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Visibilidade trans: 3 ativistas contam por que representatividade importa

No dia 31 de março é celebrado o dia internacional da visibilidade trans. Para ativistas, demanda é caminho para conquistar direitos e combater violências

Maria Edhuarda Gonzaga *

11 min

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foto: Mídia Ninja

João Gabriel Silva, ativista da Associação Baiana de Travestis, Transexuais e Trangêneros em Ação (Atração), acredita que as pessoas trans vão se sentir visibilizadas quando a sociedade – em especial as pessoas cisgenero – entenderem que, para elas, a transexualidade é mais um aspecto da vida. Um aspecto importante, mas um entre muitos: “Somos mais que isso. É algo que faz parte de nós, mas não a única coisa que importa”. 

Já Adélia Prado, do Coletivo Coloafro, do Pará, pontua que só existirá uma visibilidade efetiva quando as travestis não forem “peças únicas” nas rodas de conversa, no mercado de trabalho e nos espaços políticos de decisões. “Foi ao lado de outras pessoas trans e travestis que eu me senti visível pela primeira vez”. 

Em contrapartida, Déborah Sabará, do Grupo Orgulho Dignidade e Liberdade (GOLD), do Espírito Santo, acredita que visibilidade é uma tentativa de “amenizar a violência através de algumas possibilidades”. Para a liderança, o protagonismo é uma forma de construir uma política que repare as agressões e estigmas que pessoas transexuais enfrentam ao longo da vida – às vezes, desde a infância. 

Seja na Bahia, no Pará ou no Espírito Santo, há um ponto de encontro: é urgente pensar na existência das pessoas trans, dentro e fora do movimento LGBTQIA+. Afinal, entre avanços e retrocessos, as pessoas trans no Brasil convivem com contradições: se, de um lado, uma travesti  – Symmy Larrat –  ocupa o  cargo de secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+; de outro, uma decisão do governo manteve o campo “sexo” – referente ao sexo biológico – no novo RG dos brasileiros, contrariando uma demanda dos movimentos LGBTQIA+.“Por causa disso, meu nome social, João Pedro, vai constar ao lado do sexo ‘feminino’”, aponta o ativista da Bahia.

>>Lei também: LGBTQIA+: o que a sigla significa, e por que ela muda de tempos em tempos

No dia 31 de março, data em que se celebra o Dia Internacional da Visibilidade das Pessoas Trans e Travestis, a Brasil de Direitos convidou três lideranças para contarem suas trajetórias de vida e nos movimentos sociais. Abaixo, elas nos contam porque lutam por visibilidade. 

 

 

“A visibilidade nos dá o direito de sermos protagonistas.”

Déborah Sabará, coordenadora de ações e projetos do Grupo Orgulho Liberdade e Dignidade

Nós, pessoas trans, quando crianças, não transitamos nos gêneros que fomos designados ao nascer. O que a minha família me conta e eu lembro: sempre tive meus comportamentos e desejos orientados por aquilo que geralmente atribuímos ao feminino. Foi a partir disso que as violências em casa, na escola e com vizinhos começaram a acontecer. As pessoas te entendem como um corpo que saiu da rota que você tinha que seguir. 

Hoje eu tenho a certeza de que as crianças trans existem. Eu fui uma e me percebi uma quando comecei a sofrer essas violências porque começaram a perceber que meus comportamentos não eram aqueles que a sociedade gostaria que eu reproduzisse. 

No entanto, é preciso que tenhamos esse debate de que não seguir os comportamentos orientados por gênero não significa ser trans ou homossexual. A sexualidade e a nossa identidade tem muitos fatores além desse. 

Eu cresci numa família muito religiosa, meu pai era até bem rígido com as orações e os rituais dentro de casa. Mesmo assim, ele também nos deixou livres, em certa medida, para seguir os caminhos religiosos que quiséssemos. Eu me identifiquei com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), uma linha da igreja católica que trabalha com a Teologia da Libertação e prega a mudança social. Foi dentro dela que comecei a minha trajetória com os movimentos populares e de base. 

Apesar dos diálogos políticos ali dentro – tínhamos contato com os movimentos estudantis e sindicais, por exemplo – ela sozinha não dava conta da transexualidade. 

Conheci a GOLD em 2008, quando aconteceu a primeira Conferência LGBT do Brasil. Alguns ativistas me procuraram para participar dessa construção na conferência estadual. Na época eu ainda nem me considerava uma ativista na luta pelos direitos da população LGBT.  Quando eu comecei na GOLD, quis trazer um pouco daquilo que eu tinha aprendido nas CEBs. Não a parte religiosa, mas de diálogo entre os campos dos direitos humanos. Não somos unilaterais, não nos restringimos atuando apenas no movimento LGBT. Estamos presentes trabalhando cultura, trabalhando com crianças e adolescentes e também na luta pelo acesso à saúde. 

Em 2008, na Conferência, já falávamos de nome social em todos os espaços. Em 2024 ainda temos dificuldade com isso, mas já avançamos porque temos pequenas legislações, portarias e decretos. Não imaginávamos que o Sistema Único de Saúde e tantas outras empresas e instituições iriam aderir a nossa luta e dar o acesso do nome social para nós. Conseguimos e não é pouco.

Olhar para mim, hoje, como uma liderança trans é fazer a ficha cair agora. Sofremos estigmas desde crianças. Violências físicas, psicológicas e emocionais. Uma agressão que começa na perda do direito de ser feliz plenamente. Algumas pessoas que conquistam isso não percebem que é uma conquista para outras. Deveria ser uma luta de todos, inclusive da comunidade LGBT, que às vezes ainda estigmatiza as pessoas trans. 

Ver tudo que está acontecendo depois de anos e ter feito parte da história, do debate e da construção vai além da emoção. Sinto uma satisfação por estar cumprindo com o papel que eu me propus a dedicar minha vida.  

Tenho transformado as palavras visibilidade, representatividade e protagonismo em um mantra. A visibilidade trans é quando damos o direito para essa pessoa, que foi rompida da sociedade e retirada dos seus direitos de estudo e afeto, a amenizar essa violência através de algumas possibilidades. 

Dar visibilidade é, inclusive, ter espaço em entrevistas como essa. Se formos alguns anos para trás, ninguém gostaria de propor entrevistas com pessoas trans a partir de um viés positivo. Era sempre aquela que assaltou, roubou ou foi assassinada. Ainda hoje, nossos corpos são sexualizados e vistos como chacota. Então é uma política de construção, de mostrar que somos capazes mesmo após terem nos retirado todos os direitos. 

A visibilidade nos dá o direito de sermos protagonistas. 

 

“Quando a população trans conquista algo, eu me sinto visibilizado, entendendo que não podemos regredir”

João Gabriel Silva, integrante da Associação Baiana de Travestis, Transexuais e Trangêneros em Ação (Atração) e do Coletivo de Trans pra Frente

Quando eu me entendi um homem trans eu já estava fora de casa e trabalhava. Foi, em muitos aspectos, tranquilo. As pessoas têm um imaginário de auto-ódio das pessoas trans que nem sempre é uma realidade. Cada vivência de uma pessoa trans é particular e individual. 

Àquela altura, eu já lutava pela conquista de direitos da população LGBT. Comecei a me engajar enquanto uma mulher cisgênero e bissexual. Eu estudava bastante sobre homens trans e pessoas transmasculinas durante o processo de gestação porque eu sou enfermeiro obstetra e fazia residência em obstetrícia. Conforme eu ia conversando com homens trans e pessoas transmasculinas, fui me vendo nessas pessoas e entendendo as coisas que estavam acontecendo comigo. 

Hoje eu participo de duas organizações. O Coletivo de Trans para Frente nasceu em 2016 a partir de uma reflexão que era: as discussões sobre transgeneridade na academia são pautadas por pessoas cisgênero, detentoras do conhecimento e com o domínio da fala. Nessa relação, as pessoas trans eram objetos de pesquisa com a tarefa de relatar experiências de vida. Nosso foco é pautar políticas públicas de pessoas trans para pessoas trans, fazendo ponte entre a área acadêmica e o movimento social. Nós também somos pesquisadores, sujeitos da pesquisa.  

Já a Associação Baiana de Travestis, Transexuais e Trangêneros em Ação (Atração) procura trabalhar na formação e especialização de ativistas. Queremos transformar as pessoas que querem fazer parte da militância, mas não sabem por onde começar, e especializar quem já vive os movimentos sociais e de base, mas não tem os acessos necessários para se potencializar. Além disso, temos a frente de advocacy, que atua ocupando os espaços de controle social e do poder público para pautar nossas demandas e provocar o estado a oferecer mais. 

Quando a população trans conquista algo, eu me sinto visibilizado, entendendo que não podemos regredir. A aprovação de cotas para pessoas trans nas universidades federais da Bahia, a alteração do protocolo transexualizador (apesar do seu nome problemático), pessoas trans envolvidas na ampliação e atualização desse protocolo hoje são alguns exemplos dessa conquista. 

Temos que estar no front a todo momento impedindo retrocessos, por exemplo o novo modelo da carteira de identidade. Foi assegurado a nós pelo governo federal que o RG não teria sexo e agora vai constar meu nome social – João Pedro – com o sexo feminino. Então há os retrocessos e temos que estar preparados para lutar contra eles. 

Quando falamos de visibilidade estamos construindo o entendimento de que ser uma pessoa trans é só mais um atravessamento na nossa vida. Um atravessamento que precisa de políticas públicas, atendimento de saúde direcionado e cuidados específicos, mas um atravessamento. Somos muito mais do que isso. Não é pensar na Erika Hilton como uma deputada trans incrível, é pensar nela como uma deputada incrível e ponto. 

Temos potências e desafios como qualquer outro ser humano. Temos em maior ou menor grau, a depender da face da população que estamos falando, mas é isso.

É algo que faz parte de nós, só não a única coisa que importa. 

Somos seres humanos integrais e temos que ter os mesmos direitos que toda e qualquer pessoa. 

 

“Quando abraçamos uma causa,nos tornamos referência para outras meninas que estão se descobrindo.”

Adélia Luiz, integrante do Coloafro 

Eu faço parte dos movimentos políticos e coletivos desde os meus 15 anos. Nas rodas de conversa que as lideranças organizavam eu fui entendendo, aos poucos, que o lugar que eu ocupava no mundo era o de uma travesti. Ser engajada nos movimentos sociais foi fundamental para o meu reconhecimento. A partir da convivência com outras mulheres trans e travestis que eu fui me percebendo e criando coragem para abraçar isso porque são muitos estigmas. 

Eu moro em Altamira, no Pará. Um dos estados mais perigosos para ser LGBTQIAP+. Estamos na luta sempre. Quando abraçamos uma causa, vamos compreendendo nosso papel social, até porque nos tornamos referência para outras meninas que estão se descobrindo.

A Coloafro era um braço do Coletivo de Mulheres Negras Maria-Maria (COMUNEMA). Como organizávamos e participávamos de atividades que eram mais intervenções artísticas com grafite e muralismo, percebemos a necessidade de fazer nossas próprias pautas e dialogar mais diretamente com a nossa frente de atuação, que é a juventude. 

Eu sempre me senti pressionada por ser uma das poucas travestis nos espaços de diálogo. Quando eu via que só tinha meu nome nas listas de participação me perguntava o momento em que eu veria outras ocuparem os lugares. Uma vez fizemos um evento que reuniu diversas travestis e acredito que essa tenha sido a primeira vez que me senti vista: quando não era só eu representando a voz de muitas. 

Eu vi que não estava sozinha, foi assim, ao lado de outras pessoas trans e travestis que me senti visível. 

*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati

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