Crianças sabem o que é racismo, mesmo que não saibam nomeá-lo, diz pesquisadora
A educadora Giselle de Souza Maria conta como, após uma infância marcada pelo preconceito racial, hoje trabalha com políticas públicas antirracistas na cidade de Queimados (RJ)
Fabio Leon
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Foto de topo: Nappy
Enquanto escrevia sua dissertação de mestrado, a socióloga Giselle de Souza Maria decidiu acompanhar o cotidiano de estudantes de uma escola pública em Japeri, na Baixada Fluminense. O colégio, público, funcionava em um bairro periférico, e os alunos viviam em extrema vulnerabilidade econômica e social. O trabalho, lembra ela, fez Giselle revisitar memórias de sua própria infância.
“(…)Permaneci na mesma escola, dos seis aos quatorze anos, e lá pela antiga 7ª série, me aproximei de uma colega de classe com a qual tinha coisas comuns, como a melanina acentuada na pele, traços negróides e a sensação de falta de pertencimento. Nós não passávamos por “morenas”, “éramos escuras”, lembra a pesquisadora. No ambiente escolar, a amiga era vítima de racismo. “Ela me mostrou como resistia e retrucava. Nos tornamos próximas e complementares. Ela educou a minha docilidade e eu sua empáfia. Uma das lições que ainda ressoam é “somos iguais a todas as outras pessoas aqui, embora alguns nos queiram fazer acreditar que não. Quando quiserem te diminuir não aceite!”.
A pesquisa de Giselle resultou na dissertação “Enunciações da Raça e Cor: Encontros Com Crianças Do Ensino Fundamental”, pela Unirio. A escola, cujo, para evitar o reforço de estereótipos e preservar alunas e alunos, é um símbolo perverso das contradições que perfazem territórios empobrecidos onde a maioria da população é formada por negros, pobres e periféricos.
Durante a pesquisa, Giselle conta que lhe interessava entender como as crianças entendiam o racismo. Descobriu que, mesmo que não soubessem nomear o fenômeno, os estudantes identificavam seus efeitos no dia a dia. “Nunca veio pra mim nenhuma resposta assim: racismo é isso, isso e isso. Mas não que elas não soubessem”, lembra ela. “Elas me trouxeram tantas experiências e uma profunda análise de que elas sabiam que aquilo era racismo, que era violência, seja ela policial contra corpo negro, com riqueza de detalhes ao perder familiares a base de execuções sumárias quando a pessoa já estava rendida pela polícia, a violência do companheiro contra a mãe, que quase mata a mãe sob a perspectiva da violência doméstica”.
Hoje, Giselle é gestora da Coordenadoria de Política de Promoção da Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos da prefeitura de Queimados. No cargo, se encarrega de pensar e implementar estratégias para combater o racismo que vivenciou na infância, e que lhe deixou marcas. “Ao se falar sobre o combate ao racismo e como tornar mais eficiente seus métodos, é preciso ver que ele é estruturante e extremamente estruturado. A partir dessa percepção, se concentrar em algumas perspectivas consideradas primordiais e onde estão algumas raízes do problema, como a necessidade de implementação de políticas afirmativas, de acesso à educação e da construção de um currículo que reflita a diversidade sobre a qual fomos tornados povo, que mostre a cosmovisão dos povos originários e que seja antirracista”, afirma a gestora e pesquisadora.
Mesmo como gestora pública, Giselle conta que vive situações desafiadoras do ponto de vista racial e do machismo.
Fórum Grita Baixada: Como é tratar de políticas públicas antirracistas num conjunto de territórios como a Baixada Fluminense? Que dificuldades você encontra para implementar essas iniciativas?
Giselle de Souza: É muito desafiador. Embora eu tenha nascido no Méier, foi em Queimados que eu fixei minha vida. Fiz graduação na UERJ, pós na Cefet, mestrado na Unirio, fiz concurso pra trabalhar em outras cidades. Tem dez anos que eu estou servidora do magistério do município de Queimados como supervisora escolar. Com isso, estabeleci uma relação direta com as escolas da rede. Você visita o campo, acompanha a estruturação de documentos, analisa como é que foi na projeção da educação. E aí eu procuro a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em Nova Iguaçu para estudar, em 2015, e escrever um projeto de mestrado sobre questões de racismo vivenciadas na escola. Passei no mestro na mesma época em que fui convocada pela Secretaria de Educação de Japeri para trabalhar no município. Conduzi minha pesquisa em Japeri, numa escola municipal próxima do complexo penitenciário que há na região. Em 2017, como servidora de dois vínculos, eu trabalhando em Japeri, à noite, na educação de jovens e adultos, e durante o dia aqui na coordenadoria de promoção racial em Queimados, comecei a desenvolver um trabalho de educação étnico-racial na escola porque as crianças exigiam isso de mim. O olhar delas, e a dinâmica da escola exigida na vida de um orientador pedagógico, exigiam que eu enfrentasse coisas que eu não queria enfrentar, por já ter vivido situações de racismo na escola. Vi tudo aquilo acontecendo de novo com outros alunos, e aí eu me perguntei: como é que eu vou me esquivar disso? E aí, quando essa gestão do prefeito Glauco Kaizer se estabelece, eles me convidam para desenvolver um trabalho de educação mais voltada para as relações étnico-raciais. Então é assim que eu venho parar aqui. O desafio inicial era ampliar e qualificar a formação de professores do município sob essa ótica antirracista. Não era somente iniciar o curso, a gente tinha que montar uma base, tinha chão pra pisar. E aí a gente entendeu que o Conselho de Igualdade Racial estava sem mandato ativo, a gente não tinha adesão ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o que dificultava muito a gente se conectar com outros municípios. A gente não tinha assessoramento, faltava mais comunicação com Brasília. Usando uma metáfora: os pés da mesa não estavam firmes. Tivemos de começar do começo. Chamamos representantes da sociedade civil para ter conhecimento mais apurado das demandas que precisavam ser atendidas.
Como foi chamar essas organizações da sociedade civil? Foi difícil?
Alguns se apresentaram e não precisei de muito esforço. Em outros casos, precisamos catar o telefone de quem ainda não havia sido chamado e o representante veio. E tinha uma outra questão para eles muito latente quando eu cheguei, pelo fato de eu ser uma mulher cristã. Para algumas pessoas, era muito difícil ver alguém cristão nesse lugar, elas achavam que a condução do trabalho seria tendenciosa para o meu grupo de fé.
A Lei 10.639, que completou 20 anos ano passado, preconiza que estabelecimentos de ensino fundamental e médio ensinem História e Cultura Afro-Brasileira. Entre a teoria e prática, o que a senhora observa?
São 20 anos importantes, de muitos avanços, mas temos muito para avançar. Em Queimados, ficou estabelecido o GEPERC, que é o Grupo de Pesquisa das Relações Étnico-Raciais do município, instituído por uma portaria do Diário Oficial. Então, não tem como você não falar disso na escola com viés de visibilidade da potência, da criação, da alegria, da inteligência, do corpo, do conhecimento das populações negras que vieram pra cá. Incomoda muito o viés histórico dos livros da escola, que mostram uma passividade. Parece que simplesmente aceitamos sermos escravizados, que se esqueceu da visibilidade das revoltas das populações negras que vieram pra cá. Temos que mostrar a nossa potência. Daí a importância dessa lei e de a gente continuar. Quando eu vejo professor na escola, lutando por um estudante ou pela alfabetização de uma criança, fazendo com que se construa com eles conhecimento, ajudando a alargar a dimensão do pensamento crítico, então vale a pena. O que eu avalio? A gente caminhou bastante. É importante ressaltar como o governo federal também se colocou nessa perspectiva de formação de professores. Então, aqui em Queimados, a gente tem uma trajetória muito forte dentro dessa questão do magistério, mas a gente precisa avançar porque o racismo, ele é estruturante, ele é extremamente estruturado, ele se reinventa, é sutil, é invisível para muitos. Não é porque trilhamos essa luta há 20 anos que está bom. Nós fomos qualificando esse projeto pedagógico, dando mais aprofundamento ao conteúdo das aulas. Mas é preciso se debruçar, construir práticas mais efetivas. A escola é viva porque a sociedade é viva. E o que acontece na sociedade, acontece na escola. Se as pessoas são racistas ou machistas vai acontecer na fala da sua criança, vai acontecer na sala de aula, com o seu colega de magistério quando você estiver tomando o seu cafezinho. E como a gente enfrenta tudo isso? Eu vivi uma situação muito delicada, tinha as minhas próprias cicatrizes, alguma coisa me dizia que eu também não estava a fim de mexer nisso. Até que um professor veio pra mim e me trouxe duas crianças. Elas brigaram na sala de aula, teve gritos e xingamentos. Aí você vai ver que quando você quer causar a dor no outro, quando você quer ferir, ofender, você mexe com a identidade e com a questão da beleza. Você encontra uma maneira de afetar aquela pessoa negativamente. Mas não é uma escolha encarar, existe uma lei que diz que você precisa fazer alguma coisa. Não se pode negligenciar o direito desse estudante, de aprender sobre a história de África, sobre a cultura afro-brasileira. E eu não posso me furtar de participar ativamente na construção cidadã de pessoas que respeitem as outras, que vejam a negritude e a cor da pele como algo positivo.
De acordo com a pesquisa “Percepções sobre Racismo no Brasil”, encomendada pelo Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista) e o Instituto de Referência Negra Peregum, apenas 24% da população sabe o que é ou já ouviu falar em Racismo Ambiental. Pedagogicamente para as crianças e idade escolar, esse conceito é de fácil entendimento? Qual a avaliação que a senhora faz sobre isso?
Eu acho que, mais do que classificar, o racismo ambiental não é sobre isso. O que a escola quer, que também é meu desejo, como professora, é que o aluno entenda o lugar que ele está ocupando naquele bairro, naquela sociedade, e que ele entenda que o direito dele de ter água potável, de ter saneamento básico está sendo negligenciado. E por que no Centro não é tão negligenciado e dentro do bairro mais distante do Centro esses direitos são negligenciados? Então, mais do que conceituar a ciência ambiental, o aluno precisa fazer uma leitura do mundo dele. E aprender na escola, e não só nela, ferramentas que possam ajudá-lo a transformar aquela realidade. Porque, por exemplo, eu trabalhei numa escola em que você não tinha CRAS, que são equipamentos públicos de assistência social, porque era um bairro com extrema vulnerabilidade social. Você não tinha CRAS, CREAS, não tinha uma pracinha, um balanço. Então, a minha questão com as crianças era entender como elas viam o racismo através do olhar delas na pesquisa. Eu queria saber como é que é a relação delas com o mundo, com os outros, quais são as leituras que elas fazem. E tendo o racismo como pano de fundo. E nunca veio pra mim nenhuma resposta assim: racismo é isso, isso e isso. Mas não que elas não soubessem. É que a pergunta também não era sobre definir, pra mim, o que era racismo, dessa maneira. Elas me trouxeram tantas experiências e uma profunda análise de que elas sabiam que aquilo era racismo, que era violência, seja ela policial contra corpo negro, com riqueza de detalhes ao perder familiares a base de execuções sumárias quando a pessoa já estava rendida pela polícia, a violência do companheiro contra a mãe, que quase mata a mãe sob a perspectiva da violência doméstica. Mas também como é importante a presença da família nesse cotidiano de restauração. As negociações que existem em casa para coisas simples como pentear o cabelo. Existe um lado afetivo você repousar sua cabeça nas pernas da mãe ou da avó para ela fazer as trancinhas.
Recentemente, no 13º Encontro da Rede Global de Cidades Antirracistas, ocorrido em Nova Iguaçu, duas gestoras públicas de municípios da Baixada relataram dificuldades em se agregar aos calendários de suas cidades, celebrações de personalidades históricas negras, como Teresa de Benguela. O que pode ser dito sobre isso?
O racismo ele é muito sofisticado. O (ator e pesquisador) Abdias Nascimento, que escreveu “O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado”, afirma que a grande metáfora do racismo à brasileira é se perguntar: “mas tem racismo no Brasil?”. Você não consegue nem ver, porque deu certo. Como “não é o racismo, que acontece nos Estados Unidos” ou o “Apartheid na África do Sul”, então não é racismo. A gente tem muita dificuldade de ver o racismo no Brasil. De ver o que acontece com as populações negras, encarceradas e o que acontece com a juventude negra, sobretudo os meninos negros e jovens negros. Não é diferente com as mulheres. Na época da pandemia, onde estavam as mulheres pretas? Nas funções de cuidar. Elas estavam adoecendo enquanto cuidavam das patroas. Elas estavam nos serviços gerais, nos hospitais. Quando você vê que uma mulher negra, uma das primeiras que soubemos no nosso Estado, que ela foi contaminada e morreu, porque ela estava na casa da patroa e a patroa pegou a covid em um lugar onde a diarista nem pisou e sequer avisou, isso é o quê? Ah, mas há quem diga que era uma relação monetizada, que tinha acordo e que está tudo bem. Não está tudo bem! Uma pessoa morreu. E o que eu quero dizer é que o lugar da mulher negra nessa pirâmide aí, está sendo tensionado por nós. Pra gente ocupar outros lugares, quebrar essa base tenebrosa. E ter direito de viver, não só sobreviver, a gente quer resistência, existir plenamente, bem-viver. E aí quando uma pessoa diz que tem dificuldade com uma data, se você olha pro passado escravocrata brasileiro comercial, olha como a sociedade foi construída, não é de se espantar. Mas, aí a gente precisa tensionar esse lugar, porque já deu. Na nossa experiência, tanto o Conselho como essa Coordenadoria, sempre foram majoritariamente ocupados por homens. A gente viveu situações em que os homens queriam dizer o que a gente tinha que fazer, eles queriam mandar na gente. E como gestora pública, trabalhando na gestão pública, não foi diferente. Eu já ouvi “quem é essa neguinha que quer mandar na gente?” E depois vem a sutileza do racismo: “Não, você entendeu errado, não foi nada disso”. Então não é de se estranhar que isso aconteça em outros territórios, porque a gente vivencia isso. Todas nós vamos passar por isso, mas o bom é que a gente não passa sozinho. Uma das primeiras coisas que a gente fez aqui, foi marcar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha (25 de julho), marcar o dia de Teresa de Benguela. Fizemos uma ação pública na cidade, levamos serviço para o povo, atividades culturais. Teve exibições de vídeo, roda de conversa, serviços de equipamentos da assistência da saúde para estar presente num bairro, numa quadra. A gente passou a dar visibilidade pra datas que envolvam mulheres. No segundo ano, fizemos um seminário sobre saúde da população negra, com muitas mulheres na mesa, no teatro municipal de Queimados. No ano passado, nós pedimos a todas as secretarias que indicassem duas ou três servidoras que se autodeclarassem negras e que precisassem ser conhecidas pelos outros servidores e homenageadas por todos os equipamentos. Então a gente encheu o auditório do teatro Maria Alice Vergueiro com mulheres da sociedade civil e do Executivo, pra celebrar essa data. Chamamos uma mulher indígena pra fazer uma oficina, meninas da sociedade civil, tivemos oficinas de maquiagem, de poesia, uma potência negra, que envolvesse alegria, criatividade, tudo isso para lembrar quem foi Teresa de Benguela.
Na sua opinião, o fato de haver mais Conselhos Municipais de Promoção de Igualdade Racial hoje em dia, inclusive em cidades da Baixada, traz algum entendimento de avanço nesse cenário? As lutas antirracistas funcionam melhor se elas participarem de uma perspectiva mais governamental?
O município é a esfera mais próxima do cidadão pra lutar por qualquer que seja o seu direito ou qualquer que seja a sua demanda. Eu posso ter um conselho federal, um conselho estadual, mas eu moro em São Roque, sou cria de Queimados. Ter por aqui um conselho ou uma associação é importante. Há um avanço e um respeito muito grande da prefeitura a todos os Conselhos. Todos estão ativos e eles operam. E é importante ter representações de movimento negro, no máximo de Conselhos possível, pra que a gente não fique no acostamento, discutindo as coisas somente entre nós. Eu tenho no Conselho de Meio Ambiente, por exemplo, que eu participei até o ano passado, muitos jovens negros militantes que estão conectados a movimentos mais amplos, fora do Estado, fora do Brasil, e que estão tensionando e construindo também políticas públicas, se posicionando de forma crítica, trazer essa tensão para o Executivo acompanhar. Não existe uma gestão pública democrática, de fato, se a gente não faz diálogo só com as pautas da sociedade civil. A gente diz sem racismo, tem democracia. Então eu não posso não ter conselho. Nós temos que receber as demandas da sociedade civil e aperfeiçoá-las nos planos plurianuais, na execução de recursos para o Conselho como também precisamos fazer o braço formativo do Conselho de intervenção direta em espaços.
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