seja descoberta uma violação. Para os trabalhadores, traz a segurança de saber para quem estão produzindo. Além desse primeiro passo, é importante que as marcas façam auditoria dos fornecedores. Avaliem quais os riscos, e verifiquem se está tudo certo. Há também uma questão mais profunda, que é a da devida diligência. Trata-se de se assegurar que os processos estão alinhados de modo a garantir o respeito aos direitos humanos. É preciso mapear riscos que podem levar a violações de direitos humanos, violações trabalhistas e impactos ambientais. E isso precisa ser feito antes de a operação começar, enquanto ela ocorre, e depois de seus término. A marca que encerra suas atividades em uma cidade precisa, por exemplo, saber quais os impactos que ela provocou para os recursos hídricos do local. Não é um trabalho simples, mas é essencial que aconteça. E é importante que as marcas não consultem apenas especialistas para fazer isso. Elas precisam ouvir os trabalhadores locais, para compreender os riscos reais e as particularidades do local.

As marcas fazem isso?

Todo ano, publicamos um índice de transparência da indústria da moda. Ele avalia quais informações as marcas divulgam sobre seus processos, mas não audita as respostas. Percebemos que são poucas as marcas que são transparentes sobre essas questão da devida diligencia. No ano passado, analisamos 60 marcas. Somente 18 delas descrevem seu processo de devida diligência em direitos humanos ou meio ambiente.

Há cinco anos, vocês publicam um Índice de Transparência da Moda. A ideia do trabalho é criar um mecanismo de controle social dessa indústria?

Essa metodologia veio para o Brasil em 2018 por causa da importância do país. Somos um dos poucos países em que é possível encontrar a cadeia fechada da indústria: no Brasil, é possível produzir uma peça de roupa do começo ao fim. Da matéria-prima ao pós-venda. Em 2018, fizemos uma pesquisa piloto com 20 marcas. A cada ano, adicionamos mais 10. Em 2023, serão 60. Entendemos que as marcas precisam ser transparentes e divulgar o que fazem. Uma vez que são tão grandes, e que lucram tanto, elas têm a obrigação de prestar contas à sociedade. E isso é bom para a marca: a transparência é uma vantagem competitiva, é benéfica para a imagem da marcar perante fornecedores. No índice, analisamos o que as empresas divulgam sobre impactos sociais e ambientais relacionados a suas operações e as de seus fornecedores. Trata-se de um questionário amplo, baseado diversos padrões internacionais: dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até os princípios orientadores da OCDE. Para o Brasil, afizemos adaptações: incluímos mais indicadores sobre desigualdade racial, por exemplo.

Um dos indicadores analisados tenta entender se as marcas produzem em excesso. As empresas são incentivadas a produzir para lucrar. A ideia de que deveriam produzir menos não é contrária aos interesses da indústria?

Esse é um dos pontos mais delicados do nosso contato com as marcas. A rapidez da produção é inversamente proporcional à sustentabilidade. Nas nossas conversas, destacamos que pouco adianta a marca se esforçar para usar materiais mais sustentáveis, se ela produzir uma quantidade exorbitante de artigos a partir desse material. Também é importante falar sobre como as marcas incentivam o consumo. Temos um indicador que tenta descobrir se as marcas divulgam quanto elas produzem anualmente. Pouquíssimas marcas fazem essa divulgação. Não sabemos qual o tamanho do problema, e ter essa clareza é o primeiro passo. Olhara para esse volume é importante, inclusive para buscar soluções viáveis. Em 2023, incluímos um indicador que aponta se as marcas assumiram compromisso com o “decrescimento”. Porque, não tem como – nossos recursos são finitos. A ideia da superprodução é insustentável. Temos consumidores mais responsáveis, e as indústrias tentam melhorar. Ao mesmo tempo, na contramão disso, surgem novos modelos de negócio: as ultra-fast-fashion. Indústrias que mantém um volume de produção surreal, e que estimulam o consumo constante.

O que esperar da Semana Fashion Revolution?

Ela é um momento de celebração. Acontece todo ano, na semana ao redor do dia 24  de abril – que foi quando aconteceu o desabamento do Rana Plaza. O tema deste ano é, justamente, os dez anos do desabamento do prédio. O objetivo é lembrar das vidas perdidas, e celebrar a força que existe na indústria da moda. A criatividade, comunidade e a comunhão. É um evento global que deve acontecer em 90 países. A semana brasileira é uma das mais estruturadas. Temos uma rede de representantes locais, espalhados pelo país. Temos também 110 professores-embaixadores, que são docentes que levam o trabalho do Fashion Revolution para as instituições de ensino. E temos 80 estudantes-embaixadores, que querem ser ativistas e conversar com seus colegas sobre o assunto. Essa rede se organiza para realizar uma série de atividades: rodas de conversa, palestras com especialistas locais, feiras de troca. O evento se baseia no Manifesto Fashion Revolution: 10 pontos que o movimento acredita serem essenciais para a moda ser uma moda melhor. Falam sobre água, respeito a origens culturais, diversidade, entre outros. Incentivamos que as pessoas que organizam os eventos escolham um desses dez pontos nos quais se aprofundar.  E reforçamos que todos usem os pontos quatro e cinco do manifesto, que tratam de diversidade e inclusão.

 

Foto de topo: Unsplash

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